Aires de Libertad

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    Mensaje por Maria Lua Dom 28 Feb 2021, 12:25

    59.

    Cada vez que o meu propósito se ergueu, por influência dos meus sonhos,
    acima do nível quotidiano da minha vida, e um momento me senti alto, como
    a criança num balouço, cada vez dessas tive que descer como ela ao jardim
    municipal, e conhecer a minha derrota sem bandeiras levadas para a guerra
    nem espada que houvesse força para desembainhar.
    Suponho que a maioria daqueles, com que cruzo no acaso das ruas, traz
    consigo — noto-lho no movimento silencioso dos beiços e na indecisão
    indistinta dos olhos ou no altear da voz com que rezam juntos – uma igual
    projeção para a guerra inútil do exército sem pendões. E todos — viro-me
    para trás a contemplar os seus dorsos de vencidos pobres — terão, como eu, a
    grande derrota vil, entre os limos e os juncos, sem luar sobre as margens nem
    poesia de pauis, miserável e marçana.
    Todos têm, como eu, um coração exaltado e triste. Conheço-os bem: uns
    são moços de lojas, outros são empregados de escritório, outros são
    comerciantes de pequenos comércios; outros são os vencedores dos cafés e
    das tascas, gloriosos sem saberem no êxtase da palavra egotista, a contento no
    silêncio do egotismo avaro sem ter que guardar. Mas todos, coitados, são
    poetas, e arrastam, aos meus olhos, como eu aos olhos deles, a igual miséria da
    nossa comum incongruência. Têm todos, como eu, o futuro no passado.
    Agora mesmo, que estou inerte no escritório, e foram todos almoçar salvo
    eu, fito, através da janela baça, o velho oscilante que percorre lentamente o
    passeio do outro lado da rua. Não vai bêbado; vai sonhador. Está atento ao
    inexistente; talvez ainda espere. Os Deuses, se são justos na sua injustiça, nos
    conservem os sonhos ainda quando sejam impossíveis, e nos deem bons
    sonhos, ainda que sejam baixos. Hoje, que não sou velho ainda, posso sonhar
    com ilhas do Sul e com Índias impossíveis; amanhã talvez me seja dado, pelos
    mesmos Deuses, o sonho de ser dono de uma tabacaria pequena, ou
    reformado numa casa dos arredores. Qualquer dos sonhos é o mesmo sonho,
    porque são todos sonhos. Mudem-me os deuses os sonhos, mas não o dom
    de sonhar.
    No intervalo de pensar isto, o velho saiu-me da atenção. Já o não vejo.
    Abro a janela para o ver. Não o vejo ainda . Saiu. Teve, para comigo, o dever
    visual de símbolo; acabou e virou a esquina. Se me disserem que virou a
    esquina absoluta, e nunca esteve aqui, aceitarei com o mesmo gesto com que
    fecho a janela agora.
    Conseguir?...
    Pobres semideuses marçanos que ganham impérios com a palavra e a
    intenção nobre e têm necessidade de dinheiro com o quarto e a comida!
    Parecem as tropas de um exército desertado cujos chefes tivessem um
    sonho de glória, de que a estes, perdidos entre os limos de pauis, fica só a
    noção de grandeza, a consciência de ter sido do exército, e o vácuo de nem ter
    sabido o que fazia o chefe que nunca viram.
    Assim cada um se sonha, um momento, o chefe do exército de cuja cauda
    fugiu. Assim cada um, entre a lama dos ribeiros, saúda a vitória que ninguém
    pôde ter, e de que ficou como migalhas entre nódoas na toalha que se
    esqueceram de sacudir.
    Enchem os interstícios da ação quotidiana como o pó os interstícios dos
    móveis quando não são limpos com cuidado. Na luz vulgar do dia comum
    vêem-se a luzir como vermes cinzentos contra o mogno avermelhado. Tiramse com um prego pequeno. Mas ninguém tem paciência para os tirar.
    Os meus pobres companheiros que sonham alto, como os invejo e
    desprezos!
    Comigo estão os outros — os mais pobres, os que não têm senão a si
    mesmos a quem contar os sonhos e fazer o que seriam versos se eles os
    escrevessem — os pobres diabos sem mais literatura que a própria alma, sem
    ouvirem bem da crítica, que morrem asfixiados pelo facto de existirem sem
    terem feito aquele desconhecido exame transcendente que habilita a viver.
    Uns são heróis e prostram cinco homens a uma esquina de ontem. Outros
    são sedutores e até as mulheres inexistentes lhes não ousaram resistir. Creem
    isto quando o dizem, talvez o digam para que o creiam. Outros para todos eles
    os vencidos do mundo, quem quer que sejam, são gente.
    E todos como enguias num alguidar, se enrolam entre eles e se cruzam uns
    acima dos outros e nem saem do alguidar. As vezes falam deles os jornais. Os
    jornais falam d’alguns mais do que algumas vezes — mas a fama nunca.
    Esses são os felizes porque lhes é dado o sonho mentido da estupidez.
    Mas aos que, como eu, têm sonhos sem ilusões


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    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
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    Mensaje por Maria Lua Dom 28 Feb 2021, 12:27

    60.

    Intervalo doloroso

    Se me perguntardes se sou feliz, responder-vos-ei que o não sou.


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    Mensaje por Maria Lua Mar 02 Mar 2021, 14:46

    61.


    É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver.
    Só o Tédio, que é um afastamento, e a Arte, que é um desdém, douram de
    uma semelhança de contentamento a nossa.
    Fogos-fátuos que a nossa podridão geral, são ao menos luz nas nossas
    trevas.
    Só a infelicidade elementar e o tédio puro das infelicidades contínuas, é
    heráldico como o são descendentes de heróis longínquos.
    Sou um poço de gestos que nem em mim se esboçaram todos, de palavras
    que nem pensei pondo curvas nos meus lábios, de sonhos que me esqueci de
    sonhar até ao fim.
    Sou ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que
    alguém se fartou, no meio de construí-las, de pensar em que construía.
    Não nos esqueçamos de odiar os que gozam porque gozam, de desprezar
    os que são alegres, porque não soubemos ser, nós, alegres como eles... Esse
    sonho falso, esse ódio fraco não é senão o pedestal tosco e sujo da terra em
    que se finca e sobre o qual, altiva e única, a estátua do nosso Tédio se ergue,
    escuro vulto cuja face um sorriso impenetrável nimba vagamente de segredo.
    Benditos os que não confiam a vida a ninguém.


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    Mensaje por Maria Lua Mar 09 Mar 2021, 07:35

    62.


    Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E
    capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um
    vómito para aliviar a vontade de vomitar.
    Um dos meus passeios prediletos, nas manhãs em que temo a banalidade
    do dia que vai seguir como quem teme a cadeia, é o de seguir lentamente pelas
    ruas fora, antes da abertura das lojas e dos armazéns, e ouvir os farrapos de
    frases que os grupos de raparigas, de rapazes, e de uns com outras, deixam
    cair, como esmolas da ironia, na escola invisível da minha meditação aberta.
    E é sempre a mesma sucessão das mesmas frases... ("E então ela disse..." e
    o tom diz da intriga dela. "Se não foi ele, foste tu... " e a voz que responde
    ergue-se no protesto que já não oiço. "Disseste, sim senhor, disseste..." e a voz
    da costureira afirma estridentemente "A minha mãe diz que não quer... "
    "Eu?" e o pasmo do rapaz que traz o lunch embrulhado em papel-manteiga
    não me convence, nem deve convencer a loura suja. "Se calhar era. . . " e o
    riso de três das quatro raparigas cerca do meu ouvido a obscenidade que... "E
    então pus-me mesmo diante do gajo, e ali mesmo na cara dele — na cara dele,
    hein, ó Zé. .." e o pobre diabo mente, pois o chefe do escritório — sei pela
    voz que o outro contendor era chefe do escritório que desconheço – não lhe
    recebeu na arena entre as secretárias o gesto de gladiador de palhinhas. "... E
    então eu fui fumar para a retrete..." ri o pequeno de fundilhos escuros.
    Outros, que passam sós ou juntos, não falam, ou falam e eu não oiço, mas as
    vozes todas são-me claras por uma transparência intuitiva e rota. Não ouso
    dizer — não ouso dizê-lo a mim mesmo em escrita, ainda que logo a cortasse
    — o que tenho visto nos olhares casuais, na sua direção involuntária e baixa,
    nos seus atravessamentos sujos. Não ouso porque, quando se provoca o
    vómito, é preciso provocar só um.
    "O gajo estava tão grosso que nem via a escada." Ergo a cabeça. Este
    rapazote, ao menos, descreve. E esta gente quando descreve é melhor do que
    quando sente, porque por descrever esquece-se de si. Passa-me a náusea. Vejo
    o gajo. Vejo-o fotograficamente. Até o calão inocente me anima. Bendito ar
    que me dá na cara — o gajo tão grosso que nem via que era de degraus a
    escada — talvez a escada onde a humanidade sobe aos tombos, apalpando-se
    e atropelando-se na falsidade regrada do declive aquém do saguão.
    A intriga, a maledicência, a prosápia falada do que se não ousou fazer, o
    contentamento de cada pobre bicho vestido com a consciência inconsciente
    da própria alma, a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de
    macaco, a horrorosa ignorância da importância do que são... Tudo isto me
    produz a impressão de um animal monstruoso e reles, feito no involuntário
    dos sonhos, das côdeas húmidas dos desejos, dos restos trincados das
    sensações.


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    Mensaje por Maria Lua Mar 09 Mar 2021, 07:36

    63.


    Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos,
    num lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o
    que nos supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa,
    e há um erro cujo ângulo não sabemos. Somos qualquer coisa que se passa no
    intervalo de um espetáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que
    talvez não seja senão cenário. Todo o mundo é confuso, como vozes na noite.
    Estas páginas, em que registo com uma clareza que dura para elas, agora
    mesmo as reli e me interrogo. Que é isto, e para que é isto? Quem sou quando
    sinto? Que coisa morro quando sou?
    Como alguém que, de muito alto, tente distinguir as vidas do vale, eu assim
    mesmo me contemplo de um cimo, e sou, com tudo, uma paisagem indistinta
    e confusa.
    É nestas horas de um abismo na alma que o mais pequeno pormenor me
    oprime como uma carta de adeus. Sinto-me constantemente numa véspera de
    despertar, sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de
    conclusões. De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a qualquer parte.
    Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras
    como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e
    verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados.
    Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o
    objeto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém.
    Há, algures, um subterfúgio transcendente, uma divindade fluida e só
    ouvida.
    Releio, sim, estas páginas que representam horas pobres, pequenos
    sossegos ou ilusões, grandes esperanças desviadas para a paisagem, mágoas
    como quartos onde se não entra, certas vozes, um grande cansaço, o
    evangelho por escrever.
    Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento
    de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns
    trechos, certas dúvidas...
    Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O
    que está ali é outro. Já não compreendo nada...


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    Mensaje por Maria Lua Miér 10 Mar 2021, 09:30

    64.

    Choro sobre as minhas páginas imperfeitas, mas os vindouros, se as lerem,
    sentirão mais com o meu choro do que sentiriam com a perfeição, se eu a
    conseguisse, que me privaria de chorar e portanto até de escrever. O perfeito
    não se manifesta. O santo chora, e é humano. Deus está calado. Por isso
    podemos amar o santo mas não podemos amar a Deus.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 11 Mar 2021, 06:53

    66.

    Encolher de ombros

    Damos comummente às nossas ideias do desconhecido a cor das nossas
    noções do conhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um
    sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma
    coisa diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade
    construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que
    chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes.
    Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é aquele sistema de vida
    particular a que no geral se chama civilização. A civilização consiste em dar a
    qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o
    resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova
    realidade. O objeto torna-se realmente outro, porque o tornámos outro.
    Manufaturamos realidades. A matéria-prima continua sendo a mesma, mas
    a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efetivamente de continuar sendo a
    mesma. Uma mesa de pinho é pinho mas também é mesa. Sentamo-nos à
    mesa e não ao pinho. Um amor é um instinto sexual, porém não amamos com
    o instinto sexual, mas com a pressuposição de outro sentimento. E essa
    pressuposição é, com efeito, já outro sentimento.
    Não sei que efeito subtil de luz, ou ruído vago, ou memória de perfume ou
    música, tangida por não sei que influência externa, me trouxe de repente, em
    pleno ir pela rua, estas divagações que registo sem pressa, ao sentar-me no
    café, distraidamente. Não sei onde ia conduzir os pensamentos, ou onde
    preferiria conduzi-los. O dia é de um leve nevoeiro húmido e quente, triste
    sem ameaças, monótono sem razão. Dói-me qualquer sentimento que
    desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre quê; não tenho
    vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência. E escrevo estas linhas,
    realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas
    para dar um trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços
    moles de lápis rombo — que não tenho sentimentalidade para aparar -, o
    papel branco de embrulho de sanduíches, que me forneceram no café, porque
    eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse branco. E doume por satisfeito. Reclino-me. A tarde cai monótona e sem chuva, num tom
    de luz desalentado e incerto... E deixo de escrever porque deixo de escrever.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Vie 12 Mar 2021, 07:15

    67.


    Quantas vezes, presa da superfície e do bruxedo, me sinto homem. Então
    convivo com alegria e existo com clareza. Sobrenado. E é-me agradável
    receber o ordenado e ir para casa. Sinto o tempo sem o ver, e agrada-me
    qualquer coisa orgânica. Se medito, não penso. Nesses dias gosto muito dos
    jardins.
    Não sei que coisa estranha e pobre existe na substância íntima dos jardins
    citadinos que só a posso sentir bem quando me não sinto bem a mim. Um
    jardim é um resumo da civilização — uma modificação anónima da natureza.
    As plantas estão ali, mas há ruas — ruas. Crescem árvores, mas há bancos por
    baixo da sua sombra. No alinhamento virado para os quatro lados da cidade,
    ali só largo, os bancos são maiores e têm quase sempre gente.
    Não odeio a regularidade das flores em canteiros. Odeio, porém, o
    emprego público das flores. Se os canteiros fossem em parques fechados, se
    as árvores crescessem sobre recantos feudais, se os bancos não tivessem
    alguém, haveria com que consolar-me na contemplação inútil dos jardins.
    Assim, na cidade, regrados mas úteis, os jardins são para mim como gaiolas,
    em que as espontaneidades coloridas das árvores e das flores não têm senão
    espaço para o não ter, lugar para dele não sair, e a beleza própria sem a vida
    que pertence a ela.
    Mas há dias em que esta é a paisagem que me pertence, e em que entro
    como um figurante numa tragédia cómica. Nesses dias estou errado, mas, pelo
    menos em certo modo, sou mais feliz. Se me distraio, julgo que tenho
    realmente casa, lar, aonde volte. Se me esqueço, sou normal, poupado para
    um fim, escovo um outro fato e leio um jornal todo.
    Mas a ilusão não dura muito, tanto porque não dura como porque a noite
    vem. E a cor das flores, a sombra das árvores, o alinhamento de ruas e
    canteiros, tudo se esbate e encolhe. Por cima do erro e de eu estar homem
    abre-se de repente, como se a luz do dia fosse um pano de teatro que se
    escondesse para mim, o grande cenário das estrelas. E então esqueço com os
    olhos a plateia amorfa e aguardo os primeiros atores com um sobressalto de
    criança no circo.
    Estou liberto e perdido.
    Sinto. Esfrio febre. Sou eu.


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    Mensaje por Maria Lua Vie 12 Mar 2021, 07:16

    68.


    O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há nas ilusões — a perda delas,
    a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa
    de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.
    A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à
    inteligência. Há inteligências inconscientes — brilhos do espírito, correntes do
    entendimento, mistérios e filosofias — que têm o mesmo automatismo que os
    reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem das suas
    secreções.


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    Mensaje por Maria Lua Vie 12 Mar 2021, 07:16

    69.


    Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma coisa que vai desabar
    no exterior negro...
    Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma
    planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é
    cor de chuva, negro pálido. Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora
    me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas são a bruma que a
    vela.
    Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo
    e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de
    dentro. Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva,
    gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração atual.


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 13 Mar 2021, 05:47

    70.


    Quando outra virtude não haja em mim, há pelo menos a da perpétua
    novidade da sensação liberta.
    Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do
    homem que a descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de um homem
    qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional.
    Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no
    ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão
    direita.
    Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti
    nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal
    quotidiano do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e
    alegre dele, pelos prazeres alegres e tristes de que forçosamente se compõe a
    sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal
    daquelas costas vestidas.
    Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes
    pensamentos.
    A sensação era exatamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém
    que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não
    se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais
    fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre
    matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.
    Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de
    mim com passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente.
    Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o
    que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a
    vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação,
    uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida
    social dormente, por todos, por tudo.
    É um humanitarismo direto, sem conclusões nem propósitos, o que me
    assalta neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a
    todos através de uma compaixão de único consciente, os pobres diabos
    homens, o pobre diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui?
    Todos os movimentos e intenções da vida, desde a simples vida dos
    pulmões até à construção de cidades e de impérios, considero-os como uma
    sonolência, coisas como sonhos ou repousos, passadas involuntariamente no
    intervalo entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia do
    Absoluto. E, como alguém abstratamente materno, debruço-me de noite
    sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus.
    Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.
    Desvio os olhos das costas do meu adiantado, e passando-os a todos mais,
    quantos vão andando nesta rua, a todos abarco nitidamente na mesma ternura
    absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo. Tudo
    isto é o mesmo que ele; todas estas raparigas que falam para o atelier, estes
    empregados jovens que riem para o escritório, estas criadas de seios que
    regressam das compras pesadas, estes moços dos primeiros fretes, tudo isto é
    uma mesma inconsciência diversificada por caras e corpos que se distinguem,
    como fantoches movidos pelas cordas que vão dar aos mesmos dedos da mão
    de quem é invisível. Passam com todas as atitudes com que se define a
    consciência, e não têm consciência de nada, porque não têm consciência de
    ter consciência. Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente
    estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens,
    outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe.


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    Mensaje por Maria Lua Dom 14 Mar 2021, 04:35

    71.


    Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de
    incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu
    sinto com o pensamento.
    Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim,
    pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.
    É curioso que, sendo escassa a minha capacidade de entusiasmo, ela é
    naturalmente mais solicitada pelos que se me opõem em temperamento do
    que pelos que são da minha espécie espiritual. A ninguém admiro, na
    literatura, mais que aos clássicos, que são a quem menos me assemelho. A ter
    que escolher, para leitura única, entre Chateaubriand e Vieira, escolheria Vieira
    sem necessidade de meditar.
    Quanto mais diferente de mim alguém é, mais real me parece, porque
    menos depende da minha subjetividade. E é por isso que o meu estudo atento
    e constante é essa mesma humanidade vulgar que repugno e de quem disto.
    Amo-a porque a odeio. Gosto de vê-la porque detesto senti-la. A paisagem,
    tão admirável como quadro, é em geral incómoda como leito.


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    Mensaje por Maria Lua Dom 14 Mar 2021, 04:44

    72.


    Disse Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma
    felicidade frouxa de sonhador débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa
    de ser um estado de alma. Objetivar é criar, e ninguém diz que um poema
    feito é um estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas se
    lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos
    sonhar de ver.
    De resto, de que servem estas especulações de psicologia verbal?
    Independentemente de mim, cresce erva, chove na erva que cresce, e o sol
    doira a extensão da erva que cresceu ou vai crescer; erguem-se os montes de
    muito antigamente, e o vento passa com o mesmo modo com que Homero,
    ainda que não existisse, o ouviu. Mais certa era dizer que um estado da alma é
    uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a mentira de uma
    teoria, mas tão-somente a verdade de uma metáfora.
    Estas palavras casuais foram-me ditadas pela grande extensão da cidade,
    vista à luz universal do sol, desde o alto de São Pedro de Alcântara. Cada vez
    que assim contemplo uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta
    de altura, e sessenta e um quilos de peso, em que fisicamente consisto, tenho
    um sorriso grandemente metafísico para os que sonham que o sonho é sonho,
    e amo a verdade do exterior absoluto com uma virtude nobre do
    entendimento.
    O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma
    Suíça achatada. Sai um navio pequeno — vapor de carga preto — dos lados
    do Poço do Bispo para a barra que não vejo. Que os Deuses todos me
    conservem, até à hora em que cesse este meu aspeto de mim, a noção clara e
    solar da realidade externa, o instinto da minha importância, o conforto de ser
    pequeno e de poder pensar em ser feliz.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 24 Mar 2021, 09:36

    73.

    No alto ermo dos montes naturais temos, quando chegamos, a sensação do
    privilégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos
    montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob as
    solas dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós
    tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o
    erguimento e o píncaro que somos.
    Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura que temos, não a temos; não
    somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos,
    nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.
    Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é célebre; o
    próprio ter de um título de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício,
    mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou
    nascemos na casa do monte.
    Grande, porém, é o que considera que do vale ao céu, ou do monte ao céu,
    a distância que o diferença não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse,
    estaríamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios,
    como a de Júpiter, de ventos, como a de Éolo, o abrigo seria o não termos
    subido, e a defesa o rastejarmos.
    Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos músculos e a
    negação de subir no conhecimento. Ele tem, por visão, todos os montes; e
    tem, por posição, todos os vales. O sol que doura os píncaros dourá-los-á para
    ele mais que para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas será mais
    belo ao que o contempla do vale que ao que o esquece nas salas que o
    constituem de prisão.
    Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a
    vida. E o símbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e
    alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade
    esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que já nem está no
    poente.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 24 Mar 2021, 09:37

    74.

    Trovoada

    Este ar baixo e nuvens paradas. O azul do céu estava sujo de branco
    transparente.
    O moço, ao fundo do escritório, suspende um minuto o cordel à roda do
    embrulho eterno....
    "Como está só me lembra de uma", comenta estatisticamente.
    Um silêncio frio. Os sons da rua como que foram cortados à faca. Sentiuse, prolongadamente, como um mal-estar de tudo, um suspender cósmico da
    respiração. Parara o universo inteiro. Momentos, momentos, momentos. A
    treva encarvoou-se de silêncio.
    Súbito, aço vivo,
    Que humano era o toque metálico dos elétricos! Que paisagem alegre a
    simples chuva na rua ressuscitada do abismo!
    Oh, Lisboa, meu lar!


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    Mensaje por Maria Lua Miér 24 Mar 2021, 09:38

    75.


    Para sentir a delícia e o terror da velocidade não preciso de automóveis
    velozes nem de comboios expressos. Basta-me um carro elétrico e a espantosa
    faculdade de abstração que tenho e cultivo.
    Num carro elétrico em marcha eu sei, por uma atitude constante e
    instantânea de análise, separar a ideia de carro da ideia de velocidade, separálas de todo, até serem coisas-reais diversas. Depois, posso sentir-me seguindo
    não dentro do carro mas dentro da Mera-Velocidade dele. E, cansado, se
    acaso quero o delírio da velocidade enorme, posso transportar a ideia para o
    Puro Imitar da Velocidade e ao meu bom prazer aumentá-la ou diminuí-la,
    alargá-la para além de todas as velocidades possíveis de veículos comboios.
    Correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta
    excessivamente — perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que
    me incomoda e me despersonaliza.
    Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos.
    Um poente é um fenómeno intelectual.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 24 Mar 2021, 09:39

    76.


    Penso às vezes com um agrado (em bissecção) na possibilidade futura de
    uma geografia da nossa consciência de nós próprios. A meu ver, o historiador
    futuro das suas próprias sensações poderá talvez reduzir a uma ciência precisa
    a sua atitude para com a sua consciência da sua própria alma. Por enquanto
    vamos em princípio nesta arte difícil – arte ainda, química de sensações no seu
    estado alquímico por ora. Esse cientista de depois de amanhã terá um
    escrúpulo especial pela sua própria vida interior. Criará de si mesmo o
    instrumento de precisão para a reduzir a analisada. Não vejo dificuldade
    essencial em construir um instrumento de precisão, para uso auto-analítico,
    com aços e bronzes só do pensamento. Refiro-me a aços e bronzes realmente
    aços e bronzes, mas do espírito. E talvez mesmo assim que ele deva ser
    construído.
    Será talvez preciso arranjar a ideia de um instrumento de precisão,
    materialmente vendo essa ideia, para poder proceder a uma rigorosa análise
    íntima. E naturalmente será necessário reduzir também o espírito a uma
    espécie de matéria real com uma espécie de espaço em que existe. Depende
    tudo isso do aguçamento extremo das nossas sensações interiores, que,
    levadas até onde podem ser, sem dúvida revelarão, ou criarão, em nós um
    espaço real como o espaço que há onde as coisas da matéria estão, e que, aliás,
    é irreal como coisa.
    Não sei mesmo se este espaço interior não será apenas uma nova dimensão
    do outro. Talvez a investigação científica do futuro venha a descobrir que
    tudo são dimensões do mesmo espaço, nem material nem espiritual por isso.
    Numa dimensão viveremos corpo; na outra viveremos alma. E há talvez
    outras dimensões onde vivemos outras coisas igualmente reais de nós. Aprazme às vezes deixar-me possuir pela meditação inútil do ponto até onde esta
    investigação pode levar.
    Talvez se descubra que aquilo a que chamamos Deus, e que tão
    patentemente está em outro plano que não a lógica e a realidade espacial e
    temporal, é um nosso modo de existência, uma sensação de nós em outra
    dimensão do ser. Isto não me parece impossível. Os sonhos também serão
    talvez ou ainda outra dimensão em que vivemos, ou um cruzamento de duas
    dimensões; como um corpo vive na altura, na largura e no comprimento, os
    nossos sonhos, quem sabe, viverão no ideal, no eu e no espaço. No espaço
    pela sua representação visível; no ideal pela sua apresentação de outro género
    que a da matéria; no eu pela sua íntima dimensão de nossos. O próprio Eu, o
    de cada um de nós, é talvez uma dimensão divina. Tudo isto é complexo e ao
    seu tempo, sem dúvida, será determinado. Os sonhadores atuais são talvez os
    grandes precursores da ciência final do futuro. Não creio, é claro, numa
    ciência final do futuro. Mas isso nada tem para o caso.
    Faço às vezes metafísicas destas, com a atenção escrupulosa e respeitosa de
    quem trabalha deveras e faz ciência. Já disse que chega a ser possível que a
    esteja realmente. O essencial é eu não me orgulhar muito com isto, dado que
    o orgulho é prejudicial à exata imparcialidade da precisão científica


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    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Miér 24 Mar 2021, 09:39

    77.


    Muitas vezes para me entreter — porque nada entretém como as ciências,
    ou as coisas com jeito de ciências, usadas futilmente — ponho-me
    escrupulosamente a estudar o meu psiquismo através da forma como o
    encaram os outros. Raras vezes é triste o prazer, por vezes doloroso, que esta
    tática fútil me causa.
    Geralmente, procuro estudar a impressão geral que causo nos outros,
    tirando conclusões. Em geral sou uma criatura com quem os outros
    simpatizam, com quem simpatizam, mesmo, com um vago e curioso respeito.
    Mas nenhuma simpatia violenta desperto. Ninguém será nunca
    comovidamente meu amigo. Por isso tantos me podem respeitar


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    Mensaje por Maria Lua Dom 28 Mar 2021, 11:51

    78.


    Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão
    do espírito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam
    claramente ser. Como se não tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer
    coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada
    dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde
    despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem.
    Olha-se, mas não se vê. A longa rua movimentada de bichos humanos é
    uma espécie de tabuleta deitada onde as letras fossem móveis e não
    formassem sentidos. As casas são somente casas. Perde-se a possibilidade de
    dar um sentido ao que se vê, mas vê-se bem o que é, sim.
    As pancadas de martelo à porta do caixoteiro soam com uma estranheza
    próxima. Soam grandemente separadas, cada uma com eco e sem proveito. Os
    ruídos das carroças parecem de dia em que vem trovoada. As vozes saem do
    ar, e não de gargantas. Ao fundo, o rio está cansado.
    Não é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. E uma vontade de
    dormir com outra personalidade, de esquecer com melhoria de vencimento.
    Não se sente nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas
    pernas que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntária, uns
    pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez. À roda dos
    olhos e como dedos nos ouvidos há um aperto de dentro da cabeça.
    Parece uma constipação na alma. E com a imagem literária de se estar
    doente nasce um desejo de que a vida fosse uma convalescença, sem andar; e
    a ideia de convalescença evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro,
    onde são lares, longe da rua e das rodas. Sim, não se sente nada. Passa-se
    consciente- mente, a dormir só com a impossibilidade de dar ao corpo outra
    direção, a porta onde se deve entrar. Passa-se tudo.
    Que é do pandeiro, ó urso parado?


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Lun 05 Abr 2021, 09:20

    79.


    Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou de sobre o
    Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava
    frescamente, num torpor frio de mar morno. Senti a vida no estômago, e o
    olfato tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada
    nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A
    atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada
    inaudível, feita de ar somente.
    Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves
    que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num
    desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemente.
    Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter!
    São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta
    falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação.
    Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto
    o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro.
    Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica
    das sensações supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos
    pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfato e na
    consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro de
    Job, "A minha alma está cansada da minha vida!"


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    Mensaje por Maria Lua Lun 05 Abr 2021, 09:21

    80.


    Intervalo doloroso


    Tudo me cansa, mesmo o que me não cansa. A minha alegria é tão
    dolorosa como a minha dor.
    Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de
    quinta, com um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes
    de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.
    Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e
    compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.
    Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? E
    quem é triste não pode esforçar-se.
    Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria
    abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçarme.
    Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro
    daquele trem! Qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha,
    deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!
    Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um
    todo não me esmagaria os ombros do pensamento.
    Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra
    um raio.
    Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e de actos.
    Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão
    dar a clareiras de angústia.
    Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge,
    então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E
    todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas
    olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de
    objetos me pesam por a alma dentro.
    A minha vida é como se me batessem com ela.


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    Mensaje por Maria Lua Mar 13 Abr 2021, 14:57

    81.

    As carroças da rua ronronam sons separados, lentos, de acordo, parece,
    com a minha sonolência. É a hora do almoço mas fiquei no escritório. O dia é
    tépido e um pouco velado. Nos ruídos há, por qualquer razão, que talvez seja
    a minha sonolência, a mesma coisa que há no dia.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 19 Abr 2021, 08:49

    82.

    Não sei que vaga carícia, tanto mais branda quanto não é carícia, a brisa
    incerta da tarde me traz à cara e à compreensão. Sei só que o tédio que sofro
    se me ajusta melhor, um momento, como uma veste que deixe de roçar numa
    chaga.
    Pobre da sensibilidade que depende de um pequeno movimento do ar para
    o conseguimento, ainda que episódico, da sua tranquilidade! Mas assim é toda
    sensibilidade humana, nem creio que pese mais na balança dos seres o
    dinheiro subitamente ganho, ou o sorriso subitamente recebido, que são para
    outros o que para mim foi, neste momento, a passagem breve de uma brisa
    sem continuação.
    Posso pensar em dormir. Posso sonhar de sonhar. Vejo mais claro a
    objetividade de tudo. Uso com mais conforto o sentimento externo da vida. E
    tudo isto, efetivamente, porque, ao chegar quase à esquina, um virar no ar da
    brisa me alegra a superfície da pele.
    Tudo quanto amamos ou perdemos — coisas, seres, significações – nos
    roça a pele e assim nos chega à alma, e o episódio não é, em Deus, mais que a
    brisa que me não trouxe nada salvo o alívio suposto, o momento propício e o
    poder perder tudo esplendidamente.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Sáb 24 Abr 2021, 08:02

    83.


    Remoinhos, redemoinhos, na futilidade fluida da vida! Na grande praça ao
    centro da cidade, a água sobriamente multicolor da gente passa, desvia-se, faz
    poças, abre-se em riachos, junta-se em ribeiros. Os meus olhos veem
    desatentamente, e construo em mim essa imagem áquea que, melhor que
    qualquer outra, e porque pensei que viria chuva, se ajusta a este incerto
    movimentos.
    Ao escrever esta última frase, que para mim exatamente diz o que define,
    pensei que seria útil pôr no fim do meu livro, quando o publicar, abaixo das
    "Errata" umas "Não-Errata", e dizer: a frase "a este incerto movimentos", na
    página tal, é assim mesmo, com as vozes adjetivas no singular e o substantivo
    no plural. Mas que tem isto com aquilo em que estava pensando? Nada, e por
    isso me deixo pensá-lo.
    À roda dos meios da praça, como caixas de fósforos móveis, grandes e
    amarelas, em que uma criança espetasse um fósforo queimado inclinado, para
    fazer de mau mastro, os carros elétricos rosnam e tinem; arrancados, assobiam
    a ferro alto. À roda da estátua central as pombas são migalhas pretas que se
    mexem, como se lhes desse um vento espalhador. Dão passinhos, gordas
    sobre pés pequenos. E são sombras, sombras...
    Vista de perto; toda a gente é monotonamente diversa. Dizia Vieira que
    Frei Luís de Sousa escrevia "o comum com singularidade". Esta gente é
    singular com comunidade, às avessas do estilo da Vida do Arcebispo. Tudo
    isto me faz pena, sendo-me todavia indiferente. Vim parar aqui sem razão,
    como tudo na vida.
    Do lado do oriente, entrevista, a cidade ergue-se quase a prumo falso,
    assalta estaticamente o Castelo. O sol pálido molha de um aureolar vago essa
    mole súbita de casas que para aqui o oculta. O céu é de um azul humidamente
    esbranquiçado. A chuva de ontem talvez se repita hoje, mas mais branda. O
    vento parece leste, talvez porque aqui mesmo, de repente, cheira vagamente
    ao maduro e verde do mercado próximo. Do lado oriental da Praça há mais
    forasteiros que do outro. Como descargas alcatifadas, as portas onduladas
    descem para cima; não sei porquê, é assim a frase que me transmite aquele
    som. É talvez porque fazem mais esse som ao descer, porém agora sobem.
    Tudo se explica.
    De repente estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de um telhado
    espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar
    é ser estrangeiro. Toda a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha
    volta. Sinto-me tão isolado que sinto a distância entre mim e o meu fato. Sou
    uma criança, com uma palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de
    noite, uma grande casa deserta. Vivem sombras que me cercam — só
    sombras, filhas dos móveis hirtos e da luz que me acompanha. Elas me
    rondam aqui ao sol, mas são gente.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 26 Abr 2021, 10:10

    84.

    Meditei hoje, num intervalo de sentir, na forma de prosa de que uso. Em
    verdade, como escrevo? Tive, como muitos têm tido, a vontade pervertida de
    querer ter um sistema e uma norma. E certo que escrevi antes da norma e do
    sistema; nisso, porém, não sou diferente dos outros.
    Analisando-me à tarde, descubro que o meu sistema de estilo assenta em
    dois princípios, e imediatamente, e à boa maneira dos bons clássicos, erijo
    esses dois princípios em fundamentos gerais de todo estilo: dizer o que se
    sente exatamente como se sente — claramente, se é claro; obscuramente, se é
    obscuro; confusamente, se é confuso -; compreender que a gramática é um
    instrumento, e não uma lei.
    Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos.
    Um ente humano vulgar dirá dela, "Aquela rapariga parece um rapaz". Um
    outro ente humano vulgar, já mais próximo da consciência de que falar é
    dizer, dirá dela, "Aquela rapariga é um rapaz". Outro ainda, igualmente
    consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afeto pela
    concisão, que é a luxúria do pensamento, dirá dela, "Aquele rapaz". Eu direi,
    "Aquela rapaz", violando a mais elementar das regras da gramática, que manda
    que haja concordância de género, como de número, entre a voz substantiva e
    a adjetiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora
    da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.
    A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por
    exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber
    dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para
    fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver
    às escuras. Se quiser dizer que existo, direi "Sou". Se quiser dizer que existo
    como alma separada, direi "Sou eu".
    Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e
    forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei de
    empregar o verbo "ser" senão convertendo-o subitamente em transitivo? E
    então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi "Sou-me". Terei dito
    uma filosofia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isto a não dizer
    nada em quarenta frases? Que mais se pode exigir da filosofia e da dicção?
    Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem
    sabe mandar nas suas expressões. Conta-se de Sigismundo, Rei de Roma, que
    tendo, num discurso público, cometido um erro de gramática, respondeu a
    quem dele lhe falou, "Sou Rei de Roma, e acima da gramática". E a história
    narra que ficou sendo conhecido nela como Sigismundo "supergrammaticam". Maravilhoso símbolo! Cada homem que sabe dizer o que diz

    é, no seu modo, Rei de Roma. O título não é mau, e a alma é ser-se.


    116


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    Mensaje por Maria Lua Vie 30 Abr 2021, 09:28

    85.

    Reparando, às vezes, no trabalho literário abundante ou, pelo menos, feito
    de coisas extensas e completas de tantas criaturas que ou conheço ou de quem
    sei, sinto em mim uma inveja incerta, uma admiração desprezante, um misto
    incoerente de sentimentos mistos.
    Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou seja má — e, se nunca é
    inteiramente boa, muitas vezes não é inteiramente má -, sim, fazer uma coisa
    completa causa-me, talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento. E
    como um filho: é imperfeita como todo o ente humano, mas é nossa como os
    filhos são.
    E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os
    defeitos, as falhas, eu, que não ouso escrever mais que trechos, bocados,
    excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito
    também. Mais valera, pois, ou a obra completa, ainda que má, que em todo o
    caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se
    reconhece incapaz de agir.


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    Mensaje por Maria Lua Dom 02 Mayo 2021, 06:11

    86.

    Penso se tudo na vida não será a degeneração de tudo’. O ser não será uma
    aproximação — uma véspera, ou uns arredores.
    Assim como o Cristianismo não foi senão a degeneração bastarda do
    neoplatonismo abaixado, a judaização do helenismo pelo romano, assim nossa
    época, senil e cancerígena, é o desvio múltiplo de todos os grandes propósitos,
    confluentes ou opostos, de cuja falência surgiu a era com que faliram .
    Vivemos um entreato com orquestra.
    Mas que tenho eu, neste quarto andar, com todas estas sociologias? Tudo
    isto é-me sonho, como as princesas da Babilónia, e o ocuparmo-nos da
    humanidade é fútil, fútil — uma arqueologia do presente.
    Sumir-me-ei entre a névoa, como um estrangeiro a tudo, ilha humana
    desprendida do sonho do mar e navio com ser supérfluo à tona de tudo.


    118

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    Mensaje por Maria Lua Miér 19 Mayo 2021, 06:56

    87.

    A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente.
    Se conhecêssemos a verdade, vê-la-íamos; tudo o mais é sistema e arredores.
    Basta-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo; querer
    compreendê-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se
    não compreende.
    Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva alheia. Querem
    que o aceite, mas que o não abra. Trazem-me a ciência, como uma faca num
    prato, com que abrirei as folhas de um livro de páginas brancas. Trazem-me a
    dúvida, como pó dentro de uma caixa; mas para que me trazem a caixa se ela
    não tem senão pó?
    Na falta de saber, escrevo; e uso os grandes termos da Verdade alheios
    conforme as exigências da emoção. Se a emoção é clara e fatal, falo,
    naturalmente, dos deuses e assim a enquadro numa consciência do mundo
    múltiplo. Se a emoção é profunda, falo, naturalmente, de Deus, e assim a
    engasto numa consciência una. Se a emoção é um pensamento, falo,
    naturalmente, do Destino, e assim a encosto à parede.
    Umas vezes o próprio ritmo da frase exigirá Deus e não Deuses: outras
    vezes, impor-se-ão as duas sílabas de Deuses e mudo verbalmente de
    universo; outras vezes pesarão, ao contrário, as necessidades de uma rima
    íntima, um deslocamento do ritmo, um sobressalto de emoção e o politeísmo
    ou o monoteísmo amolda-se e prefere-se. Os Deuses são uma função do
    estilo.



    119

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    y en ese vuelo y en ese sueño
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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Lun 04 Oct 2021, 07:49

    88.



    Onde está Deus, mesmo que não exista? Quero rezar e chorar, arrependerme de crimes que não cometi, gozar ser perdoado como uma carícia não
    propriamente materna.
    Um regaço para chorar, mas um regaço enorme, sem forma, espaçoso
    como uma noite de verão, e contudo próximo, quente, feminino, ao pé de
    uma lareira qualquer... Poder ali chorar coisas impensáveis, falências que nem
    sei quais são, ternuras de coisas inexistentes, e grandes dúvidas arrepiadas de
    não sei que futuro...
    Uma infância nova, uma ama velha outra vez, e um leito pequeno onde
    acabar por dormir, entre contos que embalam, mal ouvidos, com uma atenção
    que se torna morna, de perigos grandes — penetravam em jovens cabelos
    louros como o trigo... E tudo isto muito grande, muito eterno, definitivo para
    sempre, da estatura única de Deus, lá no fundo triste e sonolento da realidade
    última das Coisas...
    Um colo ou um berço ou um braço quente em torno ao meu pescoço...
    Uma voz que canta baixo e parece querer fazer-me chorar... O ruído de lume
    na lareira... Um calor no inverno... Um extravio morno da minha consciência...
    E depois sem som, um sonho calmo num espaço enorme, como a lua
    rodando entre estrelas...
    Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, com um
    cuidado cheio de carinho — com vontade de lhes dar beijos — os meus
    brinquedos, as palavras, as imagens, as frases — fico tão pequeno e
    inofensivo, tão só num quarto tão grande e tão triste, tão profundamente
    triste!...
    Afinal eu quem sou, quando não brinco? Um pobre órfão abandonado nas
    ruas das sensações, tiritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que
    dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia. Do meu pai
    sei o nome; disseram-me que se chamava Deus, mas o nome não me dá ideia
    de nada. Às vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, e
    faço-me uma ideia dele a que possa amar... Mas depois penso que o não
    conheço, que talvez ele não seja assim, que talvez não seja nunca esse o pai da
    minha alma...
    Quando acabará isto tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes
    degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus
    farrapos? Se um dia Deus me viesse buscar e me levasse para sua casa e me
    desse calor e afeição... As vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o
    posso pensar... Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as folhas caem no
    passeio... Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum... E de
    tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor
    quis para seu filho adotivo, nem nenhuma Amizade para seu companheiro de
    brinquedos.
    Tenho frio de mais. Estou tão cansado no meu abandono. Vai buscar, ó
    Vento, a minha Mãe. Leva-me na Noite para a casa que não conheci... Torna a
    dar-me, ó Silêncio imenso, a minha ama e o meu berço e a minha canção com
    que eu dormia...













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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Sáb 09 Oct 2021, 10:41

    89.


    A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma
    atividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe
    estéril, e o uso fixo de normas de pensamento filosófico e metafísico cuja
    importância se sente ser nula.


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