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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Mar 12 Abr 2022, 12:56

      Na hora dolorosa e roxa das emoções silenciosas
      Meu espírito te sentiu.
      Ele te sentiu imensamente triste
      Imensamente sem Deus
      Na tragédia da carne desfeita.

      Ele te quis, hora sem tempo
      Porque tu eras a sua imagem, sem Deus e sem tempo.
      Ele te amou
      E te plasmou na visão da manhã e do dia
      Na visão de todas as horas
      Ó hora dolorosa e roxa das emoções silenciosas.


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      siendo guardián en tu cielo
      y tren de tus ilusiones."
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      Mensaje por Maria Lua Mar 19 Abr 2022, 08:20

      A CIDADE ANTIGA


      Rio de Janeiro , 2004


      Houve tempo em que a cidade tinha pêlo na axila 
      E em que os parques usavam cinto de castidade 
      As gaivotas do Pharoux não contavam em absoluto 
      Com a posterior invenção dos kamikazes 
      De resto, a metrópole era inexpugnável 
      Com Joãozinho da Lapa e Ataliba de Lara. 

      Houve tempo em que se dizia: LU-GO-LI-NA 
      U, loura; O, morena; I, ruiva; A, mulata! 
      Vogais! tônico para o cabelo da poesia 
      Já escrevi, certa vez, vossa triste balada 
      Entre os minuetos sutis do comércio imediato 
      As portadoras de êxtase e de permanganato! 

      Houve um tempo em que um morro era apenas um morro 
      E não um camelô de colete brilhante 
      Piscando intermitente o grito de socorro 
      Da livre concorrência: um pequeno gigante 
      Que nunca se curvava, ou somente nos dias 
      Em que o Melo Maluco praticava acrobacias. 

      Houve tempo em que se exclamava: Asfalto! 
      Em que se comentava: Verso livre! com receio... 
      Em que, para se mostrar, alguém dizia alto: 
      "Então às seis, sob a marquise do Passeio..." 
      Em que se ia ver a bem-amada sepulcral 
      Decompor o espectro de um sorvete na Paschoal 

      Houve tempo em que o amor era melancolia 
      E a tuberculose se chamava consumpção 
      De geométrico na cidade só existia 
      A palamenta dos ioles, de manhã... 
      Mas em compensação, que abundância de tudo! 
      Água, sonhos, marfim, nádegas, pão, veludo! 

      Houve tempo em que apareceu diante do espelho 
      A flapper cheia de it, a esfuziante miss 
      A boca em coração, a saia acima do joelho 
      Sempre a tremelicar os ombros e os quadris 
      Nos shimmies: a mulher moderna... Ó Nancy! Ó Nita! 
      Que vos transformastes em dízima infinita... 

      Houve tempo... e em verdade eu vos digo: havia tempo 
      Tempo para a peteca e tempo para o soneto 
      Tempo para trabalhar e para dar tempo ao tempo 
      Tempo para envelhecer sem ficar obsoleto... 
      Eis por que, para que volte o tempo, e o sonho, e a rima 
      Eu fiz, de humor irônico, esta poesia acima.


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      Mensaje por Maria Lua Lun 02 Mayo 2022, 07:27

          A AUSENTE


          Amiga, infinitamente amiga

          Em algum lugar teu coração bate por mim

          Em algum lugar teus olhos se fecham à ideia dos meus.

          Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios

          Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas

          Como que cega ao meu encontro...

          Amiga, última doçura

          A tranquilidade suavizou a minha pele

          E os meus cabelos. Só meu ventre

          Te espera, cheio de raízes e de sombras.

          Vem, amiga

          Minha nudez é absoluta

          Meus olhos são espelhos para o teu desejo

          E meu peito é tábua de suplícios

          Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes

          E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim

          Como no mar, vem nadar em mim como no mar

          Vem te afogar em mim, amiga minha

          Em mim como no mar...



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      Mensaje por Maria Lua Mar 10 Mayo 2022, 07:44

      AURORA, COM MOVIMENTO
      (Posto 3)


      A linha móvel do horizonte
      Atira para cima o sol em diabolô
      Os ventos de longe
      Agitam docemente os cabelos da rocha
      Passam em fachos o primeiro automóvel, a última estrela
      A mulher que avança
      Parece criar esferas exaltadas pelo espaço
      Os pescadores puxando o arrastão parecem mover o mundo
      O cardume de botos na distância parece mover o mar.


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      Mensaje por Maria Lua Mar 10 Mayo 2022, 07:46

      CREPÚSCULO EM NEW YORK


      Com um gesto fulgurante o Arcanjo Gabriel
      Abre de par em par o pórtico do poente
      Sobre New York. A gigantesca espada de ouro
      A faiscar simetria, ei-lo que monta guarda
      A Heavens, Incorporations. Do crepúsculo
      Baixam serenamente as pontes levadiças
      De U.S.A. Sun até a ilha da Manhattan.
      Agora é tudo anúncio, irradiação, promessa
      Da Divina Presença. No imo da matéria
      Os átomos aquietam-se e cria-se o vazio
      Em cada coração de bicho, coisa e gente.


      E o silêncio se deixa assim, profundamente...


      Mas súbito sobe do abismo um som crestado
      De saxofone, e logo a atroz polifonia
      De cordas e metais, síncopas, arreganhos
      De jazz negro, vindos de Fifty Second Street.
      New York acorda para a noite. Oito milhões
      De solitários se dissolvem pelas ruas
      Sem manhã. New York entrega-se.
        Do páramo Balizas celestiais põem-se a brotar, vibrantes
      À frente da parada, enquanto anjos em nylon
      As asas de alumínio, as coxas palpitantes
      Fluem langues da Grande Porta diamantina.


      Cai o câmbio da tarde. O Sublime Arquiteto
      Satisfeito, do céu admira sua obra.
      A maquete genial reflete em cada vidro
      O olho meigo de Deus a dardejar ternuras.
      Como é bela New York!
      Aço e concreto armado
      A erguer sempre mais alto eternas estruturas!
      Deus sorri complacente. New York é muito bela!
      Apesar do East Side, e da mancha amarela
      De China Town, e da mancha escura do Harlem
      New York é muito bela! As primeiras estrelas 
      Afinam na amplidão cantilenas singelas...
      Mas Deus, que mudou muito, desde que enriqueceu
      Liga a chave que acende a Broadway e apaga o céu
      Pois às constelações que no espaço esparziu
      Prefere hoje os ersätze sobre La Guardia Field.


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      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:07

      A LETRA A: PALAVRA POR PALAVRA (II)


      Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969


      Abacate: Fiz certa vez para a minha série de poeminhas infantis, um sexteto sobre essa fruta de que gosto muito e que pertence, segundo me ensina o verbete de mestre Aurélio, à família das Lauráceas - o que não é dizer pouco. O poeminha é como segue, e faz grande sucesso entre crianças de mentalidade cropófila e adultos de mentalidade de criança, como é o caso de meu amigo e compadre Chico Buarque:    

                  A gente pega o abacate 
                  Bate bem no batedor 
                  Depois do bate-que-bate 
                  Que é que parece? - Cocô. 
                  Ô abacate biruta: 
                  Tem mais caroço que fruta! 

            Mas eis que, de repente, surgem-me, no ato de escrever, confusas, dolorosas recordações ligadas a essa palavra. Vejo-me menino, na casa de meus avós paternos, à rua General Severiano em Botafogo, debruçado à grande mesa da sala de jantar, apreciando meu avô comer com delícia o seu abacate no ritual gastronômico cotidiano. Era toda uma cerimônia, as refeições de meu avô Moraes. Brando déspota baiano, cheio de bossa e filáucia, colocava-se ele à cabeceira, o guardanapo atacado ao pescoço, à moda antiga, e sem dizer abacate atacava os próprios, depois de cortá-los em duas metades, que enchia de açúcar até às bordas. E era de vê-lo traçando-os a colheradas, devagar e sempre, até a última epiderme. Depois, limpava, com um rápido gesto de ida e volta, a boca e o bigode branquinho, suspirava fundo e partia para o seu quarto de leitura, onde ficava o lindo oratório de minha avó. E ali se deixava ele no embalo da velha cadeira de balanço, de espaldar de palhinha, a ler pela milésima vez os folhetins de Michel Zevaco, de que eu era também leitor constante. Quantos títulos não lembro... Os Pardaillan, Buridan, Os amantes de Veneza, A torre de Nestle... 

            - Ecco la saeta! 
            - La paro! 

            O italiano entrava nos duelos como cor local. Pardaillan aparava o que viesse, o herói de todo caráter, enquanto, pouco a pouco, o velho avô se ia desintegrando em sono. Eu chegava pé ante pé para espiá-lo de mais perto, como quem examinava uma múmia de museu. Que fenômeno, um velho! Mas não qualquer velho: um ancião espetacular, como meu avô Moraes, o rosto cortado em mil rugas descendentes e as pálpebras inferiores começando a cair; um velho com o dorso das mãos enferrujado e a pele do pescoço pendente, já meio solta da carne. 

            Meu avô Antero Pereira da Silva Moraes... Bendita a palavra que desencadeou tanta saudade e o trouxe de volta tão nítido como o vejo agora... a arrastar os pés ao longo do corredor, sem tempo e sem rumo - um macróbio total. Circundava-o sempre um aroma de sândalo ou alfazema, por isso que minha avó nunca se esquecia de espalhar, em seus gavetões, sachets perfumosos que lhe impregnavam a roupa. E sua vida era essa: vagar pela casa, o único território em que podia velejar com segurança. 

            Nós, meninos, tínhamos cuidado para não esbarrar nele, em nossas correrias, de vez que o corredor era o desaguadouro natural de nosso tropel faminto, quando nos chamavam para a mesa. O velho, ao sentir que algum pé-de-vento o cruzava, dava uma leve guinada de proa, fazia uma lenta meia-volta parada e seguia mecanicamente em sua esteira, agarrado por cabos imponderáveis àquela vida infantil que passava à toa. Tudo nele parecia realizar-se num mundo acústico, onde os sons chegassem como num aparelho de surdo subitamente conectado. Uma porta batia, alguém berrava por alguém, o cachorro ladrava - e desencadeava-se em seus tímpanos uma tempestade que o fazia retornar ao mundo dos vivos. Sua máscara frouxa assumia um ar dramático e ele, transtornado, perguntava, numa voz pânica e trêmula de náufrago pedindo socorro: 

            - Que foi? 

            Às vezes parava, incerto sobre o rumo a tomar, desligado de tudo. Seu rosto ensimesmava-se, num desesperado esforço de ver, como se estivesse mirando um poço sem fundo, e depois exprimia espanto, pois o medo do desconhecido parecia de repente tomá-lo. Girava os olhos, então, dentro da cratera rubra das pálpebras soltas, como a buscar onde se ater. Ficava assim, a mover devagar a cabeça para um lado e outro - um bicho velho diante de sua própria morte. 

            Depois, refeito o vazio, ele reunia novas forças e saía em seu passinho miúdo e arrastado, de volta à cadeira de balanço como um velho barco ao ancoradouro. Ali, com um máximo de cautela para não cair, sentava-se bem devagarinho, num exercício cujo resultado parecia deixá-lo feliz, pelos esgares que fazia. Puxava a manta sobre os joelhos e, pouco a pouco, deixava pender a cabeça. Que pensamentos poderiam então tomá-lo? Talvez lhe chegassem, em fragmentos rútilos, as risadas claras das mulheres que teve - e muitas foram, ao que parece...; talvez os rufos e as clarinadas das paradas militares a que tanto gostava de assistir. 

            E era doce, nessas horas, depois que o sono vinha, ver chegar toda branquinha, toda curva, a sua eterna velhinha que se deixava estar um pouco junto ao umbral, queimando a sua cera antiga numa chama de amor quase apagando. E depois de mirá-lo algum tempo, ela ia, minha santa avozinha, e se ajoelhava ao pé do oratório, onde ficava a tatalar preces ausentes, os olhos postos com infinita devoção no Menino Deus, em sua manjedoura, ou em Nossa Senhora da Conceição, sua xará celeste, perdida na visão de beatitudes que não conheceu em vida - pois, segundo consta, em matéria de mulher, meu avô não deixou passar ninguém. Mas ela o amava, o velho sacripanta, de um amor tão puro de esposa, que eu posso vê-la neste instante, mesmo mergulhada na visão do Ser Egrégio, a cuja mão direita deve sentar-se agora, linda e modesta como sempre, tendo ao lado seu velhinho todo elegante em seu paletó de alpaca - e cuja entrada no Céu só obteve pelo muito que rezou e por todo o bem que fez em vida. Pois o velho não era de brincadeira.


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      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:16

      ANTEATO: PALAVRA POR PALAVRA (I)


      Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969


            A idéia ocorreu-me em março de 1967, quando ganhei pela... ésima vez, para grande prazer meu, um novo Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa, de meu velho amigo Aurélio Buarque de Holanda, que nada tem a ver com Sérgio e Chico, mas é, também, homem de muita cachola. Lembro-me de que era noite, e fiquei folheando-o à toa, e verificando uma vez mais a minha imensa ignorância do nosso léxico. De cada dez palavras, não sabia o significado de três ou quatro. É verdade que eram, o mais das vezes, palavras eruditas, de conteúdo científico e - bolas! - eu não sou cientista nem nada. Mas para um escritor, uma tal constatação é, de qualquer forma, humilhante. Passei a ler com mais freqüência o dicionário como recomendava Gide - o que, aliás, constitui para mim uma ocupação melhor que a leitura desses escritores de best sellers que andam em voga. 

            Muitos amigos me têm pedido que escreva as minhas memórias, Fernando Sabino em particular. Fico pensando... Para quê? Parece-me um ato de vaidade, mais que de despudor. Mas, pondera ele - o Otto Lara Resende já me disse o mesmo - eu percorri um caminho de tal modo vário em experiências, aqui e no estrangeiro, que sonegá-las aos que acreditam no que escrevo, à mocidade em particular, é, de certo modo, uma forma de vaidade maior ainda. Considerando-se, ademais, que minha vida sempre foi, por assim dizer, vivida abertamente... 

            Não sei. Tenho horror à idéia de tornar-me literário, de começar a redigir no ato de escrever. O que me dificulta, hoje em dia, a leitura dos escritores em geral, com pouquíssimas exceções, é justamente esse detestável defeito. Mal sinto, em lugar de estilo, o menor maneirismo, a menor fita, largo o livro de mão. Acho-os, na maioria, uns chatos, só contam o que todo mundo já sabe ou logo adivinha. A vida é infinitamente mais rica que suas palavras - e estou certo de que mesmo os mais mediocres são portadores de experiências que nas mãos de um bom romancista ou um bom biógrafo dariam matéria de interesse universal. Pois tudo tem interesse, mesmo o coito de duas moscas, desde que provoque no ser que o observa um reflexo vital. 

            Vale dizer que pouca gente vive: esta é a grande verdade; vive no sentido de queimar-se sem reservas, sem preconceitos, sem atitudes, sem julgamentos canonizados por uma moral convencional imposta. Mas, por outro lado, eu não gostaria de escandalizar. Escandalizar pode ser também uma forma infame de vaidade, um processo autocomplacente de criar uma antimoral como justificação de taras ou fraquezas pessoais. Não: eu sou um homem que, até certo ponto, venceu as barreiras do medo de viver, e viver é, hoje em dia, para mim, um ato simples, perturbado apenas pelas neuroses conseqüentes do simples ato de viver. A vida, trata-se de cumpri-la bem, sem outro temor que ter de apertar-lhe as rédeas. Ai de mim, que ilusão! - dizer isto na quadra dos cinqüenta, quando os frutos do amor crescem cada vez menos ao alcance das mãos, do meu desejo... 

            Mas o curioso em tudo isso é que, aquela noite de março de 1967, a leitura à toa do Pequeno dicionário fez-me voltar a 15 anos atrás, num hotel em Genebra, quando - lembro-me tão bem agora - veio-me pela primeira vez a vontade de escrever minhas memórias, e eu chamei um mensageiro e dentro em breve punha-me a rabiscar num grosso caderno suíço. O resultado de um dia de trabalho pareceu-me, na manhã seguinte, tão... não digo literário, mas auto-suficiente, que larguei aquela choldra com um profundo aborrecimento de mim mesmo. Eu nada fizera senão ir, conscientemente, tentar justificar-me, apresentar-me sob uma luz falso-modesta, ficar lambendo as próprias feridas. 

            Agora, não. Agora sinto que vou poder escrevê-las, usando as letras do alfabeto e as palavras da língua sob seus capítulos, como ímãs mnemônicos capazes de me mergulhar compulsivamente num abismo de lembranças: palavras concretas desagregando-se em memórias, um infinito de saudades, um sumidouro de associações caóticas, mas de onde possam vir à tona, tal um agente lisérgico, os fragmentos desse grande puzzle a reconstituir, que é a vida de um homem, de qualquer homem, de todos os homens. E fazê-lo dia a dia, numa hipnose consciente que possa resultar, quem sabe, numa auto-análise, tanto quanto possível próxima da verdade - que desta, realmente, não se sabe nunca. 

            Sim, a idéia me apaixona. Por que não tentar? Por que não pousar os olhos numa palavra e, através de conjeturas, sentir refluir o que ficou do tempo? Que mundo de livros, sobrasse-me vida, não poderia eu escrever com a palavra amor, a palavra amigo, a palavra mulher... Não criou a palavra ressentimento condições para que eu possa mergulhar na palavra sonho, e sonhar, e sonhar minha existência... - palavra por palavra?





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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:17

      SER MODERNO

      Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969

           Saía o Sol sobre a Terra quando Lot entrou em Zoar. Então fez o Senhor chover enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra. E subverteu aquelas cidades e toda a campina, e todos os moradores das cidades, e o que nascia da terra. E a mulher de Lot olhou para trás e converteu-se numa estátua de sal.
       
            O grifo é meu e o texto está no Gênese, o primeiro livro de Moisés. O episódio bíblico constitui também, provavelmente, o primeiro caso psiquiátrico de neurose do passado. A mulher de Lot fora instruída a não olhar para trás, a andar a monte com seu marido e suas duas filhas, para não perecer no castigo imposto pelo Senhor à cidade de Sodoma. 

            - Quem mandou se meter a fogueteira? - diria um psiquiatra rnoderno da escola kleiniana. Não há que olhar para o passado. O passado é a neurose. O futuro é que conta. 
            - Então - perguntaria eu, bronqueado - por que é que você está usando uma expressão tão fora de época como "se meter a fogueteira"? 

            Aí o psiquiatra me explicaria que se tratava de uma expressão usada por sua avozinha, a única pessoa que conseguiu, com muito amor e paciência, corrigi-lo do hábito de fazer pipi na cama até os dez anos; mas que as pessoas projetadas para o futuro é que são isentas de neuroses. 

            - Feito os cosmonautas? - indagaria eu, meio preocupado com a lavagem cerebral indispensável ao equilíbrio neuropsíquico dos invasores do Cosmos. 
            - É, mas ou menos... - responderia o nosso amigo, com ar de quem não quer levar a discussão adiante. 

            Aí... - aí, pombas, cada um iria para a casa de sua mãe, mesmo porque a conversa já estava ficando com um certo ar de crônica de Art Buchwald, como está tão em moda. 
            É, velhinho... Que fazer? Dar uma de moderno, sair por aí, de calça vermelha ou azul-turquesa, camisa de florzinha e corrente com medalhão ao pescoço, puxando um fumo (1) honesto, e depois ir esticar com uma percanta (2) no Varanda, pra biritar (3) umas e outras? Ou assumir a vida, a experiência, o passado? 

            - Escuta, bicho, você tá por fora... Falar umas e outras já saiu do ar. Não vá me dizer isso no Veloso... A turma te dá uma buzinada. O último cara que falou assim foi o Chico Buarque, morou? 
            - Que é que tem o Chico? Eu acho o Chico, um sujeito por dentro, um compositor todo bom, cheio de sentimento... 
            - Sentimentos? Mas que é isso, bicho? Que coisa mais antiga... Quem tem sentimento é guia de cego. O negócio é entrar na onda (4). Você está em outra (5). Leia Marcuse e Norman Mailer e atualize seu repertório (6). Deixe o espírito vagar. Tem que ter plá (7). 

            Tem que ter plá, ouviram bem? Ser moderno é achar que a história começa com os Beatles e termina com os hippies. Depois disso, não há mais nada a fazer. É ir levando, entrar em órbita (Cool, canear (9) por aí com umas grinfas (10) bem xués (11), que é pra não dar dor de cabeça. É o sideral (12). O negócio é muita bolinha (13), muita tia-branca (14), muito LSD ou qualquer outro psicotrópico que dê um barato (15) firme. É de lei! 

            Realmente, a que se pode aspirar, depois de atingir a categoria hippy? O hippy é, no fundo, tão velho e sem perspectiva quanto um embaixador que caiu na compulsória. É um jovem que pediu aposentadoria da vida, motivado, é claro, pelos mais nobres sentimentos. Tudo, menos o trabalho burguês. Amor, não a guerra. Sexo livre, ambidestro e descompromissado. Desligamento total dos laços tradicionais de família. "Familles, je vous hais; foyers clos, portes renfermées, possessions jalouses du bonheur!" (16) - como já disse André Gide, esse Marcuse avant la lettre, esse velho hippy formalista, que viu Verlaine bêbado na rua sendo apupado e maltratado por um bando de colegiais, e optou por não socorrê-lo para não intervir no curso do seu destino. 

            E há - importantíssimo! - o problema "acústico". 

            - Que é que você achou da mulher americana, Miltinho? 
            - Humm... Não tem som (17). 

            Tem que ter som, ouviram, ó mulhas? (18). Não basta ser dondoca bonérrima, ter curso de psicologia na PUC, ser aprendiz de guerrilheira ou dona de boutique, assistente social ou bandida (19), grã-fina ou grã-grossa. O negócio é o seguinte: tem que ter som. Perguntem aos músicos mais pra frente (e perdoem se esta expressão tiver sido excomungada ontem no novo Zepelim). 

            - O Sérgio Mendes? Ih, bicho... já deu o que tinha dar. O som já não é mais aquele, morou? Muito comercial, muito pra gringo. Não dá mais pé. Agora: você já ouviu uns garotos que estão com um conjunto de cavaquinhos e gaitas eletrônicas? Velhinho, aquilo é que é som. 

            Resultado: andam os músicos a experimentar, dia e noite com seus conjuntos, à cata de um som: um como aquele que conduziu Sérgio Mendes ao auge do faturamento. 

            - Não, ô cara, a poesia não deixa de ter sua importância na canção, se o infeliz não me vier de amor - saudade - tristeza - coração - luar. Agora: importante mesmo é o som. A letra tem que interpretar o momento presente, aproveitar das novas estruturas, das novas formas, dos novos materiais, da nova linguagem publicitária de nossa sociedade de consumo. Tem que passar sinteco no samba. 

            - Mas... e o Tom? 
            - Bem... o Tom é grande, mas já está ultrapassado. Deu uma de coroa (20). Poxa, gravar com o Sina (21), um velhunco, um tremendo matusa (22). Não, bicho, eu estou em outra... 

            De maneira, arcaico leitor, que o seguinte é o que se segue; e o que se segue é a realidade; e a realidade é um fato; e fato é o que eu vou lhe provar agora: para ser moderno, você tem que estar na deles. Estando com eles, está com Deus. Você tem que usar calças Lee, de preferência desbotadas e puídas nos joelhos (camisas Lacoste é pra granfunço); tem que estar por dentro de blá(23) de malandro e gíria de barbudo de Ipanema; tem que fazer a ponte Zepelim-Varanda, e de vez em quando dar uma de Degrau; tem que discutir cinema novo, e sobretudo Gláuber; tem que saber queimar-o-pé (24) e entrar no embalo-7 (25) com birita de pobre: uísque é pros Onassis da vida; ou estar a balão (26) sempre que puder, puxando seu charo (27) em companhia de uma grinfete (28) super, levando o seu (29) com aquela disponibilidade; mas também sabendo quebrar um pau (30) quando o negócio estiver mais pra fezes (com perdão do eufemismo) que pra mousse de chocolate; tem que gostar de Gal Costa (sem que isso tenha nada a ver com o fato de ela ser uma excelente cantora) e Caetano Veloso (idem para o grande compositor), e tem que achar o Chico um ótimo letrista mas um músico meio devagar; tem que considerar o Chacrinha um gênio, inteiramente dentro do contexto, que é cafono por natureza: (Isso é que é tropicalismo, morou, ô infeliz?); tem que encarar de ver em quando umas patuleiras do asfalto (31), e se mandar pra Barra no carango (32), a mil; tem que, pelo menos uma vez por ano, fundir a cuca (33) e ir misturar as estações (34) numa clínica de repouso, e fazer uma sonda (35) seguida de uma psicoterapia de apoio - dá um pé bárbaro! 

            É isso que você tem que fazer, execrável leitor, se quiser ser moderno. Pergunte a esse grande ator Hugo Carvana, que me forneceu muitos dos elementos que estão aqui. O resto é papo furado. Se você não estiver nessa nunca vai ser um praça-boa, uma pedra-90 (36). Senão, bicho, quando você for buscar o milho, eles já fizeram a pipoca. Em rio que tem piranha, mosquito não dá rasante. Quem se mete a avestruz tem que agüentar o ovo. Ou como diz o fotógrafo filósofo e gentleman tijuco-ipanemense Paulinho Garcez: "Ajoelhou, tem que rezar!" 


      * P.S. Para os que estão mais por fora que marido enganado, fiz um pequeno glossário. Se quaisquer outras dúvidas ocorrerem, consultem o jovem super ao seu lado. 

      E por falar nisso: pode haver nada mais velho do que o novo? 
      1 - fumando maconha; 2 - mulher, garota que se namora; 3 - bebiba alcoólica; 4 - assumir o moderno, com tudo o que ele implica; 5 - ser antigo, ou quadrado; 6 - a súmula do linguajar moderno; 7 - substrato, bossa, espírito; 8 embriagar-se com drogas; 9 - beber; 10 - mulheres, garotas do mesmo naipe; 11 - malucas; 12 - embriaguez específica por drogas ou psicotrópicos; 13 - excitantes medicamentosos em pílulas; 14 - cocaína; 15 - corruptela de baratino: o mesmo que o item 12; 16 - "Famílias, eu vos odeio; lares fechados, portas trancadas, possessões ciumentas da felicidade"; 17 - musicalmente, o correspondente a plá, qualidade sonora, bossa, inventiva, expressão; 18 - corruptela de mulher em gíria; 19 - mulher ou garota de vida fácil, sem chegar a ser uma prostituta: diz-se também vadia; 20 - quarentão; 21 - Sinatra; 22 - corruptela de Matusalém; velhíssimo, ancião; 23 - papo, conversa; 24 embriagar-se; 25 - embriagar-se muito; também se diz encher a cara; 26 - inebriar-se com drogas ou psicotrópicos; estar suspenso no ar; 27 - corruptela de charuto; cigarro mais grosso de maconha; 28 - diminutivo de grinfa (ver no 10), broto, lolita; 29 - contando suas histórias, levando o seu papo; 30 - brigar fisicamente; 31 - prostitutas perambulantes, como se vê ao longo das praias; 32 - automóvel de preferência velho; 33 - ficar neurótico, ou muito perturbado mentalmente; 34 - idem, como se se tratasse de um rádio; 35 - sonoterapia, 36 - pessoa de qualidade; o mesmo que bacana.


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:18

      ORAÇÃO A NOSSA SENHORA DE PARIS

      Rio de Janeiro, Poesia completa e prosa: volume único, 2022



      Notre Dame de Paris, Notre Dame de Partout, rogai por mim, rogai por nós, os malferidos de amor, os feridos do doce langor, os que uivam à lua nas praias desertas do mundo, os que buscam um vagabundo num bar para falar da bem-amada, para não dizer nada só que ela é bonita, os que saem andando em campos de estrelas e de repente é uma rua deserta com um apartamento aceso que fica olhando o deambulante, o amante perdido, sem rumo e sem prumo, barco sozinho no meio do oceano lunar, é só olhar, lá está ela, a bem-amada dormindo no céu com os braços para cima, linda axila, macio feno, suave veneno de paixão, ó não, Nossa Senhora de Paris, Nossa Senhorazinha de Paris, rogai por mim porque a coisa está ruim, ela está longe eu sigo nessa névoa de luminosos astros e choro ao ver um rio que corre, uma estrela que morre, um mendigo que dorme, um cão que faz amor com uma cadela de olhos úmidos, túmidos seios, negro vórtex, meu amor, Notre Dame de Paris, Notre Dame de Partout, aqui estou eu, lembrai-vos, diante de vossa portada maior, o santo de cabeça cortada me espiando sofrer a angústia da espera vem não vem o homem me oferece cartões-postais de mulher nua pensa que eu sou americano eu sou é brasileiro do Rio de janeiro onde mora a minha amada numa colmeia a beira-parque fazendo há dois mil anos mel de amor com que adoçar todas as minhas mágoas, ó águas do Sena revoltas, minha amada está serena porque nós viemos de muito, muito, muito longe para nos encontrar, atravessamos os lagos da infância, cruzamos os desertos da adolescência, galgamos as montanhas da mocidade e aqui nesta cidade nos encontramos uma só vez, o mês era março, e nos reencontramos em abril novecentos e sessenta luas depois na rue Pierre Charon e ela entrou pelos meus olhos, banhou-se no meu cristalino, acendeu-me a íris e postou-se como santa Luzia no nicho de minhas pupilas oferecendo-me os próprios olhos numa salva de prata e pôs-se a comer devagarinho minha cabeça enquanto eu não sabia o que lhe dissesse só pedia vem comigo vem comigo mas ela não podia porque não era o dia mas lá vem ela de táxi entrou na Île de Ia Cité, rodeou a praça, que graça é ela, vai saltar, não eu que vou com ela, adeus Notre Dame de Paris, Notre Dame de l'Amour, iluminai vossos vitrais, levantai âncora ó galera gótica dos meus martírios vossos santos aos remos o Corcunda no mais alto mastro Jesus na torre de comando e buscai serenamente o grande caudal no qual me abandono náufrago coberto de flores em demanda do abismo claro e indevassável da morte, Saravá!


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:19

      ENCONTROS

      Rio de Janeiro, O Correio da Manhã, 2022



           Meu primeiro encontro, em Poesia, depois das inelutáveis influências da juventude, foi o de Murilo Mendes. A fase da imitação declinava lentamente, à medida que os poetas melhoravam.

            Discípulo ardente de Júlio Dantas, tendo escrito aos 14 anos um poema chamado "Os três amores", passei por Guerra Junqueiro em branco. Julgava-o um grande filósofo mais que um poeta, e temia-lhe o tom blasfemo. É que não lera ainda Os simples, onde está o melhor do seu lirismo. Nessa ocasião, fiz do sr. João Lira Filho mentor espiritual. Dei-lhe Foederis arca para ler. A Arca em aspas era um livrão de capa preta onde ia pondo os versos que me pareciam razoáveis. O sr. João Lira Filho não se agradou da poesia. Deu-me uns conselhos: que eu deixasse daquilo, que poesia era "frescura" e "abandono", que meus sonetos eram "muito ruins" e só as trovinhas "onde você procura imitar Adelmar é que são mais ou menos". A palavra "abandono" que interpretei mal, feriu-me a suscetibilidade juvenil. Larguei do sr. João Lira Filho e do seu mestre da Academia e dei com Guilherme de Almeida. Aquilo é que era poeta! Como é que o homem fazia aquelas coisas, que perfeição! 

                  O relógio de mogno, grave, enorme 
                  Dorme 

            Meu olhar se concentrava sobre a magia da palavra "mogno". Se me perguntassem o que era Poesia, eu diria que era aquela palavra feiticeira. Lembro-me que fiz um verso onde falava "em teus seios de mogno e teus lábios de écran". Meus poemas redundavam em diálogos sutilíssimos entre a amada e eu, passavam-se sempre numa casa de chá elegante ou num ônibus de luxo, tinham de Toi et moi, que felizmente só vim a ler mais tarde. 

            Castro Alves e Bilac não me fizeram grande impressão. Li-os apressadamente, sem que me tivessem marcado muito. A poesia paterna, que encontrara numa gaveta velha em casa, foi a minha grande decisiva influência. Desejei imenso fazer versos assim, versos de amor, despidos das idéias grandiloqüentes que assustavam no vate baiano e do brilho de joalheria que cegava no artífice da "Via Láctea". 

                  Junto de ti, ó minha amada 
                  Passam-se os dias a voar 
                  Se longe estou, como apressada 
                  Minha alma à tua quer chegar! 

            Posso citá-los ainda de cor. Causaram-me inveja e me fizeram sofrer. Pensei que nunca poderia ser poeta. 

            Chorei. Cheguei ao furto. Uma vez mostrei a alguns conhecidos um que me parecia o melhor, como se fora meu. Assinei meu nome embaixo. Na noite desse dia tive uma das maiores crises por que já passei neste meu fadário. Pensei pela primeira vez em me suicidar. 

            Depois, fui crescendo, como acontece na vida. Na Faculdade de Direito entrei em pasmo contacto com os grandes do CAJU, o centro da elite da escola. Era garoto e andava fardado de aspirante a oficial da reserva. Foi uma época rica e dolorosa, de lutas íntimas, de descobertas gloriosas, de ânsia e aspiração infindáveis. Otávio de Faria e San Thiago Dantas, dois dos nomes de maior projeção acadêmica, discutiam problemas de Poesia no Café do Areal. Ouvia quieto, mas com um ouvido gigante, as sentenças misteriosas, ditadas sabe Deus por que demônio, que na boca de San Thiago se prestigiavam de uma claridade que para mim tinha algo de sobrenatural, e que Otávio de Faria fazia sombrias, dilacerantes. A um devo uma amizade que através de tanta coisa vivida tem se mostrado sempre boa e generosa, amável no cotidiano mas atenta nos momentos difíceis. Ao outro devo a Amizade. 

            Foram esses dois homens que me iniciaram nos mistérios da Poesia. Falavam em Murilo Mendes e Augusto Frederico Schmidt. San Thiago Dantas lembrava-se às vezes do derradeiro: 

                  O filósofo é como o galinho branco, pequenino, dormindo... 

            Eu pensava. Que não seria aquilo tudo? Filósofo... galinho branco... Realmente, uma sugestão qualquer, branca, assim como um idéia branca, a idéia branca de um filósofo, Platão, sei lá. Palmo a palmo conquistava a compreensão do incompreensível. Um dia ouvi um nome: Baudelaire. Outro: Rimbaud. Mais outro: Mallarmé. Outro ainda: Verlaine. E pus-me a ler. 

            Mas isso não vem ao caso. Com Murilo Mendes a coisa foi assim: achava-me passeando com Otávio de Faria pela Praia do Flamengo. De repente ele produziu uma brochura branca, quase quadrada, com o título Poemas em caracteres negros. Era Murilo Mendes. Minhas mãos estavam virgens ainda de qualquer nova poesia brasileira. Minha emoção foi grande. 

            Fiz perguntas, como era, como não era. Lemos alguns poemas juntos. Otávio criticava, de dentro da admiração real pelo poeta. Travei conhecimento com a questão do "sublime" e do "cotidiano" em Poesia. Ponderei coisas. Coisas me foram ponderadas. 

            Em casa li o livro até de manhã. Achei-o magistral em tudo, até no que tinha de artifício. A primeira impressão que o poeta me deu é de que vivia num espaço cristalizado em ângulos onde anjos cubistas salmodiavam ao som de saxofones. Todas essas adolescentes burguesas geométricas, essas meninas em eterna projeção e prolongamento, movia-as o poeta, transformado em mágico, como a novos títeres, através de versos como fios metálicos, num cenário fantástico de metrópoles cônicas, paisagens elásticas, ao som de melodias penetrantes. 

            Mais tarde, já com o primeiro livro publicado, conheci o poeta na Avenida, por intermédio de Otávio. Vinha deblaterando, o dedo em riste, uma gravata vermelha, o rosto azul de entalhe magro dignificado por uma testa vasta e dolorosa. Pôs-me a mão no ombro, depois me abraçou com longos braços dançarinos. Senti a imediata cordialidade do artista, a sua ânsia de comunhão. Disse-me palavras reconfortantes, de longe ainda me gritava coisas, escandalosamente. 

            Via-o depois em concertos, em conferências, ora mergulhado na música, ora apontando ondulante de uma multidão, a me enviar mensagens periódicas de fraternidade com a mão espantosa, quebradiça e exangue. E desde sempre Murilo Mendes foi um amigo. Ouço muito falar mal dele, de seu espírito fantástico, da teatralidade com que vive. Eu próprio já tenho sentido certa má-vontade - a minha má vontade de animal razoável - contra o poeta nos seus momentos de irrisão declamatória. Mas que me deixem dizer: a par de ser um grande poeta brasileiro, com um modo pessoalíssimo para a Poesia, Murilo Mendes é um puro e um coração bom, não direi como a água, de que não gosto, mas como o uísque. 

            Com Augusto Frederico Schmidt foi diferente. Já em meio à primeira experiência poética, juntando os poemas que iriam dar O caminho para a distância, li Navio perdido. Tinha do poeta uma idéia que me perturbava um pouco. Ouvia falar dele como se fala dos gênios. Alguém sem pé nem cabeça, a quem não se leva muito a sério no que diz, uma pessoa variável, inconstante, passeando pela vida uma grande alma insatisfeita, ferida de Poesia. Dizia-se que o poeta era assim e o homem assado, que a vida do homem não traduzia a obra do poeta, a sua extraordinária mensagem lírica. Mensagem... o termo me pegou em cheio. Achei que mensagem é que era. Adotei mensagem. Quando Aporelli mexia com o bardo, aproveitando-se das suas levitações poéticas, eu me enfezava, achava um desrespeito, embora bem que risse. Navio perdido passou a ser o meu livro. Sentimentos comuns em face da Poesia, a vocação do "sublime", causa de que me fizera paladino, me aproximavam muito de Schmidt. Contudo, não gostei quando os críticos acharam grande semelhança de tons entre as duas poesias. Eu queria era ser pessoal, tinha uma vaidade danada disso. Pensava que ficar como continuador do lirismo schmidtiano era muita honra, mas não para mim. Minha extrema mocidade não admitia senão uma linha de frente geral. Todo mundo junto.

            Um artigo de Manuel Bandeira me deixou louco. Hoje, pensando nessas coisas, dá-me uma grande ternura por mim mesmo. Que menino esplêndido eu era! Manuel Bandeira (isto é, o inimigo de então, o chefe da poesia do "cotidiano") ousava escrever, colocando meu livro do lado de vários outros, que eu realmente tinha vocação poética, mas que precisava muito abandonar o "tom schmidtiano", metrificar minhas linhas, deixar de muitas facilidades com o verso livre, que só é bom na mão dos mestres.

            Como fiquei queimado! Achei que você não entendia nada de Poesia, Manuel, que você não era o Grande Poeta, vivendo a vida inefável dos símbolos misteriosos, dos rios loucos, das luas assexuadas, das mulheres trágicas e dos caminhos de Deus. 

            Mas, voltando a Schmidt. Uma noite vinha com Otávio de Faria pela rua Sachet. Ia ver meu livro que acabava de sair e que a Schmidt Editora distribuíra. À porta da famosa livraria, onde tanta coisa confusa já teve lugar, encontrava-se o poeta. Achei-o irreal, à primeira vista. Apertou-me a mão com um gesto que eu não soube se era de simpatia ou de zanga, porque ao mesmo tempo que me prendia fortemente, me mantinha a distância. Houve falta de jeito. Schmidt exclamou: "Ah, é esse!" Depois falou em Gilberto Amado, o qual teria dito que eu era "um alto". Ficou tudo meio atrapalhado, meio confuso. Eu queria ir-me embora, Otávio também, que não sabia como casar aqueles dois poetas. De volta, creio que fiz observações pouco gentis sobre o que ficara. 

            Durante um certo tempo, Schmidt passou a ser uma presença incômoda. Não havia crítica, notinha de jornal onde se mencionasse meu livro, que não falasse nos poetas irmãos, um prosseguindo no caminho que o outro abrira. A coisa para mim tomou um ar de pendenga, de corrida rasa, com Schmidt à frente, e eu em segundo, fazendo força para emparelhar. 

            Quando todas essas coisas passaram e a minha vaidade trancada começou a dar mofo, algumas saídas juntos, algumas conversas foram dissipando a impressão de ceci tuera celà que a presença de Schmidt me causava. Ia gostando dele, compreendendo-lhe o método lírico dentro do desarranjo formal, amando-lhe a inteligência de vôo tão largo. Hoje em dia vemo-nos menos, mas nos gostamos mais. Às vezes dá-me uma saudade do poeta, e eu tomo a iniciativa de ir visitá-lo no seu décimo andar sobre Copacabana. Mesmo porque, ele não me procura. Schmidt tolera pouco os intelectuais, e embora eu nunca converse "inteligente" com ele, creio que o poeta descansa mais o espírito britando pedra, por assim dizer, na companhia dos seus amigos homens de negócio, onde o troco inocente de idéias deixa às vezes saldo para uma das partes. Eu que, em companhia do poeta, já tive oportunidade de assistir a algumas dessas reuniões, acho que talvez ele é que esteja com a razão. Há um mistério agradável nesses homens de ar vagamente entendiado que vivem do gozo rápido das tiradas, que andam muito de táxi e percorrem numa noite vários ambientes, resolvendo uma mesma questão que nunca entre em jogo. 

            O encontro de Manuel Bandeira, que coisa excelente foi! Eu ainda tinha várias dificuldades em relação à poesia do poeta, mas intimamente mudara muito. Se no princípio me quisessem levar a ele, talvez tivesse relutado. Depois, não. Manuel me escrevera um cartão agradecendo a remessa de Forma e exegese, que me remexeu por dentro. Lia-o às vezes, a Manuel, invejando-lhe secretamente a sobriedade perfeita do verso, mas sempre em oposição ao modo de sua poesia. No fundo, achava que não se podia transigir assim com o Espírito, com a Fome metafisica, com a Visão. Mas, ai de mim, já amava o poeta. Meu coração de mulher da vida já batia por ele. Andava dando um jeito para encontrá-lo. 

            Anah e Carlos Chagas Filho deram-me o ensejo. Esses caros amigos, cuja casa da rua Jardim Botânico era para mim uma coisa perfeita de gosto e intimidade, providenciaram o encontro. O próprio Manuel, diziam eles, achava que a idéia de um jantar tinha seus pontos. E uma lagartixa resolveu a questão. 

            Eu havia chegado e esperava na sala, quando vi uma lagartixa branca. Parti a caçá-la, o que fiz com o maior cuidado para não magoar o bichinho frágil. E Manuel me pegou assim, com a lagartixa na concha da mão e aderiu imediatamente a ela. Dei-lhe um aperto de canhota, porque tinha a lagartixa na direita. O poeta esticou o pescoço, ficou observando o animalzinho com o seu perfil de pássaro, depois riu à-toa, um riso que mal parecia vir daquele siso sério. O riso me venceu. A ternura pelo poeta foi imediata. Um segundo depois estávamos conversando no sofá, eu brilhando discretamente para não chocar o amigo em perspectiva. Falou-se dos Mello Moraes, de poesia, de violão. Eu trouxera o violão, que era assim uma espécie de prato forte meu (nem tão forte, na verdade...) e que hoje em dia considero uma cruz. Cantei umas modas. Manuel parece que gostou. 

            Vi-o pela segunda vez no Salão de Belas-Artes. Foi quando me apresentou a Mário de Andrade. Fez-me as mesmas festas, perguntou pelo violão, falou vagamente em se marcar qualquer coisa. Mário de Andrade conservou-se "onézimo", segundo a gnomonia ovalleana, que é um modo sui generis de imparticipação.

            Uma noite saímos juntos. Grande noite para mim, e Manuel, paternal, me levou ao cinema, me levou à Americana para tomarmos um malted milk, depois me levou ao Beco, onde subi sete andares num elevador vermelho, que pia feito gavião quando chega. Conheci seu quarto, esse quarto que às vezes tem sido para o poeta um lugar de tristezas; e que para mim tem sido tantas vezes um lugar de sossego. E banhei-me do verso exemplar de Estrela da manhã, ainda inédito, que o poeta leu para mim, ou melhor, que me jogou em cima, com aquele seu modo brusco de ler poesia.

            Manuel é hoje em dia um ser à parte para mim. Todo o mundo tem seus dias de antipatia do amigo, suas brigas, suas caturrices. Chega-se mesmo a enjoar da pessoa, da presença, do modo de ser, de certos pequenos hábitos irritantes. Fica-se mesmo com uma tendência vaga a partir a cara, sem prejuízo grande para a amizade. Com Manuel, jamais! Nunca a menor bulha, mesmo dentro de um ou dois pontos de vista diferentes. Manuel aceita o amigo e se impõe a ele. É fiel, mas não intervém; presto, sem se fazer sentir. Parece Ronald Colman.

            Mas eu tinha falado em Mário de Andrade. Mário foi uma conquista minha. O poeta, a princípio, não quis nada comigo. Fui-lhe mesmo apresentado umas duas ou três vezes, sem resultado. Fazia um ar, meu Deus, vaguíssimo, de ombros um pouco levantados.

            Mas em São Paulo, que é sua casa, eu fui um dia à casa dele com Armandinho Sales de Oliveira, Mário de Andrade tinha dirigido um recital colosso, de modinhas do Império, de modo que estava no céu com o pé de fora. À saída, não me lembro mais por que, a uma pergunta de Armandinho eu respondi: "Tomara!" Mário de Andrade me pegou vivamente pelo braço. "Você também vem. Uma pessoa que fala tomara, tomara, meu Deus! - que gostosura! - tem direito a beber minha caninha. Ah, não! você vem!"

            E eu fui. E eis como venci Mário de Andrade, pela linguagem. Em casa dele bebemos toda a garrafa de caninha. Houve grandes confraternizações. E hoje em dia, mal acabo de escrever um livro, corro para Mário de Andrade. Ele critica impiedosamente, inefavelmente. Anota as margens. Sinto que gosta de meus poemas, mas tem uma "diferença" qualquer com minha poesia. Eu o acho uma criatura esplêndida, com todas as suas manias. E que bom poeta! Poucos literatos no Brasil terão uma figura tão vasta e universal, apesar do seu fanático regionalismo. Conheço gente que o acha fiteiro. Mas a esses eu direi - lede-o para entendê-lo: 

                  Muito de indústria me fiz careca 
                  Abri salão nos meus pensamentos. 

            Ou ainda: 

                  Danço para não chorar. 

            Também em São Paulo conheci Oswald, também de Andrade. Achava-me no Hotel Esplanada, no quarto de Manuel Bandeira, que deveria ir jantar com o poeta de Pau-Brasil. Ao saber quem eu era, prorrompeu em gargalhadas positivamente obscenas: "Então é esse menino, com esse ar esportivo, o autor daqueles versos compridos como um iole-a-8! Mas você não tem medo de fazer tanta força nessa regata desigual, seu poeta?" 

            Eu me abespinhei um pouco, mas não fiz má cara à piada. Dei uma em troca. E logo a cordialidade se estabeleceu. Saímos os três e jantamos em boa camaradagem. Oswald estava brilhantíssimo. 

            Procurava-o sempre que ia a São Paulo. Gostava de seu jeito e de sua casa. Boa casa para a gente se sentir à vontade, entre originais até de Picasso, vendo Oswald construir de um lado e arrasar de outro. O poeta tem a paixão da literatura. É um demolidor, rnas é, por outro lado, um espírito altamente construtivo. Gosto dos homens assim, mutáveis mas intransigentes enquanto crêem, bem raciados, os homens que gostam da sua casa e da sua mulher, não os femininos, os impotentes ou os fracos. Oswald tem essa grande qualidade macha que lhe dá sumo à vida. Quase todo o mundo o teme. Temo-lhe o destabocamento e a sátira irresponsável. Compreendo que não gostem dele. Mas no fundo é um homem fácil de se gostar, com um grande complexo sentimental de paternidade, um homem de coração gordo e violento. 

            Homem que vi estranho foi o poeta Carlos Drummond de Andrade. Conheci-o para lhe pedir um favor e desde então nunca mais fiz outra coisa. Mas já tenho ido lá para pedir-lhe o simples favor de vê-lo um pouco. Achei-o intratável a primeira vez, parecia um estilete e não um chefe de gabinete. Saí impressionado, pensando comigo que nunca poderia ser amigo de um sujeito assim. 

            Não sei se ele gosta de mim ou não, não me interessa. Eu o tenho em especial carinho. Invejo-lhe a poesia descarnada e lúcida, e como que iluminada por um sol fluido de aurora. Tenho em alta conta sua figura humana, seca e vibrátil, laminar. Não tem importância o modo como ele lhe trate, às vezes desconhecendo a sua ilustre pessoa. O que importa é que, uma noite, num bar, depois de uns chopes, a máscara do poeta esgarça-se num riso silencioso, que lhe vem de uma paisagem casta e longínqua na alma, e sua cabeça baixa se levanta, suas mãos mortas se reencarnam, e ele tamborila na mesa uma alegria rápida e extraordinária. E então se sabe que o poeta ama perdidamente: 

                  Amor, a quanto me obrigas. 

            O poeta louco Jayme Ovalle, ou melhor, "o místico", como o chamou Manuel Bandeira, foi na minha vida um encontro de que não me esqueço. Conheci-o três dias depois de sua chegada da Europa, em casa de Schmidt. Tinha uma curiosidade enorme em vê-lo. Soube que andava fechado, não querendo receber ninguém, sofrendo as agruras da dor-sem-nome, roído de saudade da Inglaterra. Mas combinei uma tramóia com Schmidt e fui, com um ar de quem não quer. Encontrei o poeta no meio da sua garrafa de uísque, rodeado pelo grupo familial atento e respeitoso. Seu monóculo me recebeu mal, enquanto seu olho de águia me considerava com ar pouco amigável. Calei-me e fiquei quietinho, espiando passear o gênio. 

            Passado um tempo Ovalle sentou-se. Todos se voltaram para ele. Alguma coisa ia suceder. Mas ele limitou-se a falar fanhosamente para Schmidt: "Põe um Bachzinho aí na vitrola pra mim, põe?" 

            Só então se virou para o meu lado. Ficou me olhando um pouco, eu gelado mas firme, sorrindo um riso covarde. Ao fim de um tempo sorriu também. 

            - Ele é muito bonzinho - disse, apontando-me com o dedo. - Ele é tão bonzinho que um dia... que um dia ele é capaz de sair correndo assim, compreende, sair correndo assim, e aí... 

            Mas não cheguei a saber o que ia acontecer comigo no fim da corrida. Schmidt voltava com um livro de poemas do poeta, poemas ingleses, feitos na sua amada Londres. Ovalle relutou um pouco, mas acabou lendo quase tudo. Eu fiquei ouvindo sem compreender muita coisa, mas compreendo muita coisa do homem a que ouvia. Ovalle chorou, ajoelhou-se, às vezes se curvava até o chão para em seguida saltar como um calunga doido, falava música, fazia gestos tão patéticos que parecia querer se agarrar ao xale invisível de Nossa Senhora. 

            Juro que fiquei fisicamente cansado da emoção. Quando resolvi sair, o poeta quis vir comigo. E fomos juntos por Copacabana afora. Depois entramos num táxi para a cidade. Na cidade pusemo-nos a beber - e bebemos tanto que nem as estrelas do céu ou os peixinhos do mar fariam conta do que bebemos. A madrugada nos encontrou na Lapa, comendo um filé à moda com vinho verde. A expressão do poeta sossegara muito, e ele agora me contava sobre as coisas do mistério, num tom simples e persuasivo. Ouvi de sua boca a explicação integral da famosa Gnomonia. Ouvi-o falar de Bach e Beethoven. Ouvi-o exaltar as mulheres da vida. Mais tarde, às sete horas da manhã, assisti ao seu encontro com Manuel Bandeira, encontro emocionante, depois de quatro anos de ausência, e um pequena rusga. Do quarto de Manuel fui para a Censura Cinematográfica, onde dormi durante a projeção um sono de duas horas e liberei todas as fitas. 

            Até hoje, quando nos encontramos, sinto entre nós a fidelidade a esse primeiro encontro. Descobrimos coisas, fazemos caso de tudo, nunca há silêncio entre nós. 

            Meu amigo Pedro Nava, ou melhor, o dr. Pedro Nava, é um grande poeta brasileiro que também é médico. Um olho clínico, como dizem seus colegas. E eu digo amém, porque Pedro Nava é o meu médico. Já me diagnosticou uma apendicite, e guardo bem a lembrança - a última lembrança ao ser anestesiado - de seu olho clínico posto em tristeza diante da possibilidade de um trespasse meu. Pedro Nava, sendo como é meu amigo, contou-me mais tarde o medo que tivera que eu morresse, não tanto porque fosse eu paciente, mas porque era seu amigo. É verdade que se morre muito nesse negócio de operação, por mais que o cirurgião seja hábil, como era no meu caso. Tive um medo póstumo, quando o poeta me fez ver essa possibilidade. 

            Mas já que se falou em morrer, em se tratando de Morte o poeta Pedro Nava comparece e fica triste. Porque se trata de um ser votado à Morte, tanto em sua profissão, onde luta exemplarmente contra ela, como em sua poesia, onde é todo dela. Pedro Nava é o criador da idéia sinistra do defunto que todos nós carregamos conosco, a quem damos de comer e beber e para quem arranjamos mulher; defunto que se senta, se levanta, anda na rua, vai ao cinema, escova os dentes e, no fim da noite, se deita imóvel para imitar o descanso eterno. 

            Como se pode deduzir, Pedro Nava é um ser terrível, um perturbador da ordem, um russo. É o poeta russo Pedro, o grande. Só se sente bem ou no seu hospital, onde combate, com uma prudência de conhecedor a fundo, todos os candidatos à Morte; ou perturbando a alma alheia com sua grande tristeza - e por que não dizer dor-de-corno? - sua ternura úmida e animal de mastim fiel, e sua poesia lancinante.

            É um grande Pedro! Travei relações com ele em casa de Rodrigo Mello Franco de Andrade - esse Rodrigo cuja amizade é para mim uma coisa extrema na vida - e o poeta batalhou para me manter a distância. Não queria mais saber de amigos, que são criaturas que atrapalham muito, sofrem, adoecem, morrem, é o diabo! 

            Mas pouco a pouco venci o poeta. Hoje ele é um desses quatro ou cinco que já não distingo mais em meu sentimento. É um homem espantosamente rico e inteligente. Não há balda, como se diz em Minas, que lhe passe. Sua capacidade inventiva, no domínio da psicologia lírica, é assombrosa. Marca não importa quem, com dois ou três traços essenciais. Sua poesia bissexta, como se diz, segundo a expressão de Prudente de Morais Neto - porque vem de raro em raro -, é excelente. Quem não leu "O defunto" não sabe o que é sugestão de morte. É o poema mais "incômodo" que há. Perturba o tempo todo, irremediavelmente. 

                  Quando morto estiver meu corpo 
                  Evitem os inúteis disfarces... 

            E por fim meu primo, meu amado primo, que também é Pedro e é o anjo dos "Dantas" - Prudente de Morais Neto. É preciso concentrar-se muito para dizer a menor das suas qualidades. Sua poesia - que ele chama bissexta - é o próprio lirismo. É um canto japonês. É o saquê. E fica-se sem saber o que admirar mais nesse homem: se essa alma que aninha tudo com o mesmo amor, o bem e o mal, o puro e o impuro; ou o seu espírito lógico, que separa com precisão matemática o justo do injusto, embora justificando a ambos. 

            Quem o vê a primeira vez pode bem achá-lo bobo - e muitos bobos têm caído nessa esparrela. Se eu tivesse que "procurar-lhe o bicho", diria talvez que Prudente parece um bom chantecler, com seu topete, seu olho azul, sua cabeça que lhe movimenta todo o corpo ao se voltar, e esse corpão genial, terne, terno, túmulo ideal para as confidências, os segredos, os sentimentos mais íntimos, as paixões mais puras, as contemplações mais extáticas. 

            Porque esse homem, de aparência burguesa e de inteligência prática, é um contemplativo. Não se irrita, não quer mal a ninguém, perdoa a injustiça que lhe fazem. Mas é justo e preciso como a luz elétrica. Não fica escaninho que lhe passe despercebido quando se volta para o julgamento de alguém ou de alguma coisa. Não tolera a mentira ou o engano. Prefere sofrer os males de uma verdade desnecessária que o remorso de uma mentira generosa. E isso não porque se ache demasiado íntegro diante da vida. Porque o erro o nauseia e desequilibra. Seu caminho é um doce movimento para a frente, um doce movimento de braços abertos.
       
            Eu vos incito a amá-lo muito, vós que o não conheceis ou o admirais apenas. Não importa a posição em que estejais, direita, esquerda, centro avante, ou retaguarda. É preciso amá-lo com o maior carinho, com maior doçura e deixar que ele vos ame também, porque a glória desse mundo é pouca e o amor desse homem é uma grande glória. 

            Mas estou me tornando patético. Ou não estou? Não sei. Sei de uma coisa: que Prudente de Morais Neto, o criador da Cachorra, sobrinho de Manuel Bandeira e meu primo pelo coração, foi o homem mais exato que já vi até hoje. E a propósito disto, cabe uma consideração. 

            Que grupo excelente fazem todos esses homens! Olhem que estive viajando, conhecendo gente nova, tive contato com grandes poetas ingleses, ouvi-os falarem, vi outros grupos de homens de espírito; mas nada assim como eles. Essa força lírica, essa poesia magistral que estão criando para o Brasil, esse impacto de ternura e sordidez, essa coragem diante da vida, essa modéstia real, esse socorro mútuo, essa discrição e esse escândalo com que vivem, só os encontrei neles, aqui entre nós, nesses pequenos grupos dentro do grande Grupo. E faz um bem terrível pensar nisso. Que onde quase todos esperam recompensas, esses homens não esperam nada, apenas a fidelidade mútua. Que onde quase todos usam de processos turvos, muitas vezes inconfessáveis, esses homens agem limpamente, sem sequer se dar conta disso. Vivem em meio à ganância geral com armas desiguais, senão desarmados. 

            São almas caríssimas, perfeitas de sentimento. Quando se queixam o fazem na melhor poesia, mas porque o fazem assim se queixam pouco. Não transigem com a má literatura: sabem esperar o amadurecimento da palavra a fim de que ela não traga engano. E são homens que se iludem, sujeitos às mesmas tentações e às mesmas quedas, com a mesma sensação da própria fraqueza e da própria sordidez. 

            Mas neles até a sordidez é inefável. Eis o que os diferença. Neles a sordidez se transforma em poesia e a poesia em canto. E não é essa a maior grandeza do poeta? É possível ser-se poeta sem ser sórdido?


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      o un ciego soñando
      y en ese vuelo y en ese sueño
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      siendo guardián en tu cielo
      y tren de tus ilusiones."
      (Hánjel)





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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:22

      POR QUE AMO PARIS

      , Senhor, 12/2022



           Em dezembro de 1938, um jovem bolsista brasileiro para a Universidade de Oxford (com perdão do estilo Time Magazine...) tiritava num quarto de pensão em Londres, a que nada, nem mesmo seu coração apaixonado, conseguia aquecer. Tratava-se, segundo as manchetes, de um dos mais terríveis invernos do século e era impossível sair por muito tempo à rua sem que as orelhas do malfadado se descolassem e seu nariz saísse batendo as asinhas. 

            O jovem bolsista, envolto em mil cobertores, lia sem parar os seus primeiros autores ingleses de sustância e que, por essa razão, associam-se até hoje, em sua mente, à idéia de frio: John Bunyan e Jane Austin. Um tal enfurnamento, passado usualmente em posição horizontal, determinou, é claro, uma reviravolta completa em seus horários. Ia dormir quando a neve colada aos vidros de sua janela (sua primeira neve!) começava a fazer-se mais alva com a luz da madrugada; e acordava à tarde, com o café da manhã a olhá-lo de mau humor com o seu negro olhar gelado. Sua inapetência era tal e seu frio tão grande que data daí um respeito britânico pelo uísque como agente calefator; cujo uísque, vazado a princípio em poções preventivas, provou ser tão útil que começou a ser ingerido em doses federais; e a verdade é que o jovem bolsista ainda não estava preparado para tanto. Seu temperamento imprudente e sua impaciência entraram em ação e uma noite ele saiu. O resfriado que apanhou resultou tão recalcitrante que, juntando umas poucas libras, resolveu ir curá-lo em Paris.
       
            Em boa hora! Nunca mais lhe sairia da memória sua chegada, sem dinheiro e sem orientação, a essa cidade amanhecente que teria um papel tão decisivo em sua vida. O táxi que tomou na estação devia ser um remanescente da grande corrida para o Marne, na Guerra de 14, e o chofer bigodudo um velho poilu, a quem por certo não faltaria uma cicatriz de baioneta no flanco. Era tudo azul e cinza-azul, como no soneto de Rubem Braga: uma coisa indescritível de beleza. E como a beleza está no homem e não nas coisas, esse seria o seu instante de estesia máxima diante de Paris, para a qual, desembarcando muitas vezes depois, em circunstâncias parecidas, deitaria um olhar apenas amigo ou conivente. 

            O jovem bolsista lembra-se de haver pedido ao chofer que o levasse a um hotel qualquer bem barato. O velho olhou-o por sobre o ombro com uma severidade não isenta de simpatia, ubicou-se por uma ponte, deu voltas num labirinto de pequenas ruas e afinal parou diante de uma fachada très vieux Paris, onde havia escrito: Hotel St. Thomas d'Aquin. Era na rue Près-aux-Clercs, no coração do Quartier Latin. Lembras-te, Di? 

                  Lembras-te, Di
                  Cavalcanti, Di 
                  Amante da noite 
                  Di superior 
                  Ao dia, diante 
                  Do amor, ante 
                  Rior ao México 
                  Anterior a tudo 
                  Di sem hora de 
                  Boina se rindo 
                  Se rindo de 
                  Consuelo de 
                  Saint-Exupéry 
                  E do sargento 
                  Tirso Di de 
                  Madrugada chegando 
                  Da Rádio Di 
                  De la Coupole 
                  Bebendo champagne 
                  Dez francos a taça 
                  Diagrama de Di 
                  Mi sol si ré lá 
                  Bordão que eu vi 
                  Ébrio de seios 
                  Ventre coxas Di 
                  Di de Montparnasse 
                  Di de Paris. 


            Lá vai ele, o jovem bolsista brasileiro para Oxford, sem um franco no bolso e um argueiro no olho que não o deixa ver Paris pela primeira vez. Dinheiro, o amigo Cícero (1) lhe emprestará algum, se for preciso. O argueiro é que são elas! É terrível estar alegre assim e ver Paris através de lágrimas. 

            - Monsieur, voulez-vous m'enlever cette vache de dans mon oeil? 

            O farmacêutico espia. O la-la! 

            - Ça doit vous faire du mal, mon p'tit. 
            - Ça m'empêche de voir Paris. C'est mon premier voyage. J'ai pas d'argent sur moi. Je vous payerai demain. 

            Ah, eis que a visão do Louvre se enfoca. Que maravilha! O jovem bolsista pega o Pont des Arts, o lenço enxugando o olho esquerdo, o passo rápido, ao assalto da Beleza. 

            - Hey, Milreis! 

            Não é possível...! 

            - Half-a-crown! 

            São seus amigos Reginaldo Maudling (2) e Charles Steward (3), o primeiro de Merton College, o segundo de Bailliol, em Oxford. Seus melhores companheiros na Universidade. Gente cem por cento. 

            - You, buggards! 
            - Why the hell are you crying? 

            O jovem bolsista explica. Maudling ri a sua boa risada: 

            - Bloody hell! I think we sould have a beer and celebrate! 

            Adeus, Palais du Louvre. Rios de cerveja correrão. Eu conheço Maudling, e sobretudo Steward. Menino danado! Para agüentar tanto líquido, algum tem de escapar pelo ladrão... 

            Três meses depois, em março de 1939, o jovem bolsista, de volta a Paris, foi apresentado a uma menina de 17 anos, fina de corpo, séria de semblante e com uns olhos fugidios de corça. A querida amiga que nos apresentou disse apenas: 

            - Você conhece minha sobrinha... 

            Mas, em sua distração e volubilidade usuais, esqueceu-se de acrescentar: 

            - Você vai se enamorar dela daqui a 18 anos, numa festa em casa de um arquiteto amigo seu, no Rio. Cerca de um ano depois vocês irão se reencontrar aqui em Paris, e você ficará irremediavelmente apaixonado por ela, e há de sofrer como um possesso todas as dores de sua paixão, e na Quarta-feira de Cinzas de 1959 você terá um desastre de automóvel cerca de Petrópolis, onde ela estará veraneando, e você, coberto de sangue, ao se sentir ir morrendo, ela tão perto, olhará a sua morte com um infinito sentimento de pena porque tudo poderia ter sido e não foi; mas você preferirá morrer a ter de viver sem ela, sobretudo depois de lhe ter dito, como disse, numa noite de Sexta-feira da Paixão, no Club St. Florentin, 15 rue St. Florentin, que você a tinha dentro de você sem saber desde a mocidade, desde aquele dia, 19 anos antes, em que eu a apresentei a você, como estou fazendo agora. E você escreverá para ela a "Elegia de Sexta-Feira da Paixão", que dirá o seguinte: 

      Amiga, deixa que a noite escolha hoje o teu vestido 
      Em vez de Dior, Dessès ou Givanchy. Não te esqueças 
      É Sexta-Feira da Paixão. Os castanheiros 
      Estão apenas acordando do longo inverno que passaste 
      Ao sol, longe de mim. Se vires a Tour Eiffel como uma doida 
      Declamando Éluard, não te impressiones: 
      Hoje tudo é possível. Lembra-te 
      É Sexta-Feira da Paixão. Provavelmente 
      Se formos até Pont Mirabeau, encontraremos 
      O sargento Appolinaire debruçado mirando o Sena 
      Na esperança de alguma afogada. Ah 
      As afogadas do Sena! Sinto-as 
      Deslizando no meu peito… Mas 
      Não te impressiones tampouco com as loucuras que eu disser. 
      Olha antes minhas mãos. São 
      Como pássaros sem ninho, precisam tanto, tanto 
      Ser aquecidas… Vem, amiga, vestida de noite; conta 
      A Fábula da Mãe-que-não-Veio. "- Olhe, meu anjo 
      Não se constranja, mas se você não puder sair sozinha 
      Comigo (figa! diz que pode, diz que pode!) eu compreendo…" 
      Amor! e já te amava tanto antes de amar-te... "- Lembro 
      Tão bem de você, era março de 39, nós vínhamos 
      Pelo Boulervard des Italiens, você teria o quê? uns 16 
      17 anos..." (como uma jovem corça arisca 
      Ela era, olhava-me de lado, sorria 
      Apenas com as comissuras, era linda 
      Como um Maillol). "Não, eu posso sim, acho que posso 
      Não há mal nenhum, isso é Paris, você não acha?" 
      (Acho, meu anjo. Acho tudo o que você quiser. Acho que hoje 
      É Sexta-Feira da Paixão, e o Cristo não poderia ter escolhido melhor dia 
      Para morrer de amor por nós.) 
      "- É, é isso mesmo. Afinal de contas 
      Eu sou um velho amigo da família"... (Coisa linda 
      Vestida de noite, eu vou te amar tanto 
      Mas tanto que o meu amor será captado 
      Por todos os radares, e os radioamadores 
      De todo o mundo permanecerão em vigília 
      Para ouvir, banhados em lágrimas, pulsar o meu coração.) Amada! 
      Vamos comer camarões no "Stresa","sauce tartare"? Depois 
      Pediremos "fraises du bois" que cobriremos com todo o açúcar 
      Que houver no açucareiro. "- Você gosta muito de açúcar? 
      De música? De ver cinema bem na frente? De 
      Filhinho? De silêncio?" (Então por que não saímos daqui agora mesmo 
      E convolamos?) Ah, meu amor 
      Que vontade de beijar as árvores noturnas! (enquanto busco 
      Acertar o meu passo pelo teu: coisa difícil 
      Porque te moves num mínimo de espaço). Amiga 
      Que te moves num mínimo de espaço, que graça 
      A tua! Como pode uma coisa tão pequena 
      Ser tão grande? Onde vão ter esses imensos infinitos 
      Que partem dos teus olhos? E qual é o nome 
      Do ar que te circunda? "Sous le Vent" de 
      Guerlain? Ah, não seja esta a dúvida…Virarei armador 
      Irei escolher sementes, flores, resinas 
      Nas mais inacessíveis ilhas, de cujo extrato 
      Criarei perfumes capazes de te matar de amor por mim. "- Você 
      Gostaria de ouvir um bom jazzinho num clube privativo 
      De que sou sócio? É simpático… gente moça, boa música 
      Borboletas nas paredes. Há uma caixa 
      Só de espécimes do Brasil…Vamos?" (figa!) 
      "- É, podemos ir um instantinho, só não quero 
      Chegar tarde demais…" Amor! 
      Ao dançar senti teu rosto roçar o meu, minha boca 
      Aflorou tua pele, o meu beijo 
      Veio de longe, e o meu amor despenhou-se do vácuo 
      Corno um negro sol incendido, varando milênios 
      De solidão e desencontro, recuperando 
      Infinitos perdidos, espaços 
      Abandonados, arrastando no seu vórtice 
      Astros sem luz, estrelas moribundas 
      Mundos sem amanhã. 


      *


      Por isso, porque és só minha e eu sou só teu 
      É que eu não sou mais eu. 
      Foi bem mais que um milagre, vida minha... 
      Foi como a própria vida: 

      ACONTECEU.


      Uma noite, dois anos antes, bêbado e desesperado, eu fora ter a Pont Mirabeau... 

                  Uma noite, em Pont Mirabeau 
                  Fui me encontrar com Appolinaire 
                  Como falamos de mulher 
                  Como falamos de Rimbaud! 
                  Não sei, mas alguém que me viu diz 
                  Que eu tinha tomado muito uísque. 
                  Sob a ponte corria o Sena 
                  Como no poema do poeta 
                  A água corria negra e inquieta 
                  Como a vazar da minha pena. 
                  Amar? Melhor morrer... Appo- 
                  Linaire, pálido, concordou. 

                  Merda! Merda! Três vezes Merda! 
                  Vociferei para a cidade 
                  Enquanto a réplica de pedra 
                  Da Estátua da Liberdade 
                  Perscrutava com um olhar frio 
                  Paris à escuta em torno, e o rio. 

                  - T'es dans un bien sâle état 
                  Mon pauvre vieux. - Appolinaire 
                  Disse para me consolar 
                  Assim com um ar de quem não quer. 
                  - Va te efaire foutre! Tu m'emmerdes! 
                  Respondi - e ele ficou verde. 

                  E vomitei dentro do rio 
                  A gargalhar do caporal 
                  Que, os punhos cerrados, partiu 
                  Num duro passo marcial 
                  Enquanto duas mulheres, defronte 
                  Vinham andando pela ponte. 

      *


      Uma outra noite, perdido em Menilmontant, eu tivera a visão da miséria. Era um beco sem saída, um impasse, um cul-de-sac estreito, fétido e perfeitamente comme il faut. 

                  Un cul-de-sac aux murs étroits, 
                  Un p'tit chat noir que se promène, 
                  Un vieux soulard que a de le veine 
                  De se trouver coincé comme ça; 
                  Une fenêtre qui s'entr'ouvre, 
                  Une main qui sort et qui vide 
                  Un jules tout plein dans le vide 
                  Juste sur la tête du clochard. 

                  Un chien qui fouille dans la poubelle, 
                  Un chien qui aurait suivi Prévert, 
                  Une putain qu'sent Ia vaisselle 
                  Et qui aimerait prendre un verre; 
                  Des voix de gens qui font l'amour 
                  Et qui vachement en profitent, 
                  Un monsieur du XVlème qui a peur 
                  Et dont les pas s'en vont bien vite... 
                  O cul-de-sac aux murs étroits 
                  Combien des gens ressemblent à toi... 
                  Combien y en a-t-il dans la rue 
                  Qui sont des culs-de-sac qui puent... 
                  Combien de grands dames aux grands airs 
                  Combien de riches et gros bourgeois 
                  Combien de hauts fonctionnaires 
                  O cul-de-sac ressemblent à toi! 

            Mas uma tarde, reencontrado em Paris, as mais fundas feridas cicatrizando nos óleos do amor, eu tive a visão da Beleza. Era ela, Notre Dame de Paris, a grande catedral, a cuja porta eu aguardava a minha amada, e que com braços maternais nos abrigava da multidão, isolava-nos no nosso mundo de ternura e tristeza. Ali, a dois passos, ficava a rue St. Julien-le-Pauvre. Havia uma casa de chá de tipo inglês chamada The Tea-Cady: 

                  Eu te levei ao "Tea-Cady" 
                  Na Rue St. Julien-le-Pauvre 
                  Very British o "Tea-Cady" 
                  Na Rue St. Julien-le-Pauvre... 
                  Veio tea, toast and marmelade 
                              O my sweet Lady! 

                  Um mês ocultamos ali 
                  O nosso mágico impossível 
                  Era tão belo tudo ali 
                  Que parecia irremovível 
                  Mas, ai, chegava sempre a hora 
                              De ires embora. 

                  Hoje, embora incréu, não me assombra 
                  Saber que ter-te e ser feliz 
                  Deve-se a havermos estado à sombra 
                  De Notre Dame de Paris 
                  E a meu amor ter dez no exame 
                              De Notre Dame. 

      *


            Eis por que não quero fechar esta reportagem lírica sobre a bem-amada cidade sem recitar-lhe uma oração a ela, a gloriosa Nossa Senhora de Paris, que Xangô meu pai há de proteger, são Jorge meu padrinho há de defender, e que há de viver para sempre na sua floresta gótica para abençoar os namorados de todo o mundo que se encontram em Paris e que vão ocultar na sua sombra a angústia de não poderem viver o próprio amor. 


      1 Cícero Dias, imigrado para Paris dois anos antes 
      2 O ex-Paymaster General do Gabinete Macmillan. 
      3 Oficial aviador, morto em combate na Batalha de Londres. Maudling me chamava "Mil-réis" e eu o chamava "Half-a-crown", pelas moedas de nossos países.


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      y en ese vuelo y en ese sueño
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      siendo guardián en tu cielo
      y tren de tus ilusiones."
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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:23

      POR QUE AMO A INGLATERRA

      , Senhor, 12/2022



           A Inglaterra não foi para mim um amor à primeira vista. Ao chegar a Londres, em agosto de 1938, em gozo da primeira bolsa para Oxford, dada a um brasileiro pelo Conselho Britânico, a cidade surpreendeu-me pela sua reserva. Senti, de fato, a poesia do grande porto, com meu navio a penetrar lentamente o Tâmisa nas luzes de uma antemanhã cinza-azul, toda povoada de lentas asas brancas de gaivotas. Mas quando enfrentei as calçadas de Piccadilly Circus, cerca de meu hotel, senti como se a cidade imensa estivesse se divertindo em observar o rapaz carioca - o rapaz carioca em quem o moleque de praia era doublé de um poeta um tanto metafísico e esotérico - em seu primeiro contacto com a austeridade do Império Britânico. E encabulei. Eram seis horas da tarde e havia multidões pelas ruas desembocando de Regente e Bond Street, multidões que passavam por mim sem me olhar, a dar-me a sensação de que eu era justamente o que a minha vaidade de jovem poeta premiado não podia permitir que eu fosse: uma forma liliputiana a mais a passear no rosto gigantesco de Gulliver, acorrentado, mas a divertir-se com a pequenez dos seus conquistadores. Lembro-me de que, num dado momento, passou por mim uma família hindu, vestida a caráter, os homens de turbante, as mulheres envoltas em saris. Eu nunca tinha visto um hindu na minha vida. Aquilo foi demais para mim. Fui refugiar-me atrás de um sherry no bar do meu hotel, de onde só saí para ir dormir, às nove da noite. No quarto, sozinho, senti um isolamento atroz, que me parecia vir da cidade infinita a trazer-me de vez em quando, adormecidos pela distância, os ruídos informes de sua vida noturna. 

            Foi só três ou quatro dias depois, ao tentar atravessar uma rua no momento errado, que me senti realmente protegido pelo Império Britânico, e comecei a achar que, malgrado a minha selvageria de menino de ilha, poderia amar a Inglaterra. Ao avançar, pousou-se sobre o meu ombro uma mão, a um tempo imperiosa e amiga, que me fixou ao solo sem maior esforço. Olhei para o lado e vi, acima, muito acima de mim, mirando em frente, esse ser especial no mundo que se chama um guarda inglês, um constable: alto como a Torre de Londres, firme como a rocha de Gibraltar. Quando o momento de atravessar chegou, a pressão desfez-se do meu ombro, a mão retirou-se e eu pude partir. Dei-lhe um olhar grato, a que ele respondeu com um outro, em que senti um frio e inteligente senso de humor. 

            Uma semana mais tarde, numa tarde agônica, constantemente cortada de uma chuva fina e neurastenizante, estando eu a comprar uma entrada para um concerto de Yehudi Menuhin, vi uma fila de guarda-chuvas formada numa rua cerca do teatro. Dirigi-me para lá. Pouco depois passava, num automóvel, um senhor, ou melhor, um guarda-chuva famoso, a agitar na mão uma folha de papel para o povo que o aplaudia. Nesse senhor reconheci o primeiro-ministro Neville Chamberlain e lembrei-me de que ele voltava de Munique. O papel em questão era o pseudocompromisso de não declarar guerra, de Hitler, que, apesar disso, logo em seguida incorporaria a Tchecoslováquia ao poderio alemão. Não dei muita importância ao fato, pois naquele tempo eu tinha apenas 24 anos e a política não era o meu forte. Mas dois dias não eram passados e vi no rosto do homem das ruas de Londres a "ressaca" daquele triste e inútil desfile. Vi o povo de Londres de siso grave e olhar preocupado. Li pela primeira vez nos seus traços o sentimento contido da cólera e achei que, desabafada, essa cólera deveria ser terrível. 

            Não me lembro mais se foi na véspera de Munique, ou pouco antes, que correu a notícia de que Londres seria bombardeada. Eu passara o dia em casa de um conhecido e ao sair à rua, sem saber ainda de nada, entrei no fog mais espesso que já vi na minha vida. Encostei-me a um edifício e resolvi esperar, e não sem um certo sentimento de estranheza no coração. Foi novamente um constable que me tirou da dificuldade, encaminhando-me, como um guia de cego, até um táxi; e só quando cheguei ao meu quarto, numa pensão para onde me mudara - um quarto no subsolo, desses de onde se vê, através da janela, apenas os pés da humanidade - é que encontrei um bilhete do British Council mandando-me seguir de urgência para Oxford. Do céu noturno de Londres chegava-me, maciço e constante, o ronco dos aviões de caça, à espera de qualquer eventualidade. Era a minha primeira experiência de guerra, mas não tive nenhum medo e resolvi desobedecer ao Conselho Britânico. Deitei-me e fiquei à escuta daquele ruído informe, sinistro e pressago, o ouvido atento ao silvo eventual da primeira bomba ou ao estilhaçar da primeira explosão. Aquilo tudo era, para mim, uma grande aventura, uma grande aventura que, misteriosamente, me aproximava da Inglaterra e do seu povo. Achei dentro de mim que seria uma covardia eu desertar, abandonar Londres às bombas alemãs, não estar presente a sua defesa, não defendê-la eu mesmo - à cidade que tinha mãos para proteger minha vida, cuidados maternos para com a minha inexperiência. E assim foi que acabei por dormir. Nunca cheguei a confessar ao Conselho Britânico,a minha indisciplina, o que faço agora, certo de que, no seu fair play, a nobre entidade a estimará mais do que estimaria uma obediência mecânica e menos proveitosa, do ponto de vista da experiência e do coração. 

            Uma certa noite, depois de alguns drinques - e possivelmente one too many - eu cismei de subir o underground de Piccadilly Circus no sentido inverso. A escada rolante desce a uma velocidade razoável, e tratava-se de ultrapassar essa velocidade e atingir a plataforma superior da grande estação. Lancei-me à prova, que até hoje não sei como consegui terminar, tal foi o esforço empregado. Pois bem: fui formidavelmente encorajado por todos os que desciam, a me animarem com palavras e aplausos, havendo-se formado uma verdadeira torcida a meu favor. Não houve um só protesto contra a impertinência do estrangeiro a perturbar a boa ordem de um serviço de utilidade pública. Esse foi meu primeiro contato com o espírito esportivo inglês, e uma das razões por que amei a Inglaterra e me senti tão bem em Londres. 

            Depois, em Oxford, muitos outros elementos vieram solidificar a estrutura desse sentimento de afetividade crescente para com a Inglaterra. Lembro-me, por exemplo, da primeira gafe que cometi à mesa de jantar, no grande hall de Magdalen College. Ignorante ainda dos usos e costumes da Universidade, alguma coisa fiz que foi notada pela high table, ou seja, a mesa do deão e dos professores do colégio - os tutors, como são chamados -, o que me valeu receber um bilhete em latim, trazido por um mordomo numa pequena bandeja de prata. Segundo esse bilhete, eu deveria expiar a minha gafe bebendo uma quantidade de cerveja suficiente para afogar um recém-nascido, cuja cerveja me foi trazida num fantástico canecão, cheio até as bordas. Vi todo mundo parar de comer e voltar-se para mim: mais de quatrocentos estudantes em suas capas pretas. Tratava-se de beber ou morrer. Levantei-me, tomei da enorme caneca e iniciei a prova. Até a metade foi tudo muito bem. Mas da metade para baixo, não sei até hoje como consegui ingerir aquilo. Sentia como se a cerveja me fosse sair pelos ouvidos, de tal modo estava locupletado. Mas o fato de ser o primeiro brasileiro com uma bolsa do Conselho Britânico para Oxford impôs-me o dever moral de não fazer feio, custasse o que custasse. E bebi, impulsionado por aquele sentimento cego. Não é preciso dizer como fui encorajado sobretudo na parte heróica da prova, pelos meus colegas. Quando acabei, a ovação foi geral. Dali por diante, todos passaram a falar comigo afetuosamente, e comecei a ser convidado freqüentemente para os loucos parties nos quartos dos estudantes. Aí está Reginald Maudling, ex-aluno do Merton College, atual ministro do Império Britânico e companheiro querido dos dias universitários, que não me deixa mentir. 

            De outra feita, um rapaz cujo nome não me lembro, disse à mesa coisas desairosas sobre o Brasil. Disse-o mais para implicar comigo, pois era o único estudante dos que sentavam perto de mim que parecia não ir particularmente com o meu jeito. Na saída do hall, numa escada, ainda ajuntou algo mais, alto bastante para que eu ouvisse. Desci-lhe o braço, e não fosse a quantidade de estudantes que se aglomeravam na escada e que o sustentaram na queda, é possível que se tivesse machucado seriamente. Fui, muito amolado com a história, para o meu quarto, à espera dos seus padrinhos, que ele me disse mandaria imediatamente, a fim de que nós fôssemos fight it out, nos grounds do colégio. Embora muito brigão em menino, sempre me desagradou a violência fisica, e não sei o que teria dado para ver o assunto resolvido amigavelmente. Pois bem: os deuses da boa educação inglesa atenderam aos meus rogos. Meia hora depois chegavam os padrinhos do rapaz, mas não para me levarem com eles. Para conversarem, sim, com os meus padrinhos, e apresentarem desculpas em nome do meu desafeto. Que ele reconhecia ter-se comportado mal e gostaria que eu esquecesse o incidente. 

            Larguei todo o mundo e fui, correndo e emocionado, ao seu quarto, onde nos abraçamos estreitamente. Depois disso ficamos bons camaradas, e só não o ficamos mais porque, no período seguinte, ele saía da Universidade. Isso chama-se fair play: qualidade que se pode encontrar eventualmente em indivíduos, mas nunca tão universalmente como na Inglaterra. 

            Não foi exatamente fácil para mim a vida em Oxford. Estranhei, de início, a quase total liberdade dada aos estudantes de trabalhar, numa espécie de desafio ao seu senso de responsabilidade. Meu inglês, apesar de o haver eu capinado duramente antes de sair do Brasil, estava longe de ser perfeito, e tive de enfrentar um período preliminar de anglo-saxão, em cima do "Beowful" e outros textos arcaicos da literatura inglesa. Chegava, uma vez por semana, ao quarto de meu tutor em total desalento. Ele me encorajava. Que não desanimasse, era assim mesmo, logo me habituaria. Paralelamente, freqüentava o curso de poesia do professor Fox, e devorava os livros que constituíam meu dever semanal. Mas atrapalhava-me muito o estado altamente lírico em que o ambiente universitário me deixava, agudizado ainda mais pela leitura, por minha conta, dos poetas modernos. À noite, em meu estúdio, pegava o violão, que tanto encantava minha landlady miss Mourdaunt, e me deixava estar, cogitando versos, sonhando a forma nova de minha poesia, que deveria realmente revelar-se a partir daí. Depois murava-me contra a poltrona, com uma tábua de escrever, e fazia versos sem parar. Quando me faltava o espírito, traduzia literalmente os sonetos de Shakespeare, que procurava depois recriar em português. Vivia às voltas com o dicionário de Oxford. Sabia que ali, no meu colégio, tinha estudado Shelley, um poeta grandemente amado. Tudo isso me perturbava muito. Às vezes saía à noite, pelas vielas internas, para um passeio a coberto dos proctors, os guardiães da Universidade, que volta e meia passavam, nos seus bowler-hats, à cata de estudantes noctívagos. Sofria da beleza daqueles muros ilustres, daquela pedra patinada por séculos de cultura, como a exsudar dentro da noite o calor de sua sábia austeridade. 

            Foi talvez o período mais fecundo de minha vida de poeta. O verso, a principio timidamente, foi-se afirmando numa forma cada vez mais enxuta e clara, com um anseio muito maior de comunicação. O soneto, principalmente, começou a impor-se a determinados temas com uma prestança nunca experimentada. Dois terços de meu livro Poemas, sonetos e baladas foram escritos em Oxford, a bem dizer nos primeiros seis meses universitários. 

            Houve outros sofrimentos também, tirante os da vida puramente escolar. O caso é que, no Brasil, eu tinha remado, cerca de um ano, no Clube de Regatas do Flamengo, sob os palavrões de ensinamento de um palamenta famoso como "Engole-Garfo", que fizera num iole-a-dois o raid Montevidéu-Rio de Janeiro. Tratava-se de um ambiente da mais total boçalidade, mas eu saíra do Clube sob a impressão de que era um remador. Assim é que, quando me perguntaram que esportes queria praticar, disse imediatamente: remo e boxe. Quem sabe não chegaria a disputar um dia um campeonato intercolegial...

            Comprei calções extraordinários, camisas de lã fabulosas e lá fui, através de Christ Church Meadows, para a barcaça de Magdalen College, ancorada à margem do Isis, que é o nome universitário do Tâmisa em sua tranqüila passagem por Oxford. O instrutor pôs-me num esquife e, de sua bicicleta, à margem, ordenou-me com um alto-falante manual que desse umas poucas voltas pelo rio, que era para ele julgar de minhas possibilidades. O resultado é que, eu, o remador do Flamengo, tive que remar 15 dias a seco, num esquife especial colocado em terra, para reaprender tudo de novo. Desde a posição das mãos nos remos até o tempo das remadas, estava tudo errado. Fiquei meio humilhado, mas embora nunca tivesse tido a honra de remar pelo meu colégio, nem por isso deixaram de me colocar numa guarnição que, nas frias manhãs de Oxford, remava como um só homem, antes da ducha quente na barcaça de Magdalen College. 

            Com o boxe a experiência foi mais dolorosa ainda. Comprei luvas de seis onças, calções de primeira qualidade, sapatos apropriados, e ingressei na Academia da Universidade. Tive um mês de instrução, aprendendo o a-b-c do boxador, e fazendo muita corda e muito saco de areia para endurecer a fibra. Depois passei para a punching ball e, de vez em quando, fazia um ou dois rounds com o meu instrutor. Mas meu instrutor era um santo, e nunca me acertava à vera. Uma bela tarde, chego à Academia e ele me anuncia ter destacado um aluno mais antigo para me experimentar. Fui para o ringue e não pude deixar de sorrir ante o físico do meu adversário. Tratava-se de um magriço, um rapazinho da minha altura mas muito menos sólido que eu, com as costelas à mostra e uns bracinhos finos, que as luvas pareciam engolir. Resultado, não o acertei uma só vez, e ele encaixou tantos que, no fim do terceiro round, completamente grogue e presa dessa horrível angústia da impotência diante da competência, fui dado como incapaz de continuar a luta. Confesso que não voltei à Academia nem sequer para buscar os meus apetrechos, que tinha deixado lá. 

            Tudo isso, embora não desse ao mundo nenhum grande desportista, não deixou de incutir no primeiro bolsista brasileiro para Oxford um senso de esportividade. Torci muito pela minha Universidade, nas grandes regatas contra Cambridge, que, ai de mim, perdermos nesse ano. 

            E que não dizer de minha grande dívida à poesia inglesa, de que já falei atrás, mas sobre o que quero voltar. Que não dizer do que devo a esses poetas todos que, desde Chaucer, desde os anônimos elizabetanos, comecei a ler e amar, e que tanto me deram nos duros caminhos da poesia. O que não dizer da imensa dívida a Shakespeare, para mim o maior dos poetas da humanidade: das indescritíveis descobertas operadas no texto dos sonetos, sobre que teria feito a minha tese, não houvesse a guerra, que me apanhou em férias na França, impedido a minha volta à Universidade. O que não dizer das noites do terrível inverno de 1938, passadas no meu estúdio de High Street, em companhia de Milton, Dreyden, Blake, Wordsworth, Coleridge, Keats, Shelley, Lear, McNeice, Auden e Eliot; das noites de releitura de tantos clássicos da meninice: Robinson Crusoé, Ivanhoe, Alice in Wonderland e o conhecimento de clássicos novos: Pilgrim's Progress, Pride and Prejudice, Wuthering Heights, The Forsyte, Saga, Jude, the Obscure e tantos outros - o romance inglês a me oferecer um novo panorama da vida e da paixão dos homens e mulheres da Inglaterra. 

            Eis por que amo a Inglaterra, e eis por que sua lembrança ficou em mim, todo esse tempo, viva e exata como a de nenhum outro país jamais visitado e conhecido. Ao voltar a Londres depois de 16 anos, como me foi doce reconhecer ruas percorridas, rever edifícios familiares, olhar os doces telhados de Chelsea, onde morei, em King's Road, e que me sugeriram o canto bilíngüe de minha "Quinta elegia"... E à BBC, onde trabalhei durante as grandes férias de verão de 1938, nos primeiros programas para o Brasil, pude dizer com emoção: já fostes a minha casa. Pois foi em casa que me senti nela e em Londres; como, de resto, em toda aquela bela e grande ilha, ao mesmo tempo apaixonada e discreta, cordial e austera, pátria de poetas como não se viu maiores, na longa luta do mundo para realizar-se em tranqüilidade e poesia.


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:24

      PARÁBOLA DO HOMEM RICO

      Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969



           Todos são poetas à sua maneira, mas é bem possível que, se todos o fossem realmente, não houvesse mais lugar para a poesia. Porque a poesia é a amante espiritual dos homens, aquela com quem eles traem a rotina do cotidiano. A poesia restitui-lhes o que a vida prática lhes subtrai: a capacidade de sonhar. O desgaste físico e moral imposto pelo exercício das profissões, em que o ser humano deve despersonalizar-se ao máximo para atingir um índice ideal de eficiência - eis a grande arma da poesia. Depois que o banqueiro passa o dia manipulando o jogo de interesses do seu banco, vem a poesia e, na forma de um beijo de mulher, diz-lhe que o amor é menos convencional que o dinheiro. Ou o bancário, que passa o dia depositando e calculando o dinheiro alheio, ao ver chegar a depositária grã-fina, linda e sofisticada, sonha em tornar-se um dia banqueiro. E fazendo-o, invade o campo da poesia. Pois tudo é fantasia. Cada ação provoca um sonho que lhe é imediatamente contrário. Tal é a dinâmica da vida, e sem ela a poesia não teria vez.

            Isso me faz lembrar certa noite em Paris, num jantar com meus amigos Marie-Paule e Jean-Georges Rueff, em companhia de um grande comerciante francês, um homem super-rico, dono de um dos maiores supermercados da França, superviajado, superlindo e casado com uma mulher superlinda. Nós nos havíamos conhecido alguns anos antes, em Estrasburgo, onde ele e os Rueff então moravam, e um pilequinho em comum nos havia aproximado, depois de um papo de coração aberto que nos levou até a madrugada. O assunto agora era o mesmo, a poesia, e o nosso prezado homem rico, depois de discutirmos um pouco a extraordinária vida desse jovem gênio que foi o poeta Jean-Arthur Rimbaud, fez-nos ver que não há casamento possível entre o Grande Lírico e o Grande Empresário: ou se é uma coisa, ou se é outra. O verdadeiro homem de empresa ao mesmo tempo inveja e despreza o poeta, uma vez que não se pode preocupar além dos limites com as palavras da poesia. Elas são, para ele, o reverso da medalha: o ouro impalpável. E como as mulheres - dizia-me ele ao lado da sua - são seres devorados de lirismo, sobretudo no amor, o capitalista tinha que pagar seu preço ao artista: e esse preço, via de regra, era a própria mulher. 

            - Elas ficam conosco porque nós representamos poder aquisitivo, podemos dar-lhes as coisas de que necessitam para ficarem mais sedutoras, terem mais disponibilidade para cuidar da própria beleza. Mas essa beleza, elas a entregam a vocês, os artistas. No fundo, as mulheres nos odeiam. O que não impede que vocês sejam todos gigolôs do capitalismo. 

            Ponderei-lhe que já conheci vários homens de empresa que tinham passado na cara mulheres de artistas, mas o nosso prezado homem rico não se deixou perturbar e me disse assim: 

            - É porque não se tratava de artistas verdadeiramente grandes e puros. Seriam, provavelmente, contrafações. As mulheres sentem. As mulheres só abandonam um iate em Saint-Tropez por um apartamentozinho na Rive Gauche à base do amor integral. E esse amor, só o artista verdadeiramente puro pode dar. Nós, os grandes empresários, temos um outro tipo de pureza. O nosso maior amor é o dinheiro e, através do dinheiro, o poder. A mulher vem na onda. 

            - Eu conheci e era amigo - ponderei-lhe - de um grande poeta que foi também um grande homem de negócios. 

            - Grande mesmo? Duvido. Esse tipo de dualidade cria uma profunda infelicidade pessoal. Não se serve ao Deus e ao Diabo ao mesmo tempo. 

            Admirei-lhe, não sem uma certa sensação de desconforto, a franqueza e honestidade - ele, um belo homem, em plena força de seus quarenta anos, ao lado de sua mulher extraordinariamente linda, com um solitário no anular quase tão grande quanto um ovo de codorna, a nos escutar com uma atenção diligente. Fechado o restaurante, resolvemos esticar na boate New Jimmy's. O nosso prezado homem rico fez uma grande volta para passar diante do seu empório, a fim de ministrar-me uma aula: todo um quarteirão de supermercado, com três pavimentos servidos por escadas rolantes e centenas de vendedores e vendedoras com ordens expressas de serem simpáticos, mas impessoalmente, nunca além do limite, de modo a não retardar com conversas ou excessos de cortesia o fluxo incessante das compras. 

            - Eu tenho uma média de três a cinco pessoas que são presas diariamente pela minha polícia, por furto de objetos. Em geral, depois de pregar-lhes um susto, eu os deixo ir. 

            Depois, na direção do seu Rolls-Royce, cujo chofer dispensara, tirou do bolso do paletó a cigarreira da prata e com gestos precisos acendeu um cigarro e, olhando-me pelo espelhinho da direção, me perguntou com uma voz que não permitia réplica: 

            - Não é uma beleza, poeta?


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      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:25

      PARA TRÊS JOVENS CASAIS

      Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969



      A

      Marcos Anibal de Morais 
      José Joaquim de Sales e 
      Clementino Fraga Neto 

      The world was all before them, where to chose. 
      Their place of rest, and Providence their guide. 
      They, hand in hand, with wand' ring steps and slow. 
      Through Eden took their solitary way. 

            Assim John Milton, o maior poeta inglês do seu século, ditou das trevas de sua cegueira os últimos versos desse incomparável monumento de poesia que é "Paraíso perdido", e de cuja transcendental beleza não há tradução possível, por isso que constituem, em sua tristeza intrínseca, uma prodigiosa síntese de toda a Criação: o primeiro casal, que é o eterno par, partindo para o mundo cheio de amor e perplexidade, as mãos unidas e os passos incertos a afastá-los cada vez mais do Paraíso conspurcado pela fatalidade do sexo, de onde se criam a vida e a morte. 

            Impossível nada mais belo. Um dia dois olhos se encontram e deles, subitamente, irrompe uma chama imponderável. Nas veias o sangue começa a circular mais forte, e o coração parece pulsar na garganta. A voz fica trêmula, os joelhos se afrouxam, a pessoa não sabe o que fazer das próprias mãos. Ele se fosse um beija-flor, entraria a bater asas freneticamente, num vertiginoso ballet diante da pequenina fêmea expectante, para maravilhá-la com a vivacidade do seu colorido. Ela deixa-se num divino recato, mas já consciente, em sua perturbação, que vai ser dele. 

            É o amor que nasce como uma fonte subterrânea a romper, em seu movimento para a luz, a última resistência de terra, e se põe a jorrar ao sol, em toda inocência e claridade. Que milagre determinou o seu surgimento naquele justo instante? Por que a outra pessoa, até então desconhecida, ou apenas conhecida, passa a ter toda a importância do mundo, a tal ponto que por ela se seria capaz de morrer ou de matar? Por que passa o corpo a ser como um cofre inviolável, só vulnerável ao toque das mãos amadas, e a idéia de infidelidade a última das baixezas? 

            A posse total do ser amado torna-se como uma obsessão: possuí-lo em sua carne e seu espírito; unir-se a ele numa transubstanciação tão perfeita que um passe a ser o outro em pensamentos, palavras e obras: tal é o comando do amor. E uma vez possuído, aninhá-lo num cantinho, a coberto da ferocidade da vida e da natureza, e da maldade dos homens - e postar-se de fora vigilante como um arcanjo, o gládio em punho, para que nenhuma ofensa lhe seja imposta, nenhum dano lhe sobrevenha. 

            Um ninho... Que beleza! A place of rest, como diz o poeta, de onde se possa sair para lutar pela sua subsistência, e para o qual se possa voltar com um livro, um doce, uma rosa para cativá-lo... E a grande viagem se inicia para vida, e ai de nós, para a morte. A fonte nascida procura o seu curso entre as pedras, em busca de um leito mais ameno, um talvegue mais brando, sem a memória anterior das estreitas gargantas e corredeiras perigosas que surpreendem o jovem rio e o impelem quem sabe para a vertigem das altas quedas, quem sabe para os vales pacíficos onde nada acontece, quem sabe para que feliz ou trágico destino... Mão na mão, com vagarosos passos erradios, através do Éden eles iniciam seu caminho solitário. Ei-lo que parte, o eterno casal amoroso, unido numa imagem ainda sem sombra, e de tal modo imerso em sua solidão que é como se só ele existisse no mundo. 

            São dois pobres. Não importa em que berço tenham nascido, se de ouro ou se de palha, são dois pobres, porque o tudo ou o nada que um tenha quer dar ao outro. A necessidade é encontrar um abrigo, não importa quão pequenino, onde haja uma mesa, duas cadeiras e uma cama, rústicas que sejam, pois o mais divertido, justamente, é pintar: comprar um pincel e uma lata de tinta e sair pintando tudo de branco e azul, que são as cores do amor; e ficar bem sujo de cal, e interromper a cada instante o trabalho com beijos intermináveis, e ir tomar banho e amar-se muito, e depois ter fome, e ela atarefar-se com frigideiras e panelas, enquanto ele põe um disco na vitrola e passa os olhos nas manchetes, pouco se danando para guerras e cosmonautas, e com toda razão, de vez que está inaugurando o mundo. E alta madrugada, os corpos exaustos de amor, começar o dueto das almas, uma buscando possuir a outra, em infindável justa singular que só se dará tréguas no final dos tempos. 

            O eterno par... Onde quer que estejam, estão sós, protegidos pela redoma do seu amor. Juntam-se os jovens rostos sorridentes para se sussurrar doces absurdos, para cantar cantigas lembradas, ou se põem sérios para fazer contas de chegar, no dever e haver conjugal, em permanente imantação. Ela sai a compras, encontra as amiguinhas de colégio que olham com maliciosa inveja sua felicidade transparente, o brilho de seus cabelos e seus olhos, a frescura de sua pele de mulher - porque agora ela é mulher - bem amada e possuída. Tudo amor. 

            Sim, meus jovens amigos, tudo ao amor!


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      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:27

      OS TRISTES DESCAMINHOS

      Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969



           Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda até que um homem, rodando por essas estradas brasileiras de conservação tão precária, mas assim mesmo tão lindas, possa-se dizer, como se diz um americano, um alemão, um russo, um holandês, um canadense, um sueco - e pelo menos isto: não há fome? Até quando essas faces terrosas, esses olhos opacos, esses braços finos, essa pasmaceira filha de uma longa indigência sem remédio? Quando virá o dia em que, ao se parar num botequim para um café, não nos chegará de mão estendida uma criança imunda e endefluxada a nos exigir uma esmola com um duro olhar adulto? Ou um idiota de boca torta, os braços ainda saudosos da posição fetal, para nos dizer de sua angústia em sons afásicos, fazendo-nos olhar para outro lado como se não o estivéssemos vendo? Sim, porque o que é que adianta ver?

            São seres humanos, patrícios nossos, que tiveram a desgraça de ser concebidos na miséria, de semente já enfraquecida por endemias e carências - e isto numa terra vasta e generosa, em que se plantando, tudo dá. Ficam parados à porta dos casebres e das tendinhas, ou estão sempre em marcha ao longo das rodovias, transportando suas avitaminoses, seus vermes intestinais, sua dor de dentes crônica, para ir trabalhar num roçado cinco léguas adiante. E à noitinha voltam, silenciosos e apressados, pelas mesmas estradas, para o prato sem proteínas que lhes serve urna velha mulher jovem, a quem faltam os incisivos, enquanto no chão de terra batida choraminga sobre os próprios excrementos o último fruto de sua triste condição. Porque, sim! Constituem, em sua sórdida pobreza, um casal: a célula da criação; um casal que, um amparado no outro, segue em frente, na direção onde o levam a vida e a necessidade, repartindo o trabalho, a comida, o sonho. Sonho? - que sonho? Um casal capaz de criar, produzir, vender, ganhar, ter uma casinha com uma cama, uma mesa, um fogão a lenha e uma privada. Capaz de comprar uma merendeira para a filhinha que vai à escola. Escola? - que esperança!

            Não, não são seres humanos. São bichos. É um verme humano, uma lombriga de calça e suspensórios, um ascarídeo que leva outro dentro. Cobrem o teto e a cabeça com palha, fumam palha, dormem sobre palha, são palha eles próprios - palha seca que se desfaz à simples fricção dos dedos.

            Por que me apiedo deles? O que posso eu fazer por eles quando acima, muito acima de mim, muito acima do meu país, erguem-se forças cujo fragílimo equilíbrio reside em sua própria capacidade de destruição; forças cuja agressividade já independe, porque ultrapassaram todos os limites do cognoscível, forças que se podem desencadear num átimo por excesso de tensão?

            No entanto, corta-me o peito vê-los em exposição como figuras de barro de um mau artista folclórico, acocorados onde os larga sua imemorial fadiga, pitando e cuspindo a saliva grossa do fumo de rolo, portadores, quase sempre, de conjuntivite crônica, às vezes rindo um riso matreiro com as gengivas desdentadas. Matreiro, por quê? Que espécie de inteligência podem ter senão a do instinto aguçado pela necessidade de sobrevivência, que lhes faz preciso o machado, rápida a foice, fulminante a faca que mata para não morrer?

            São patrícios nossos, que não têm voz e não têm vez. Em suas vísceras carcomidas se gera lentamente o câncer, alimentado, também, por uma progressiva indiferença. Que adianta lutar? A única coisa a fazer é o gesto de cortar ou ceifar, levar a mão à boca e virar de um golpe a pinga ruim, onde fermenta a cólera assassina, deslocar os ossos da companheira esquálida num breve ato de prazer animal. Prazer? - que prazer? E conformar-se ao ver-lhe o ventre, já inchado de farinha, inchar mais, inchar mais, até, numa primeira lua nova, expelir um feto natimorto, ou destinado a morrer no primeiro ano de vida, quando não vinga por milagre para repetir, anos mais tarde, aquela mesma miserável mímica.

            Que tristeza! E aí estão eles, pelas estradas do Brasil adentro, pobres imagens de cerâmica barata toscamente esculpidas. Às vezes, à porta do barraco, ponteiam sem emoção sons de viola e cantam toadas trêmulas, que falam da mesmice de sua vida, ou amores trágicos e valentias justiceiras, tendo como únicos ouvintes uma lua, no céu, um mocho num galho, uma aranha em sua teia, um vira-lata amigo, com as costelas à mostra.

            Um dia, amanhecem mortos. Morreram de nó na tripa, transnominação eufemística para o câncer, a ruptura de hérnia, o vôlvulo, a úlcera gástrica, a cirrose hepática. E são enterrados em cova rasa, no cemiteriozinho mais próximo: primeira e última generosidade do dono de terra para quem trabalham; senão, é abrir um buraco por ali mesmo e jogar o defunto dentro. Deixam para trás uma nova meretriz, que vende a pele frouxa e os seios deflatados para sustentar a prole. São gente sem história.

            Meu amor, acorda, não me deixes, só, nesta sala noturna, a escrever estas tristezas. Não me deixes mais recordar esses casebres pobres de beira-estrada onde dormem e morrem irmãos meus em quem se descoloriu o sangue. Eu os estou vendo agora, dentro da noite negra a mugir inaudivelmente sua indiferença, os magros corpos magoados pela tábua dura das enxergas. Eles não sabem por que vieram, não sabem por que permanecem, não sabem para onde vão. Eles só sabem de uma coisa: ninguém se lembra deles, e eu também não quero lembrar mais. Vem, amiga, me serve um uísque, dose dupla, muito gelo. E põe depressa um disco dos Beatles na vitrola.


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      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:40

      AUSENCIA




      Dejaré que muera en mí el deseo
      de amar tus ojos dulces,
      porque nada te podré dar sino la pena
      de verme eternamente exhausto.
      No obstante, tu presencia es algo
      como la luz y la vida.
      Siento que en mi gesto está tu gesto
      y en mi voz tu voz.
      No quiero tenerte porque en mi ser
      todo estará terminado.
      Sólo quiero que surjas en mí
      como la fe en los desesperados,
      para que yo pueda llevar una gota de rocío
      en esta tierra maldita
      que se quedó en mi carne
      como un estigma del pasado.
      Me quedaré... tu te irás,
      apoyarás tu rostro en otro rostro,
      tus dedos enlazarán otros dedos
      y te desplegarás en la madrugada,
      pero no sabrás que fui yo quien te logró,
      porque yo fui el amigo más íntimo de la noche,
      porque apoyé mi rostro en el rostro de la noche
      y escuché tus palabras amorosas,
      porque mis dedos enlazaron los dedos
      en la niebla suspendidos en el espacio
      y acerqué a mí la misteriosa esencia
      de tu abandono desordenado.
      Me quedaré solo como los veleros
      en los puertos silenciosos.
      Pero te poseeré más que nadie
      porque podré irme
      y todos los lamentos del mar,
      del viento, del cielo, de las aves,
      de las estrellas, serán tu voz presente,
      tu voz ausente, tu voz sosegada.




      Traducción: Mariano Ramos


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      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:42

      EL RÌO






      Una gota de lluvia
      cuando el vientre grávido
      estremeció la tierra.
      A través de viejos
      Sedimentos, rocas
      Ignoradas, oro
      Carbón, fierro y mármol
      Un río cristalino
      Lejano milenios
      Partió frágil
      Sediento de espacio

      En busca de luz.
      Un río nació.


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      Mensaje por Maria Lua Dom 15 Mayo 2022, 09:55

      LA HORA INTIMA






      ¿Quién pagará el entierro y las flores
      si yo muero de amores?

      ¿Qué amigo será tan amigo
      que en el entierro esté conmigo?

      ¿Quién, en medio del funeral
      dirá de mí: 'Nunca hizo el mal...?

      ¿Quién borracho, llorará en voz alta
      por no haberme traído nada?

      ¿Quién deshojará violetas
      en mi tumulto de poeta?

      ¿Quien lanzará tímidamente
      al suelo un grano de simiente?

      ¿Quién mirará, cobarde,
      la estrella de la tarde?

      ¿Quién me dirá palabras mágicas
      que hagan empalidecer a los mármoles?

      ¿Quién, oculta en velos oscuros,
      se crucificará por los muros?

      ¿Quién, con el rostro descompuesto,
      sonreirá: Rey muerto, rey puesto...?

      ¿Cuántas, en presencia del infierno
      sentirán dolores de parto?

      ¿Cuál la que, blanca de recelo,
      tocará el botón de su seno?

      ¿Quién loca, ha de caer de
      hinojos sollozando tantos sollozos
      que despierte recelos?

      ¿Cuántos, los maxilares contraídos,
      con sangre en las cicatrices
      dirán: Fue un loco amigo...?

      ¿Qué niño mirando a la tierra
      y viendo moverse a un gusano
      tendrá un aire de comprensión?

      ¿Quién, en circunstancia oficial,
      propondrá para mí un pedestal?

      ¿Qué llegados de la montaña
      tendrán circunspección tamaña
      que he de reír blanco de cal?

      ¿Cuál la que, el rostro al viento
      lanzará un puñado de sal
      en mi guarida de cemento?

      ¿Quién cantará canciones de amigo
      el día de mi funeral?

      ¿Cuál la que no estará presente
      por motivo circunstancial?

      ¿Quién clavará en el seno duro
      una hoja oxidada?

      ¿Quién, con verbo inconsútil,
      ha de orar: La paz le sea dada?

      ¿Cuál el amigo que, a solas consigo,
      ha de pensar: No será nada...?

      ¿Quién será la extraña figura
      a un tronco de árbol recostada
      con mirar frío y aire de dudas?

      ¿Quién conmigo se abrazará
      y tendrá que ser arrancada?

      ¿Quién va a pagar el entierro y las flores
      si yo muero de amores?







      Traducción: Joan Manuel Serrat


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      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 06:30

      OS CULPADOS DE TUDO

      Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969



           Na hora que corre, quase todas as mulheres estão fazendo regime para emagrecer (e o advérbio representa aqui algumas poucas e honrosas exceções). O ideal da forma feminina passou a ser o esqueleto acolchoado, ma non troppo, de maneira que certos ossos fundamentais aos últimos padrões da moda, como a coluna vertebral, os ilíacos, as clavículas, as rótulas e os fêmures, fiquem francamente à mostra. E obedientes a essa nova extravagância do sexo outrora considerado fraco, os especialistas, transformados em mágicos, formulam esquemas dietéticos de toda sorte: macrobióticos, hipocalóricos, astronáuticos, líquidos, o diabo. Os consultórios vivem repletos, o faturamento é altíssimo, as mulheres se sentem divinas-maravilhosas quando começam a ranger nas dobradiças. Tirante conversa de futebol e análise de grupo, é o tópico sobre que mais se fala atualmente. Fulana perdeu 15 quilos em um mês! Sicrana, imaginem só, está reduzindo um quilo por dia com a dieta líquida: que bárbaro! Viram Beltraninha depois que saiu da clínica? Como é que pode!… E os homens - eu digo: os homens! - vêem, compungidos, evaporar-se aquelas partes do corpo da mulher consideradas, desde séculos, como as mais responsáveis pela preservação da espécie.

            - Ah, que saudade das mulheres de Rubens e Renoir... - suspiram os mais antropófagos. 
            - Eu, hein… - contestam os costureiros. - Botticelli é que era pra frente, meu filho - um louco genial, previu tudo, com aquela Primavera alucinante, magérrima! Quem gosta de gordura é detergente. A ordem do dia, queridinho, é Biafra, ouviu? Biafra! 

            E a carne das mulheres some, as faces se encovam, os seios diminuem, as coxas se alongam, as pontas pélvicas protuberam. Quase que as moças poderiam voltar agora à velha fórmula cediça: 

            - Aperte aqui estes ossos! 

            Meu caro amigo José Carlos Cabral de Almeida, conhecido endocrinologista - eu diria mesmo, geômetra - de nossa desvairada praça, está mais que ninguém por dentro deste novo tipo de neurose. Passa ele grande parte do seu tempo útil transformando círculos em ângulos, curvas em retas, esferas em planos, peças de rolamento em cremalheiras. Entram - ou melhor, rolam - diariamente pelo seu consultório adentro, mulheres-pipas que ele (depois de debruçar-se sobre estranhos formulários e equacionar carboidratos, proteínas e matérias graxas) devolve à sociedade transformadas em verdadeiras Verinhas Barreto Leite, em autênticas Veruschkas, capazes de sair dali direto para Paris como manequim-vedete. E elas que não arriscavam mais cruzar as pernas numa festa, sob pena de mostrar um crivo de celulite coxa acima, passam a usar minissaias e biquínis, como bem observa Paulinho Garcez, que são pouco mais que band-aids. E o moral com que elas ficam? Resolvem qualquer problema de cálculo integral, fácil. 

            Mas esqueci de dizer uma coisa: meu amigo José Carlos, além de endocrinologista e emagrecedor contumaz de mulheres (e homens, eventualmente, como no meu caso), é um grande pesquisador dos segredos da genética, assunto que o leva, vira e mexe, a Londres, para cursos e conferências. Eu confesso que a genética é um assunto que me fascina porque suas leis, que também são azares, formulam-se à base de um grande e poético mistério. A palavra cromossomo, por exemplo: para mim é a própria poesia. De maneira que, lidando com a genética e as glândulas do seu semelhante, nada mais natural que José Carlos Cabral de Almeida viva em plena faixa das mulheres superneuróticas. Como uma amiga sua, "uma neurótica divina", segundo ele próprio diz, e sobre quem me contou o seguinte: 

            - Pois imagine que ela encontrou um homem extraordinário, com todos os ingredientes, hoje em dia tão raros, para fazer qualquer mulher feliz: rico, inteligente, boa pinta, finíssimo, ótimo caráter - enfim, um bilhete premiado. Começaram a sair juntos e aí eu a perdi por um tempo de vista. Muito bem: meses depois ela me procurou para uma consulta e eu lhe perguntei como ia o romance. 

            - Acabei - respondeu a "louca maravilhosa". 
            - Acabou? Mas você está doida, criatura? Pois você não vivia rezando por um homem exatamente como o que você acabou de chutar? 
            - É... - fez ela. - Mas é que eu estava tão feliz, mas tão feliz, e tudo correndo tão bem que, de repente, me deu assim uma agonia, e eu resolvi acabar porque já não sabia mais se aquela felicidade toda era felicidade mesmo, ou era neurose... 

            Essa história me encheu as medidas, porque ela é bem um conto dos nossos tempos, em que os valores se invertem do dia para a noite, e as pessoas ficam realmente sem saber onde pisam e a quantas andam. Aliás, em matéria de histórias, meu amigo José Carlos contou-me outra de sua "neurótica divina" que, essa, é antológica. 

            Disse-me ele que durante a chamada Guerra dos Seis Dias, entre Israel e RAU, foi procurado por essa mesma amiga e cliente, e, conversa vai, conversa vem, ela começou a manifestar um anti-semitismo tão fora de seus moldes que ele, sabendo-a uma mulher inteligente e totalmente despida de preconceitos, os raciais e os outros, mostrou-lhe sua estranheza: tanto mais quanto toda sua esfera social só podia ser pró-Israel. 

            - Judeus... - indignou-se ela. - Tomara que morram, todos! 
            - Eu juro que não estou entendendo nada - disse-lhe José Carlos. - Logo você, uma mulher ultra por dentro, e ainda mais se lixando para política... 
            - É uma raça que precisa ser exterminada. Hitler não conseguiu, mas eu tenho fé em Deus que Nasser há de chegar lá! Eles estão aí para fundir a cuca da humanidade. 
            - Mas... 
            - É isso mesmo. Por que é que está toda gente de cuca fundida, procurando analista e engordando à toa, e aí vai para o dietista e emagrece uma barbaridade, e aí come sem parar e engorda tudo de novo - me diga? Quem são os responsáveis pela neurose de todo mundo, e a minha em particular? 
            - Francamente, não vejo... 
            - Pois eu lhe digo: são três judeus. 
            - … 
            - Jesus Cristo, Freud e Marx. 
            - …. 

            - É isso mesmo. Pau neles!


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      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 06:32

      OBRIGADO, PORTUGAL!

      Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969



           A gentileza humana parece ter feito seu último reduto em Portugal. E quando eu falo em gentileza, dou-lhe quase a acepção medieval de amor cortês, de medida, de mesura. É um povo que não levanta a voz, e ninguém pense que por covardia, mas por uma boa educação instintiva e um senso de afetividade. Essa desagradável invenção moderna, o berro, não encontra forma vocal na garganta de um português. Hitler, Mussolini ou Lyndon Johnson jamais poderiam governar esse "jardim d'Europa à beira-mar plantado", onde se fala baixo, ama-se com fervor e chora-se nas despedidas. 

            Essa tristeza, de que nós brasileiros somos os novos legatários, tem uma ancestralidade que vem de muitas dominações, muita submissão forçada, muito fatalismo histórico e geográfico. Povo afeito às guerras - ainda hoje as mantém no Ultramar - parece ele sofrer de um silencioso heroísmo na paz, como se a Desgraça, essa invisível espada de Dâmocles lenta e diariamente forjada pelo Destino, pudesse a qualquer momento cair-lhe sobre a cabeça. Quase humilde no trato pessoal, logo verificará quem o conhecer melhor que não se trata de servilismo, e sim de uma necessidade de não fazer vibrar além do necessário os frágeis fios que suspendem imanentemente os Maus Fados sobre sua existência. E é talvez por esse motivo que seus bons fados também são tristes, sempre a carpir as penas do viver e do amar. 

            Isto é tão mais curioso quanto, apesar de pobre e subdesenvolvido em sua grande maioria, o português é um povo saudável e de bom aspecto, com boa pele e dentes magníficos, bem certo fruto de uma alimentação mais adequada: nada como o brasileiro menos aquinhoado das regiões pobres do país, no geral malsão e banguela, além de irônico e desconfiado por mecanismo de descrença e autodefesa. A propalada "burrice" do português simples e iletrado nada mais é que uma forma sadia e vegetativa de ser (ou não ser, como queiram). Foi minha mulher quem matou a charada: "Eles não são burros", disse-me ela. "Eles apenas desconhecem que têm inteligência." E a decantada "esperteza" ou "inventiva" do pária brasileiro nada mais é que o antivírus da forma crônica da ignorância e indigência em que vive, tendo que se virar mesmo de fato para não juntar os calcanhares. O pária brasileiro tem que lutar não só contra os indesejáveis cromossomos da desnutrição; a dor de dentes endêmica e a cachaça de má qualidade, até um tipo de ensino - e isso quando é muito afortunado - em que lhe baralham a cabeça com uma língua cheia de preconceitos semânticos e acentos desnecessários - isso porque há decênios os cartolas da lingüística nas duas pátrias teimam em não simplificá-la, quem sabe para justificar a continuidade de seus jetons e sua dolce vita acadêmica. 

            Eu confesso que depois desta minha última viagem, e de um contato intermitente de três meses com sua gente, Portugal seria o único país da Europa onde eu poderia viver fora do Brasil: com eventuais incursões à Itália. Que adiantam o superdesenvolvimento e a kultura (assim mesmo com k) de um povo, como dois ou três que eu conheço, se neles a relação humana torna-se cada dia mais difícil e indesejável diante de um outro tipo de ignorância bem mais perigoso a longo prazo, como esse da reserva e falta de diálogo; da submissão a preconceitos econômicos falsos na verdadeira escala de valores; do aburguesamento progressivo e da mesmificação do mais pessoal dos meios de comunicação, que é a linguagem? Que qualidade é mais a prezar no ser humano, se não for a gentileza, o gosto de conviver, a boa vontade em cooperar, em socorrer, em dar-se um pouco em tudo o que se faz, desde trabalhar a amar, desde comer a cantar, desde criar no plano intelectual a fazer no plano industrial ou agrícola? 

            Obrigado, Portugal! No contato de tuas gentes, teus escritores e teus artistas, teus estudantes e teus simples - teu povinho das brancas aldeias! - eu senti que há ainda muito isso que cada dia mais falta ao mundo: carinho e sinceridade. Represados, talvez, nas latentes como o sangue sob a pele, e prontos a romper a crosta criada a duras penas, ao longo de um passado tão cheio de sacrifícios e infortúnios. 

            Obrigado, Lisboa, terra tão boa, gente tão gente, casas tão casas, amigos tão como já não se encontra. Obrigado, Coimbra que me recebeste em tua Academia e em teu Convívio e que me puseste uma velha capa sobre os ombros. Obrigado, Porto, onde teus estudantes quiseram não me deixar trabalhar em boate, porque não sabem ainda que a poesia e a canção têm de estar em toda parte (mas obrigado pelo gesto, estudantes do Porto!). Obrigado, Óbidos, que pareces feita no céu, tão linda e pura como uma avozinha menina que ainda usasse flores silvestres na cabeça. Obrigado, Évora, mãe alentejana de Ouro Preto, cidade onde mais que nenhuma outra se sente o Brasil colonial, o Brasil do Aleijadinho, cidade perfeita de gentil austeridade. Obrigado, Monserraz, que, esta não quero ver nunca mais porque se a ela voltar nela hei de ficar, entre seus muros brancos e seus homens e mulheres do mais franco olhar. Obrigado,Portugal. Resta sempre uma esperança. Eu voltarei.


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      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 06:33

      O GRANDE TERREMOTO DE LISBOA DE 1969 SEGUNDO O.L.R.

      Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969



           Nunca se vira manhã mais bela que
       a de 1.º de novembro de 1755. O Sol brilhava em todo seu esplendor, e o céu estava perfeitamente sereno e claro. Não fora sentido o menor sinal de aviso do grande evento que deveria transformar, em matéria de segundos, a cidade de Lisboa numa cena de horror e desolação gerais. 

            Traduzo de cor, com pequenos lapsos de memória, do velho livro de textos ingleses que o velho padre, à base do decorebus, nos fazia ruminar nas tediosas aulas do colégio. A descrição convencional não deixava, no entanto, de excitar minha imaginação de menino, e a verdade é que alguns trechos nunca mais me saíram da cabeça. Mal sabia eu que dois séculos mais tarde deveria estar presente, no mesmo local, a um de igual intensidade, e que só não arrasou Lisboa porque teve seu epicentro no oceano, a cento e tantas milhas ao largo; e mesmo assim a teria destruído parcialmente se o deus dos sismos não cismasse, sem intenção de trocadilho, em fazer dele um terremoto horizontal. Porque, dizem os entendidos, fosse ele vertical, e talvez eu não estivesse aqui para contar a história. Ou melhor: talvez não estivesse ainda por lá, vivo e cada dia mais inteligente, meu amigo O.L.R., a quem passo a palavra, pois assim descreveu-me ele sua dramática experiência, ipsis verbis.

            O.L.R., como todo bom mineiro que se preza, é chegado ao Além, a casos parapsicológicos, a um bom defuntinho. Fala da morte como se tivesse a Dama Branca sentada ao colo, com um humor macabro que é dos pontos altos do seu charme de grande causeur, mas para quem o conhece, não passa de um processo de autopunição, por isso que representa, no fundo, o riso amarelo dos condenados. Mas deixemos para lá os problemas psíquicos de meu querido amigo O.L.R., para acompanhá-lo passo a passo nesse seu confronto não com o Além, mas o infranatural colocado ao nível do sobrenatural - porque os momentos que precedem um terremoto tiram de letra quaisquer fenômenos de ordem espírita, tais como arrastar de correntes, bater de portas e aparição de ectoplasmas, nisso que se exercem sem razão óbvia diante dos olhos do infeliz totalmente desprevenido, a pensar na futura alunissagem da Apolo-11 ou na galinha ao molho pardo comida na véspera. Tal como aconteceu com O.L.R.

            Era o dia 27 de fevereiro último, e a madrugada caminhava a passos lentos para mais uma jornada lisboeta, quando meu amigo O.L.R., já se preparando para puxar um sono, viu a porta do armário do quarto abrir-se de moto próprio e o chinó de sua mulher deslizar de uma prateleira no alto e cair fofamente, como devem as perucas. Aquilo, sem que ele soubesse bem por que, inquietou-o, e ele se levantou e, para disfarçar, foi - hábito antigo - à cozinha, coar um café, arte em que é exímio. Ao passar pela geladeira, abriu-a num gesto comum a todos os noctâmbulos domésticos, e eis senão quando as garrafas em entrechoque se põem a tilintar em uníssono, alertando-o ainda mais contra a possível incursão do sobrenatural nos seus domínios. O medo ao além-túmulo pressupõe quase sempre um alerta premonitório, e meu amigo O.L.R., já sentindo se lhe eriçarem os pelinhos do braço, partiu para fazer o seu café, pois, como é sabido, o trabalho é boa terapêutica para as perturbações da cuca. Café feito e tomado, foi ele até à sala olhar o céu, provável culpado de todo este cafarnaum, e ao encostar a testa ao vidro da janela, sentiu-o vibrar de um tremor contínuo. "Uai…", comentou dentro dele o mineirão de Juiz de Fora. Positivamente as coisas naquela noite não estavam se processando como de comum. Passagem de um jato não podia ser, dado que a vibração não fora precedida de qualquer ruído; de maneira que o melhor mesmo era desligar aquilo e ir até o escritório mexer nuns papéis. Porque meu amigo O.L.R. é escritor, e dos melhores.

            Contou-me ele que mal se sentou o cinzeiro começou a tremer e a escorregar com a maior sem-cerimônia, diante de seus olhos. "É, seu..", comentou novamente o matuto que há em todo mineiro. "Deixa eu ir pra cama porque eu não sei o que é, não, mas, que tem qualquer coisa aí, ah, isso tem..."

            E como tinha! De repente a massa ígnea sobre a qual, protegidos apenas por uma frágil crosta, nós vivemos nossas neuroses de cada dia, encontrou um ponto de menor resistência, forçou-o um pouco, depois mais, e logo entrou de sola até rompê-lo em mil estilhaços subterrâneos… - e partiu para cima com o impacto de mil bombas H, sacudindo tudo em seu caminho, do Algarve em diante. Aí meu amigo O.L.R., que de bobo não tem nada, sentou-se na cama e com esse senso comum pessedista de que todo bom mineiro é dotado, sacudiu também sua mulher e disse :"Acorda, Helena! Acorda que é um terremoto!"

            Outra coisa não era. Era não só um terremoto como um dos de maior intensidade já registrados pelos sismógrafos. Com a única atenuante, conforme disse, de ter um balanço horizontal, digamos como o dos quadris de uma mulata sambando. Pulasse ele como os carnavalescos no auge do baile do Municipal, isto é, verticalmente, e seria uma repetição do de Agadir, ou da própria Lisboa em 1755, que não deixou pedra sobre pedra. Mas O.L.R. tem uma ótima estrela, muito embora os momentos que se seguiram fossem do maior pânico... Pois as luzes se apagaram bruscamente e em meio às exclamações de pavor de sua mulher - imaginem! acordada dos seus doces sonhos de esposa mineira para a terrível realidade de um sismo lusitano - meu amigo O.L.R. lembrou-se de sua filhinha de oito meses. Helena Cristina, mais conhecida como Maria-Pão-de-Queijo, apelido que ganhou dessa bela e boa Geralda, empregada antiga da casa - e isso por um processo associativo que não cabe aprofundar aqui. Meu amigo O.L.R. partiu às cegas para o quarto da infanta, a quem se pôs a procurar em trevas totais, enquanto os demais participantes manifestavam seu terror e consternação em interjeições do maior patético. Até que a menininha foi achada no berço e devidamente protegida pelos braços amorosos de seu pai, ao mesmo tempo que aquela tralha toda tremia e ondulava mais que bailarina de fundo em programa do Chacrinha.

            É, queridos leitores, terremoto não é de brincadeira. A gente pode chegar ao ponto de aceitar tudo: dinheiro curto, pai quadrado, bêbado chato, trânsito engarrafado, mulher feia, música da pilantragem, hérnia de disco, dupla caipira, novela de televisão, dieta macrobiótica, poesia concretista, romance de Morris West, trote telefônico, papo de grã-fino, uísque nacional - praticamente tudo.

            Menos terremoto. Que o diga meu amigo O.L.R., cujo nome começa onde o outro termina. E como este, é capaz de levantar montanhas. Só que por bem. Pelos amigos.

            E volte logo, Lara Resende!


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      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 06:41

      O CAMELÔ DO AMOR

      Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969



      Parai tudo o que estais fazendo, homens de gravata e sem gravata, funcionários burocráticos e deambulantes, mercadores e fregueses, professores e alunos, íncubos e súcubos - e escutai o que eu vos tenho a dizer.

      Chegai-vos a mim e vinde ver toda a beleza que estou vendendo a preço de banana! Homens da Cifra e da Sigla, de Toga e de Borla-e-Capelo, de Fardão e de Sobrepeliz: esquecei por um momento vossas conjunturas e aproximai-vos de olhar sincero e coraçao na mão.

      É favor suspender por alguns minutos a partida. Senhor Juiz Armando Marques! Conserva-te assim, o pé no ar, meu bom Pelé, qual fantástico dançarino. Feras da Seleção: atenção! Alerta, aviadores do Brasil! Capitães de mar: estamos no ar!

      A postos, emissoras em cadeia! Câmaras de cinema e televisão: ação! Estações de rádio e radioamadores: ligai os receptores! Atenção, Intelsat quatro... três... dois... um... 
      Aqui fala o poeta, o jogral, o menestrel, o grande Camelô do Amor!

      O Amor tonifica o cabelo das mulheres, torna-os vivos e dá-lhes um brilho natural. Mise en plis? Só de Amor! nada melhor que divinos cafuriés para as moléstias do couro cabeludo!

      Olhos opacos? Amores fracos! Olhos sem brilho? Amor-colírio! Olhos sem cor? Amor! O Amor branqueia a córnea, acende a íris, dilata as pupilas cansadas. E ainda dá as mais belas olheiras naturais. Dois beijos, dois minutos: dois olhos claros de veludo!

      O Amor limpa de rugas a fronte das mulheres, elimina os pés-de-galinha e acrescenta lindas covinhas ao sorriso. Tende sempre em mente: o Amor coroa as mulheres de pesados diademas invisíveis. Amai, coroas! A mulher que ama reinventa o Paraíso. A mulher que é amada move-se majestosamente!

      O Amor pitanguiza o nariz das mulheres, torna-os frementes, com delicados tiques, particularmente nas asas. Narizes gordurosos, com propensão a cravos e espinhas? Muitas, muitas festinhas contra o nariz amado!

      O Amor horizontal é melhor e não faz mal. Bocas rosadas, frescas, palpitantes? Beijos de amor constantes! As bocas mais beijadas são mais bem lubrificadas. Só isso dá à sua boca o máximo!

      Qual Nardem, qual Rubinstuff ! - morte às pomadas! Pomadas, cremes, só de Amor, amadas! Pele jovem e macia? Amai, se possível, todo dia: e ante o esplendor de vossa pele há de ruborizar-se a madrugada.

      Juventude noite e dia? - Carne sem banha! Ela tem mais freguesia? - Sempre se banha! Aliás, uma coroa - Que coisa boa! Bem que ela tem seu lugar. E... sabor de loucura! 
      O Amor estimula extraordinariamente a higiene bucal, pois como todos sabem, a água-e-sal é o composto químico da saliva, que conseqüentemente se ativa, impedindo a halitose e tornando a carícia palatal!

      Se é de Amor, é bom! Não sabe aquela que não põe desodorante? Perdeu o marido e hoje não pega nem amante ... Sim, cuide o subextrato de suas asas, anjo meu, mas nada de exagero ... Uma axila sem cheiro pode levar um homem ao desespero. E não bobeie, não dê bola, não se iluda: um homem ama uma axila cabeluda! Siga o exemplo da mulher italiana: não usa lâmina e é mulher superbacana. Ponha um tigre debaixo do braço!

      E basta de pastas, ó tu que levas o leite contigo - bom até a última gota! Se amares, o sangue circulará melhor em tuas glândulas mamares, e conseqüentemente terás seios sinceros, autodidatas, substantivos! Algo mais que o Amor lhe dá...

      Casamento serve bem ao grande e ao pequeno. Serve bem à beça! Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que viaja ao lado seu. Pois, no entretanto, eu lhe digo: quase ela fica a perigo... Salvou-a um justo himeneu. Alivia, acalma e reanima! Todo homem que chega em casa deve levar beijos mil: da mãe e da menininha. E como é bom ter seu amor junto ao corpo... É a pausa que refresca... Quem a casar se mete, repete!

      Um mínimo de cirurgias plásticas, dietas patetas e essas ginásticas fantásticas... Vivei e amai ao Sol! Para aquele que ama, vossos senões são poesia. Nada mais lindo que as feiurinhas da mulher amada!

      Por isso, eu grito aqui: regulador? - besteira! A saúde da mulher está em ser boa companheira. Não há pílula para a percanta que se preza. Seja mulher! conserve o seu sorriso! valha o quanto pesa! Use o auge da bossa e namore o quanto possa: na praça, na praia, no prado - no banco que está ao seu lado!

      Eu sempre digo, e faço figa do que diga seu melhor, muito melhor que óleo de figado. Porque, além de excitar o metabolismo basal, para o vago-simpático é o tônico ideal!

      Eis seu mal: não amar. Daí, decerto, a causa dessas suas tonteiras, dessas náuseas... Ame king-size! E se lembre sempre o espetáculo começa quando a senhora chega! Quem não é o maior tem que ser o melhor! Por isso, espere um pouco, por favor... E repita comigo, assim... A-m-o-r!

      Parai tudo o que estais fazendo, homens de gravata e sem gravata, funcionários burocráticos e deambulantes, mercadores e fregueses, professores e alunos, íncubos e súcubos - e escutai o que eu vos tenho a dizer.

      Chegai-vos a mim e vinde ver toda a beleza que estou vendendo a preço de banana! Homens da Cifra e da Sigla, de Toga e de Borla-e-Capelo, de Fardão e de Sobrepeliz: esquecei por um momento vossas conjunturas e aproximai-vos de olhar sincero e coraçao na mão.

      É favor suspender por alguns minutos a partida. Senhor Juiz Armando Marques! Conserva-te assim, o pé no ar, meu bom Pelé, qual fantástico dançarino. Feras da Seleção: atenção! Alerta, aviadores do Brasil! Capitães de mar: estamos no ar!

      A postos, emissoras em cadeia! Câmaras de cinema e televisão: ação! Estações de rádio e radioamadores: ligai os receptores! Atenção, Intelsat quatro... três... dois... um... 
      Aqui fala o poeta, o jogral, o menestrel, o grande Camelô do Amor!

      O Amor tonifica o cabelo das mulheres, torna-os vivos e dá-lhes um brilho natural. Mise en plis? Só de Amor! nada melhor que divinos cafuriés para as moléstias do couro cabeludo!

      Olhos opacos? Amores fracos! Olhos sem brilho? Amor-colírio! Olhos sem cor? Amor! O Amor branqueia a córnea, acende a íris, dilata as pupilas cansadas. E ainda dá as mais belas olheiras naturais. Dois beijos, dois minutos: dois olhos claros de veludo!

      O Amor limpa de rugas a fronte das mulheres, elimina os pés-de-galinha e acrescenta lindas covinhas ao sorriso. Tende sempre em mente: o Amor coroa as mulheres de pesados diademas invisíveis. Amai, coroas! A mulher que ama reinventa o Paraíso. A mulher que é amada move-se majestosamente!

      O Amor pitanguiza o nariz das mulheres, torna-os frementes, com delicados tiques, particularmente nas asas. Narizes gordurosos, com propensão a cravos e espinhas? Muitas, muitas festinhas contra o nariz amado!

      O Amor horizontal é melhor e não faz mal. Bocas rosadas, frescas, palpitantes? Beijos de amor constantes! As bocas mais beijadas são mais bem lubrificadas. Só isso dá à sua boca o máximo!

      Qual Nardem, qual Rubinstuff ! - morte às pomadas! Pomadas, cremes, só de Amor, amadas! Pele jovem e macia? Amai, se possível, todo dia: e ante o esplendor de vossa pele há de ruborizar-se a madrugada.

      Juventude noite e dia? - Carne sem banha! Ela tem mais freguesia? - Sempre se banha! Aliás, uma coroa - Que coisa boa! Bem que ela tem seu lugar. E... sabor de loucura! 
      O Amor estimula extraordinariamente a higiene bucal, pois como todos sabem, a água-e-sal é o composto químico da saliva, que conseqüentemente se ativa, impedindo a halitose e tornando a carícia palatal!

      Se é de Amor, é bom! Não sabe aquela que não põe desodorante? Perdeu o marido e hoje não pega nem amante ... Sim, cuide o subextrato de suas asas, anjo meu, mas nada de exagero ... Uma axila sem cheiro pode levar um homem ao desespero. E não bobeie, não dê bola, não se iluda: um homem ama uma axila cabeluda! Siga o exemplo da mulher italiana: não usa lâmina e é mulher superbacana. Ponha um tigre debaixo do braço!

      E basta de pastas, ó tu que levas o leite contigo - bom até a última gota! Se amares, o sangue circulará melhor em tuas glândulas mamares, e conseqüentemente terás seios sinceros, autodidatas, substantivos! Algo mais que o Amor lhe dá...

      Casamento serve bem ao grande e ao pequeno. Serve bem à beça! Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que viaja ao lado seu. Pois, no entretanto, eu lhe digo: quase ela fica a perigo... Salvou-a um justo himeneu. Alivia, acalma e reanima! Todo homem que chega em casa deve levar beijos mil: da mãe e da menininha. E como é bom ter seu amor junto ao corpo... É a pausa que refresca... Quem a casar se mete, repete!

      Um mínimo de cirurgias plásticas, dietas patetas e essas ginásticas fantásticas... Vivei e amai ao Sol! Para aquele que ama, vossos senões são poesia. Nada mais lindo que as feiurinhas da mulher amada!

      Por isso, eu grito aqui: regulador? - besteira! A saúde da mulher está em ser boa companheira. Não há pílula para a percanta que se preza. Seja mulher! conserve o seu sorriso! valha o quanto pesa! Use o auge da bossa e namore o quanto possa: na praça, na praia, no prado - no banco que está ao seu lado!

      Eu sempre digo, e faço figa do que diga seu melhor, muito melhor que óleo de figado. Porque, além de excitar o metabolismo basal, para o vago-simpático é o tônico ideal! 
      Eis seu mal: não amar. Daí, decerto, a causa dessas suas tonteiras, dessas náuseas... Ame king-size! E se lembre sempre o espetáculo começa quando a senhora chega! Quem não é o maior tem que ser o melhor! Por isso, espere um pouco, por favor... E repita comigo, assim... A-m-o-r!

      *******************


      Camelô = substantivo de dois gêneros
      Camelõ es nn vendedor ambulante, en Brasil, es un comerciante de calle generalmente parte de la economía informal o clandestina, con banca improvisada, en especial en las grandes ciudades.


      Un vendedor ambulante, en Brasil, un comerciantes de calle generalmente parte de la economía informal o clandestina, con banca improvisada, en especial en las grandes ciudades. 


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 06:47

      O AMIGO EXEMPLAR

      Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969



           Pois é, compadre. Você, no exagero da sua delicadeza, não quis esperar por mim, eu trançando pela Europa inteiramente por fora do que se passava. E você morrendo sua morte com essa discrição que, melhor que uma prova de refinamento, era uma decorrência normal da sua integridade como homem. Porque eu desconfio muito dos que se deixam engessar em moldes éticos, seja por conveniência profissional, seja por medo de romper estruturas tradicionais impostas.

            Você não, querido morto cada vez mais vivo. Você era uno e indivisível como um diamante que tivesse chegado ao limite máximo do seu grau de lapidação. Não havia dinheiro, glória, tentações, comendas capazes de comprar a sua honra. Talvez só a amizade - e isso porque você dava um crédito de confiança total aos seus amigos - pudesse, senão demovê-lo, pelo menos fazê-lo contornar dialeticamente uma posição moral assumida. Você nunca abstraía do humano, meu compadre. Você sabia que o homem só muito raramente é aquilo que ele diz ser; é, muito mais, "esse bicho da terra tão pequeno" de que fala Camões, passível, por amor, fé ou sectarismo, dos piores compromissos; capaz de dizer, no mais enxuto dos estilos, as maiores besteiras ou as coisas mais convencionais - e com a maior convicção. E do mesmo posso tentar realmente penetrar os mistérios do ser humano, da sociedade e da natureza, em sua busca permanente de Deus (ou de uma tábua social comum de salvação). Você vivia num estado de quase permanente indignação contra os inimigos do homem e do que ele cria no plano da beleza. Você foi o grande e puro leão-de-chácara do nosso humilde patrimônio histórico e artístico, e não fosse você, rodeado de sua belle équipe, não só todos os nossos santos barrocos seriam hoje peças de antiquários, como a pedra sabão em que o gênio do Aleijadinho materializou o verbo austero dos Profetas do Antigo Testamento, estaria coberta de palavrões de mictório. Você, em benefício dessa missão, não só abdicou de uma vocação de escritor, para a qual era dotado dos instrumentos mais aptos, como se deixou envelhecer antes do tempo, vitimado por uma sobrecarga de aborrecimentos inúteis, quais os que lhe eram diariamente despejados em cima pelo natural mau gosto arquitetônico da classe média em ascensão, desservida pela desonestidade profissional de arquitetos de araque ou pela politicagem de alguns prefeitos do interior mais interessados em votos que em ex-votos; em fazer média com obras excêntricas e antipatrimoniais com vistas ao meio ambiente e ao futuro, que na restauração e preservação das autênticas, legadas pelas dores do passado e, de resto, as únicas capazes de fazer progredir, através do turismo, as cidades e regiões sob sua administração. Você lutava uma luta miúda contra o mão-de-paca da administração federal, sempre curto de verbas para atender às múltiplas e prementes exigências de restauração de obras do patrimônio sob sua guarda. Essa luta, você a levava para casa, fazia dela participarem sua admirável companheira, seus filhos e seus amigos mais íntimos. Houve um tempo - o tempo da rua Bulhões de Carvalho - em que toda quarta-feira nós íamos - Manuel Bandeira, Pedro Nava, eu e, com menos freqüência, Afonso Arinos de Melo Franco e Prudente de Morais, Neto - jantar com você e sua Graciema, na casa arrumada com tanto gosto e carinho; e ali ficávamos até altas horas traçando nosso uísque; debatendo os problemas de nossa vida e nossa época; lendo ainda no original os poemas admiráveis de Carlos Drummond; por vezes convivendo com escritores amigos de Minas e Pernambuco, de passagem pelo Rio, e para os quais uma chegada à sua casa, e à de Aníbal Machado, constituía a melhor das obrigações. A conversa era inteligente, bem escandida, não isenta de humor negro, no qual, como bom mineiro, você não deixava de se comprazer. Nem faltava, tampouco, lirismo - um tanto macabro, é certo - não fôssemos nós, como diria seu também amigo Otto Lara Resende, inquilinos vitalícios da morte, sempre carregando o eterno Defunto (de Pedro Nava) em nosso cotidiano mais fisiológico. Você ria sua risada levemente dispnéica, passando a mão felpuda rosto abaixo e balançando a cabeça de cabelos ralos mas impecavelmente penteados, a cada novo sutil achado de Nava ou de Prudente; ou à lembrança de minhas aventuras em nossa primeira viagem a Ouro Preto, no inverno de 1938, quando fomos com esse caro José Reis debulhar os gavetões da sacristia de São Francisco de Assis à cata de comprovantes de obras de talha do Aleijadinho ainda não autenticadas: e com que sucesso. Eu tivera meu primeiro desafio ao violão com o famoso improvisador Zé Badu, provocado por este, que queria brilhar à minha custa, mas por um desses azares da parlenda, estrepou-se em verde e amarelo: e, irado, partiu a dar tiros para o alto que só não mataram a família do dono do restaurante, dormindo no andar de cima, porque bala não sabe o que faz - e é só perguntar aos então jovens arquitetos Carlos Flexa Ribeiro e Vladimir Alves de Sousa, de corpo presente. Ou meu namoro com uma Mariliazinha (mesmo!) de 13 anos, mais linda e meiga que sua antiga homônima, com enormes olhos em calda... 


                        E UM CRISTO MAL CRUCIFICADO NO SEIO DE BRINQUEDO 

            Ah, eu posso sentir ainda, amigo amado, o frio seco prisioneiro das belas fachadas coloniais da rua São José, e o som de nossos passos nos pés-de-moleque do calçamento. Na nesga de céu acima brilhavam as estrelas mais despudoradas do Brasil, que são as de Ouro Preto. Nós aquecíamos o peito com birita de rico, aguardente bem destilada com que nos regalavam, e resfolegávamos ladeira acima no rastro da beleza sempre a se desdobrar à nossa frente, sempre a nos surpreender a cada esquina, entre sons de serenata.

            Meus olhos, amigos, ainda não choravam sua morte. A gastura da vida que me cerca, e a grosseria dos homens que a povoam, com raras exceções, me têm de certo modo endurecido. Mas eu sei que um dia, no silêncio de uma madrugada, à simples lembrança do seu rosto erosado de rugas; à simples sensação do toque de suas mãos fraternas, no tato breve e discreto da amizade; à simples materialização do seu espectro amado no espaço expectante da minha vontade de rever você - ah, eu sei que elas correrão livres e intermináveis, para que eu possa dessedentar a saudade excruciante que sinto cada minuto, cada hora, da sua presença; do som da sua voz ao telefone a me saudar assim: "Então, querido?..."; do aconchego de sua casa e do carinho da amiga Graciema, a quem ainda não tive coragem de ir ver, para não repisar-lhe as penas. Mas sei que vou chorar, e só então você se incoporará definitivamente ao boca-livre permanente que mantenho em casa para os meus mortos. Onde você chegará, querido retardatário, me pedindo perdão pelo atraso - quando eu é que lhe devia pedir perdão de ainda não ter podido chorar -; e ficará contente de ver tantos amigos comuns que se anteciparam a você : Zé Cláudio, Zé Lins, Gastão Cruls, Mário de Andrade, Jayme Ovalle, Graciliano, Portinari, Aníbal... toda essa linda curriola. E sobretudo - penúltimo a chegar e primeiro em precedência no nosso coração - seu muito amado Manula, meu paizinho Manuel Bandeira, que um dia se perguntou como melhor precisar esta palavra amizade. E sem hesitação respondeu: nomeando o amigo exemplar - Rodrigo M.F. de Andrade.

            Falou e disse.


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 06:50

      DESERT HOT SPRINGS
      Na piscina pública de Desert Hot Springs
      O homem, meu heroico semelhante
      Arrasta pelo ladrilho deformidades insolúveis.
      Nesta, como em outras lutas
      Sua grandeza reveste-se de uma humilde paciência
      E a dor física esconde sua ridícula pantomima
      Sob a aparência de unhas feitas, lábios pintados e outros artifícios de vaidade.

      Macróbios espetaculares
      Espapaçam ao sol as juntas espinhosas como cactos
      Enquanto adolescências deletérias passeiam nas águas balsâmicas
      Seus corpos, ah, seus corpos incapazes de nunca amar.
      As cálidas águas minerais
      Com que o deserto impôs às Câmaras de Comércio
      Sua dura beleza outramente inabitável
      Acariciam aleivosamente seios deflatados
      Pernas esquálidas, gótico americano
      De onde protuberam dolorosas cariátides patológicas.
      Às bordas da piscina
      A velhice engruvinhada morcega em posições fetais
      Enquanto a infância incendida atira-se contra o azul
      Estilhaçando gotas luminosas e libertando rictos
      De faces mumificadas em sofrimentos e lembranças.
      A Paralisia Infantil, a quem foi poupada um rosto talvez belo
      Inveja, de seu líquido nicho, a Asma tensa e esquelética
      Mas que conseguiu despertar o interesse do Reumatismo Deformante.
      Deitado num banco de pedra, a cabeça no colo de sua mãe, o olhar infinitamente ausente
      Um blue boy extingue em longas espirais invisíveis
      A cera triste de sua matéria inacabada — a culpa hereditária
      Transformou a moça numa boneca sem cabimento.
      O banhista, atlético e saudável
      Recolhe periodicamente nos braços os despojos daquelas vidas
      Coloca-os em suas cadeiras de rodas, devolve-os a guardiães expectantes.
      E lá se vão eles a enfrentar o que resta de mais um dia
      E dos abismos de memória, sentados contra o deserto
      O grande deserto nu e só, coberto de calcificações anômalas
      E arbustos ensimesmados; o grande deserto antigo e áspero
      Testemunha das origens; o grande deserto em luta permanente contra a morte
      Habitado por plantas e bichos que ninguém sabe como vivem
      Varado por ventos que vêm ninguém sabe donde.


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 06:52

      ELEGIA NA MORTE DE CLODOALDO PEREIRA DA SILVA MORAES, POETA E CIDADÃO

      A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas.
      Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva.
      De repente não tinha pai.
      No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança
      Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância
      Boiaram do mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino
      Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna
      Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta
      De Augusto geralmente procrastinava a tarde.
      Era belo esperar-te, cidadão. O bondinho
      Rangia nos trilhos a muitas praias de distância
      Dizíamos: “E-vem meu pai!”. Quando a curva
      Se acendia de luzes semoventes, ah, corríamos
      Corríamos ao teu encontro. A grande coisa era chegar antes
      Mas ser marraio em teus braços, sentir por último
      Os doces espinhos da tua barba.
      Trazias de então uma expressão indizível de fidelidade e paciência
      Teu rosto tinha os sulcos fundamentais da doçura
      De quem se deixou ser. Teus ombros possantes
      Se curvavam como ao peso da enorme poesia
      Que não realizaste. O barbante cortava teus dedos
      Pesados de mil embrulhos: carne, pão, utensílios
      Para o cotidiano (e frequentemente o binóculo
      Que vivias comprando e com que te deixavas horas inteiras
      Mirando o mar). Dize-me, meu pai
      Que viste tantos anos através do teu óculo-de-alcance
      Que nunca revelaste a ninguém?
      Vencias o percurso entre a amendoeira e a casa como o atleta exausto no último lance da maratona.
      Te grimpávamos. Eras penca de filho. Jamais
      Uma palavra dura, um rosnar paterno. Entravas a casa humilde
      A um gesto do mar. A noite se fechava
      Sobre o grupo familial como uma grande porta espessa.

      *

      Muitas vezes te vi desejar. Desejavas. Deixavas-te olhando o mar
      Com mirada de argonauta. Teus pequenos olhos feios
      Buscavam ilhas, outras ilhas... — as imaculadas, inacessíveis
      Ilhas do Tesouro. Querias. Querias um dia aportar
      E trazer — depositar aos pés da amada as joias fulgurantes
      Do teu amor. Sim, foste descobridor, e entre eles
      Dos mais provectos. Muitas vezes te vi, comandante
      Comandar, batido de ventos, perdido na fosforescência
      De vastos e noturnos oceanos
      Sem jamais.

      Deste-nos pobreza e amor. A mim me deste
      A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar
      Em silêncio. Foste um pobre. Mendigavas nosso amor
      Em silêncio. Foste um no lado esquerdo. Mas
      Teu amor inventou. Financiaste uma lancha
      Movida a água: foi reta para o fundo.
      Partiste um dia
      Para um brasil além, garimpeiro, sem medo e sem mácula.
      Doze luas voltaste. Tua primogênita — diz-se —
      Não te reconheceu. Trazias grandes barbas e pequenas águas-marinhas.
      Não eram, meu pai. A mim me deste
      Águas-marinhas grandes, povoadas de estrelas, ouriços
      E guaiamus gigantes. A mim me deste águas-marinhas
      Onde cada concha carregava uma pérola. As águas-marinhas que me deste
      Foram meu primeiro leito nupcial. 

      *

      Eras, meu pai morto
      Um grande Clodoaldo
      Capaz de sonhar
      Melhor e mais alto
      Precursor do binômio
      Que reverteria
      Ao nome original
      Semente do sêmen
      Revolucionário
      Gentil-homem insigne
      Poeta e funcionário
      Sempre preterido
      Nunca titular
      Neto de Alexandre
      Filho de Maria
      Cônjuge de Lydia
      Pai da Poesia.

      *

      Diante de ti homem não sou, não quero ser. És pai do menino que eu fui.
      Entre minha barba viva e a tua morta, todavia crescendo
      Há um toque irrealizado. No entanto, meu pai
      Quantas vezes ao ver-te dormir na cadeira de balanço de muitas salas
      De muitas casas de muitas ruas
      Não te beijei em meu pensamento! Já então teu sono
      Prenunciava o morto que és, e minha angústia
      Buscava ressuscitar-te. Ressuscitavas. Teu olhar
      Vinha de longe, das cavernas imensas do teu amor, aflito
      Como a querer defender. Vias-me e sossegavas.
      Pouco nos dizíamos: “Como vai?”. Como vais, meu pobre pai
      No teu túmulo? Dormes, ou te deixas
      A contemplar acima — eu bem me lembro! — perdido
      Na decifração de como ser?
      Ah, dor! Como quisera
      Ser de novo criança em teus braços e ficar admirando tuas mãos!
      Como quisera escutar-te de novo cantar criando em mim
      A atonia do passado! Quantas baladas, meu pai
      E que lindas! Quem te ensinou as doces cantigas
      Com que embalavas meu dormir? Voga sempre o leve batel
      A resvalar macio pelas correntezas do rio da paixão?
      Prosseguem as donzelas em êxtase na noite à espera da barquinha
      Que busca o seu adeus? E continua a rosa a dizer à brisa
      Que já não mais precisa os beijos seus?
      Calaste-te, meu pai. No teu ergástulo
      A voz não é — a voz com que me apresentavas aos teus amigos:
      “Esse é meu filho FULANO DE TAL”. E na maneira
      De dizê-lo — o voo, o beijo, a bênção, a barba
      Dura rocejando a pele, ai!

      *

      Tua morte, como todas, foi simples.
      É coisa simples a morte. Dói, depois sossega. Quando sossegou —
      Lembro-me que a manhã raiava em minha casa — já te havia eu
      Recuperado totalmente: tal como te encontras agora, vestido de mim.
      Não és, como não serás nunca para mim
      Um cadáver sob um lençol.
      És para mim aquele de quem muitos diziam: “É um poeta...”
      Poeta foste, e és, meu pai. A mim me deste
      O primeiro verso à namorada. Furtei-o
      De entre teus papéis: quem sabe onde andará... Fui também
      Verso teu: lembro ainda hoje o soneto que escreveste celebrando-me
      No ventre materno. E depois, muitas vezes
      Vi-te na rua, sem que me notasses, transeunte
      Com um ar sempre mais ansioso do que a vida. Levava-te a ambição
      De descobrir algo precioso que nos dar.
      Por tudo o que não nos deste
      Obrigado, meu pai.
      Não te direi adeus, de vez que acordaste em mim
      Com uma exatidão nunca sonhada. Em mim geraste
      O Tempo: aí tens meu filho, e a certeza
      De que, ainda obscura, a minha morte dá-lhe vida
      Em prosseguimento à tua; aí tens meu filho
      E a certeza de que lutarei por ele. Quando o viste a última vez
      Era um menininho de três anos. Hoje cresceu
      Em membros, palavras e dentes. Diz de ti, bilíngue:
      “Vovô was always teasing me...”
      É meu filho, teu neto. Deste-lhe, em tua digna humildade
      Um caminho: o meu caminho. Marcha ela na vanguarda do futuro
      Para um mundo em paz: o teu mundo — o único em que soubeste viver;
      aquele que, entre lágrimas, cantos e martírios, realizaste à tua volta.


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 06:53

      POÉTICA

      De manhã escureço
      De dia tardo
      De tarde anoiteço
      De noite ardo.

      A oeste a morte
      Contra quem vivo
      Do sul cativo
      O este é meu norte.

      Outros que contem
      Passo por passo:
      Eu morro ontem

      Nasço amanhã
      Ando onde há espaço:
      — Meu tempo é quando.

      Nova York, 1950


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      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 06:55

      SONETO DE ANIVERSÁRIO



      Passem-se dias, horas, meses, anos
      Amadureçam as ilusões da vida
      Prossiga ela sempre dividida
      Entre compensações e desenganos.



      Faça-se a carne mais envilecida
      Diminuam os bens, cresçam os danos
      Vença o ideal de andar caminhos planos
      Melhor que levar tudo de vencida.



      Queira-se antes ventura que aventura
      À medida que a têmpora embranquece
      E fica tenra a fibra que era dura.



      E eu te direi: amiga minha, esquece...
      Que grande é este amor meu de criatura
      Que vê envelhecer e não envelhece.



      Rio, 1942


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      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 06:59

      La ausente


      Amiga, infinitamente amiga
      En algún lugar tu corazón late por mí
      En algún lugar tus ojos se cierran al recordar los míos
      En algún lugar tus manos se crispan, tus senos
      Se hinchan de leche, desfalleces y caminas
      Como ciega a mi encuentro...
      Amiga, última locura
      La tranquilidad suavizó mi piel
      Y mis cabellos. Sólo mi vientre
      Te espera, lleno de raíces y de asombros
      Ven amiga.
      Mi desnudez es absoluta
      Mis ojos son espejos para tu deseo
      Y mi pecho es tabla de suplicios
      Ven. Mis músculos son dulces para tus dientes
      Y áspera mi barba. Ven a sumergirte en mí
      Como en el mar, a nadar en mí como en el mar
      Ven, ahógate en mí, amiga mía
      En mí como en el mar...


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      "Ser como un verso volando
      o un ciego soñando
      y en ese vuelo y en ese sueño
      compartir contigo sol y luna,
      siendo guardián en tu cielo
      y tren de tus ilusiones."
      (Hánjel)





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      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 07:01




      Quiero llorar porque te amé demasiado,
      quiero morir porque me diste la vida,
      ay, amor mío, ¿será que nunca he de tener paz?
      Será que todo lo que hay en mí
      sólo quiere decir saudade...
      Y ya ni sé lo que va a ser de mí,
      todo me dice que amar será mi fin...
      Qué desespero trae el amor,
      yo que no sabía lo que era el amor,
      ahora lo sé porque no soy feliz.


      _________________



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      VINICIUS DE MORAES  - Página 14 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Lun 16 Mayo 2022, 07:05

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