MPB - ZERO
Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969
A propósito do IV Festival Internacional
O samba já cumpriu seu cinqüentenário. Um bem bonito rol, e uma estranha parábola pois nasceu antigo e foi ficando cada vez mais jovem: e que mais poderia desejar um cinqüentão? E só recentemente, depois de absorvida a luta e experiência de seus velhos mestres é que ele, como um estudante inquieto, partiu em busca de horizontes novos e iniciou a conquista do mundo. De Pixinguinha a Francis Hime, cinqüenta anos se passaram em que, como despreocupados mas atentos atletas de uma longa maratona, foram todos esses grandes passando de um para outro a tocha viva do samba, cumprindo etapa sobre etapa nessa constante e orgânica corrida. De Donga e Sinhô a Nonô e Ismael Silva; e destes a Geraldo Pereira, Dorival Caymmi, e Noel Rosa; e de Noel Rosa a Ari Barroso; e de Ari Barroso a Ismael Neto; e de Ismael Neto a Antônio Carlos Jobim; e deste a Chico Buarque de Holanda, nunca esses soberbos atletas deixaram a tocha cair ou suas pernas fraquejarem. Passaram-se, em plena carreira, o símbolo ígneo com sorrisos fraternos e palavras de animação, em boa gíria carioca. De cutuba, o samba ficou do balacobaco e depois da pontinha, para hoje tornar-se, com o advento da bossa nova e da moderna música popular, tal como a praticam Edu Lobo, Dori Caymmi, Francis Hime, Milton Nascimento, Caetano Veloso e Egberto Gismonti, no fino do som, no superquente, no cheio de plá. De ritmo, passou a ter balanço. Mas - insisto - na mão desses incansáveis atletas, nunca se descaracterizou. E se absorveu o que de melhor lhe poderia emprestar o jazz, como instrumentação e sentido de improvisação, foi para logo lhe devolver - e com juros - um novo sentido melódico e rítmico, e uma poesia mais afirmativa, menos convencional.
O resultado está aí: o samba tradicional voltando eventualmente, como no caso de um Chico Buarque, um Paulinho da Viola e um Sídnei Miller, com uma nova originalidade, e o samba moderno de um Jobim, de um Carlos Lyra, de um Baden Powell penetrando cada vez mais as estruturas musicais estrangeiras, com a graça de sua banda e a ubiqüidade do seu ritmo. Esses homens já são conhecidos no mundo inteiro. Ainda ontem eu ouvi a fita de um novo LP de Sinatra gravando músicas de Tom, com soberbos arranjos de Eumir Deodato. É, como diria Jaime Ovalle, o pobre dando esmola ao rico. Os grandes da bossa nova abriram caminho, ao mesmo tempo, para seus irmãos mais velhos e mais jovens: e o fizeram quando a estrada era de pedras, não de pétalas. E novos talentos aparecem, já correndo paralelamente a seus maiores, ansiosos também por levar a tocha do samba até a vitória última. Aí estão Gilberto Gil, Caetano Veloso, Antônio Adolfo, Macalé, Danilo Caymmi, Gismonti e seus parceiros prontos para novas arrancadas.
Isso é cultura. Cultura de um povo a manifestar em sua arte mais popular, não só um grande sentido de integração, como de sensibilidade coletiva; cultura de seus músicos, a se fazerem os intérpretes mais comunicativos dessa integração. O resto... é silêncio. Deixa pra lá. Porque, com ou sem Festival, o que todo mundo quer mesmo, é cantar junto.
Nada disso, é claro, poderia ter existido se há cinqüenta e poucos anos um crioulinho chamado Alfredo da Rocha Viana, freqüentador assíduo do terreiro da velha tia Ciata - ali onde ficava a antiga praça Onze - não se misturasse ao baiano que batucava no primitivo mercado, e que depois partiu para organizar os primeiros ranchos de carnaval: o grande Pixinguinha, o genial chorão. E é dessas raízes fundamentais que a meninada dos dois últimos festivais parece andar querendo se arrancar. Que esperança! Resulta, com pouquíssimas exceções, em toda a chatice que se ouviu nesta última semana, fruto de um desejo mais de aparecer que de ser. E é espantoso, também, como jovens músicos surgidos nos últimos três ou quatro anos, como Edu Lobo, Milton Nascimento e Caetano Veloso (com direito, de vez em quando, a uma geraldovandrezada) são instituídos em verdadeiros mestres (e estou certo que sem a sua aquiescência) por uma garotada mal saída dos cueiros; quando os próprios, músicos de grande talento, é fora de dúvida, acham-se, ainda em pleno aprendizado de sua arte.
Vamos com calma... mestre é Pixinguinha, é Ismael Silva, é Nélson Cavaquinho, é Noel Rosa, é Ari Barroso, é Antônio Carlos Jobim. O que os meninos estão fazendo, com algumas e não excepcionais exceções, é um triste e chato pantógrafo daqueles três jovens músicos (com direito, de vez em quando, a uma geraldovandrezada), de quem tudo se espera, mas que estão longe ainda de ter uma obra realizada. E quando não é uma cópia medíocre de um deles, é um coquetel dos três (com direito, de vez em quando, etc., etc.).
Que pobreza... Por que será que os jovens estão nascendo cada vez mais velhos? Será isto um problema cibernético?
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