Aires de Libertad

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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Sáb 20 Ago 2022, 10:18

      ÂNSIA

      Na treva que se fez em torno a mim
      Eu vi a carne.
      Eu senti a carne que me afogava o peito
      E me trazia à boca o beijo maldito.

      Eu gritei.

      De horror eu gritei que a perdição me possuía a alma
      E ninguém me atendeu.

      Eu me debati em ânsias impuras
      A treva ficou rubra em torno a mim
      E eu caí!

      As horas longas passaram.

      O pavor da morte me possuiu.

      No vazio interior ouvi gritos lúgubres
      Mas a boca beijada não respondeu aos gritos.

      Tudo quedou na prostração.

      O movimento da treva cessou ante mim.

      A carne fugiu
      Desapareceu devagar, sombria, indistinta
      Mas na boca ficou o beijo morto.

      A carne desapareceu na treva

      E eu senti que desaparecia na dor
      Que eu tinha a dor em mim como tivera a carne
      Na violência da posse.

      Olhos que olharam a carne
      Por que chorais?
      Chorais talvez a carne que foi
      Ou chorais a carne que jamais voltará?
      Lábios que beijaram a carne
      Por que tremeis?
      Não vos bastou o afago de outros lábios
      Tremeis pelo prazer que eles trouxeram
      Ou tremeis no balbucio da oração?
      Carne que possui a carne
      Onde o frio?
      Lá fora a noite é quente e o vento é tépido
      Gritam luxúria nesse vento
      Onde o frio?

      Pela noite quente eu caminhei...
      Caminhei sem rumo, para o ruído longínquo
      Que eu ouvia, do mar.
      Caminhei talvez para a carne
      Que vira fugir de mim.

      No desespero das árvores paradas busquei consoloção
      E no silêncio das folhas que caíam senti o ódio
      Nos ruídos do mar ouvi o grito de revolta
      E de pavor fugi.

      Nada mais existe para mim
      Só talvez tu, Senhor.
      Mas eu sinto em mim o aniquilamento...

      Dá-me apenas a aurora, Senhor
      Já que eu não poderei jamais ver a luz do dia.


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      o un ciego soñando
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      siendo guardián en tu cielo
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      Mensaje por Maria Lua Sáb 20 Ago 2022, 10:19

      VELHA HISTÓRIA


      Depois de atravessar muitos caminhos
      Um homem chegou a uma estrada clara e extensa
      Cheia de calma e luz.
      O homem caminhou pela estrada afora
      Ouvindo a voz dos pássaros e recebendo a luz forte do sol
      Com o peito cheio de cantos e a boca farta de risos.
      O homem caminhou dias e dias pela estrada longa
      Que se perdia na planície uniforme.
      Caminhou dias e dias...
      Os únicos pássaros voaram
      Só o sol ficava
      O sol forte que lhe queimava a fronte pálida.
      Depois de muito tempo ele se lembrou de procurar uma fonte
      Mas o sol tinha secado todas as fontes.
      Ele perscrutou o horizonte
      E viu que a estrada ia além, muito além de todas as coisas.
      Ele perscrutou o céu
      E não viu nenhuma nuvem.

      E o homem se lembrou dos outros caminhos.
      Eram difíceis, mas a água cantava em todas as fontes
      Eram íngremes, mas as flores embalsamavam o ar puro
      Os pés sangravam na pedra, mas a árvore amiga velava o sono.
      Lá havia tempestade e havia bonança
      Havia sombra e havia luz.

      O homem olhou por um momento a estrada clara e deserta
      Olhou longamente para dentro de si
      E voltou.


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      Mensaje por Maria Lua Sáb 20 Ago 2022, 10:19

      PURIFICAÇÃO


      Senhor, logo que eu vi a natureza
      As lágrimas secaram.
      Os meus olhos pousados na contemplação
      Viveram o milagre de luz que explodia no céu.

      Eu caminhei, Senhor.
      Com as mãos espalmadas eu caminhei para a massa de seiva
      Eu, Senhor, pobre massa sem seiva
      Eu caminhei.
      Nem senti a derrota tremenda
      Do que era mau em mim.
      A luz cresceu, cresceu interiormente
      E toda me envolveu.

      A ti, Senhor, gritei que estava puro
      E na natureza ouvi a tua voz.
      Pássaros cantaram no céu
      Eu olhei para o céu e cantei e cantei.
      Senti a alegria da vida
      Que vivia nas flores pequenas
      Senti a beleza da vida
      Que morava na luz e morava no céu
      E cantei e cantei.

      A minha voz subiu até ti, Senhor
      E tu me deste a paz.
      Eu te peço, Senhor
      Guarda meu coração no teu coração
      Que ele é puro e simples.
      Guarda a minha alma na tua alma
      Que ela é bela, Senhor.
      Guarda o meu espírito no teu espírito
      Porque ele é a minha luz
      E porque só a ti ele exalta e ama.


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      Mensaje por Maria Lua Sáb 20 Ago 2022, 10:20

      SACRIFÍCIO



      Num instante foi o sangue, o horror, a morte na lama do chão.
      — Segue, disse a voz. E o homem seguiu, impávido
      Pisando o sangue do chão, vibrando, na luta.
      No ódio do monstro que vinha
      Abatendo com o peito a miséria que vivia na terra
      O homem sentiu a própria grandeza
      E gritou que o heroísmo é das almas incompreendidas.

      Ele avançou.
      Com o fogo da luta no olhar ele avançou sozinho.
      As únicas estrelas que restavam no céu
      Desapareceram ofuscadas ao brilho fictício da lua.
      O homem sozinho, abandonado na treva
      Gritou que a treva é das almas traídas
      E que o sacrifício é a luz que redime.

      Ele avançou.
      Sem temer ele olhou a morte que vinha
      E viu na morte o sentido da vitória do Espírito.
      No horror do choque tremendo
      Aberto em feridas o peito
      O homem gritou que a traição é da alma covarde
      E que o forte que luta é como o raio que fere
      E que deixa no espaço o estrondo da sua vinda.

      No sangue e na lama
      O corpo sem vida tombou.
      Mas nos olhos do homem caído
      Havia ainda a luz do sacrifício que redime
      E no grande Espírito que adejava o mar e o monte
      Mil vozes clamavam que a vitória do homem forte tombado na luta
      Era o novo Evangelho para o homem da paz que lavra no campo.


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      Mensaje por Maria Lua Sáb 20 Ago 2022, 18:44

      A FLORESTA



      Sobre o dorso possante do cavalo
      Banhado pela luz do sol nascente
      Eu penetrei o atalho, na floresta.
      Tudo era força ali, tudo era força
      Força ascencional da natureza.
      A luz que em torvelinhos despenhava
      Sobre a coma verdíssima da mata
      Pelos claros das árvores entrava
      E desenhava a terra de arabescos.
      Na vertigem suprema do galope
      Pelos ouvidos, doces, perpassavam
      Cantos selvagens de aves indolentes.
      A branda aragem que do azul descia
      E nas folhas das árvores brincava
      Trazia à boca um gosto saboroso
      De folha verde e nova e seiva bruta.
      Vertiginosamente eu caminhava
      Bêbado da frescura da montanha
      Bebendo o ar estranguladamente.
      Às vezes, a mão firme apaziguava
      O impulso ardente do animal fogoso
      Para ouvir de mais perto o canto suave
      De alguma ave de plumagem rica
      E após, soltando as rédeas ao cavalo
      Ia de novo loucamente à brida.

      De repente parei. Longe, bem longe
      Um ruído indeciso, informe ainda
      Vinha às vezes, trazido pelo vento.
      Apenas branda aragem perpassava
      E pelo azul do céu, nenhuma nuvem.
      Que seria? De novo caminhando
      Mais distinto escutava o estranho ruído
      Como que o ronco baixo e surdo e cavo
      De um gigante de lenda adormecido.

      A cachoeira, Senhor! A cachoeira!
      Era ela. Meu Deus, que majestade!
      Desmontei. Sobre a borda da montanha
      Vendo a água lançando-se em peitadas
      Em contorções, em doidos torvelinhos
      Sobre o rio dormente e marulhoso
      Eu tive a estranha sensação da morte.

      Em cima o rio vinha espumejante
      Apertado entre as pedras pardacentas
      Rápido e se sacudindo em branca espuma.
      De repente era o vácuo embaixo, o nada
      A queda célere e desamparada
      A vertigem do abismo, o horror supremo
      A água caindo, apavorada, cega
      Como querendo se agarrar nas pedras
      Mas caindo, caindo, na voragem
      E toda se estilhaçando, espumecente.

      Lá fiquei longo tempo sobre a rocha
      Ouvindo o grande grito que subia
      Cheio, eu também, de gritos interiores.
      Lá fiquei, só Deus sabe quanto tempo
      Sufocando no peito o sofrimento
      Caudal de dor atroz e inapagável
      Bem mais forte e selvagem do que a outra.
      Feita ela toda da desesperança
      De não poder sentir a natureza
      Com o espírito em Deus que a fez tão bela.

      Quando voltei, já vinha o sol mais alto
      E alta vinha a tristeza no meu peito.
      Eu caminhei. De novo veio o vento
      Os pássaros cantaram novamente
      De novo o aroma rude da floresta
      De novo o vento. Mas eu nada via.
      Eu era um ser qualquer que ali andava
      Que vinha para o ponto de onde viera
      Sem sentido, sem luz, sem esperança
      Sobre o dorso cansado de um cavalo.


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      Mensaje por Maria Lua Dom 21 Ago 2022, 09:05

      TARDE

      Na hora dolorosa e roxa das emoções silenciosas
      Meu espírito te sentiu.
      Ele te sentiu imensamente triste
      Imensamente sem Deus
      Na tragédia da carne desfeita.

      Ele te quis, hora sem tempo
      Porque tu eras a sua imagem, sem Deus e sem tempo.
      Ele te amou
      E te plasmou na visão da manhã e do dia
      Na visão de todas as horas
      Ó hora dolorosa e roxa das emoções silenciosas.


      *******************************

      TARDE

      En la hora dolorosa y morada de las emociones silenciosas
      Mi espíritu te sintió.
      Te sintió inmensamente triste
      Inmensamente sin Dios
      En la tragedia de la carne destrozada.

      Él te quería, hora sin tiempo
      Porque eras su imagen, sin Dios y sin tiempo.
      el te amó
      Y te moldeó en la visión de la mañana y del día.
      A la vista de todas las horas
      Oh dolorosa y morada hora de emociones silenciosas.



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      Mensaje por Maria Lua Dom 21 Ago 2022, 09:06

      RUA DA AMARGURA


      A minha rua é longa e silenciosa como um caminho que foge
      E tem casas baixas que ficam me espiando de noite
      Quando a minha angústia passa olhando o alto.
      A minha rua tem avenidas escuras e feias
      De onde saem papéis velhos correndo com medo do vento
      E gemidos de pessoas que estão eternamente à morte.
      A minha rua tem gatos que não fogem e cães que não ladram
      Tem árvores grandes que tremem na noite silente
      Fugindo as grandes sombras dos pés aterrados.
      A minha rua é soturna...
      Na capela da igreja há sempre uma voz que murmura louvemos
      Sozinha e prostrada diante da imagem
      Sem medo das costas que a vaga penumbra apunhala.

      A minha rua tem um lampião apagado
      Na frente da casa onde a filha matou o pai
      Porque não queria ser dele.
      No escuro da casa só brilha uma chapa gritando quarenta.

      A minha rua é a expiação de grandes pecados
      De homens ferozes perdendo meninas pequenas
      De meninas pequenas levando ventres inchados
      De ventres inchados que vão perder meninas pequenas.
      É a rua da gata louca que mia buscando os filhinhos nas portas das casas.

      É a impossibilidade de fuga diante da vida
      É o pecado e a desolação do pecado
      É a aceitação da tragédia e a indiferença ao degredo
      Como negação do aniquilamento.

      É uma rua como tantas outras
      Com o mesmo ar feliz de dia e o mesmo desencontro de noite.
      É a rua por onde eu passo a minha angústia
      Ouvindo os ruídos subterrâneos como ecos de prazeres inacabados.
      É a longa rua que me leva ao horror do meu quarto
      Pelo desejo de fugir à sua murmuração tenebrosa
      Que me leva à solidão gelada do meu quarto...

      Rua da amargura...


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      Mensaje por Maria Lua Dom 21 Ago 2022, 09:07

      VIGÍLIA



      Eu às vezes acordo e olho a noite estrelada
      E sofro doidamente.
      A lágrima que brilha nos meus olhos
      Possui por um segundo a estrela que brilha no céu.

      Eu sofro no silêncio
      Olhando a noite que dorme iluminada
      Pavorosamente acordado à dor e ao silêncio
      Pavorosamente acordado!

      Tudo em mim sofre.
      Ao peito opresso não basta o ar embalsamado da noite
      Ao coração esmagado não basta a lágrima triste que desce,
      E ao espírito aturdido não basta a consolação do sofrimento.
      Há qualquer coisa fora de mim, não sei, no vago
      Como que uma presença indefinida
      Que eu sinto mas não tenho.

      Meu sofrimento é o maior de todos os sentimentos
      Porque ele não precisou a visão que flutua
      E não a precisará jamais.
      A dor estará em mim e eu estarei na dor
      Em todas as minhas vigílias...
      Eu sofrerei até o último dia
      Porque será meu último dia o último dia da minha mocidade.


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      o un ciego soñando
      y en ese vuelo y en ese sueño
      compartir contigo sol y luna,
      siendo guardián en tu cielo
      y tren de tus ilusiones."
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      Mensaje por Maria Lua Dom 21 Ago 2022, 09:08

      O POETA



      A vida do poeta tem um ritmo diferente
      É um contínuo de dor angustiante.
      O poeta é o destinado do sofrimento
      Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza
      E a sua alma é uma parcela do infinito distante
      O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende.

      Ele é o eterno errante dos caminhos
      Que vai, pisando a terra e olhando o céu
      Preso pelos extremos intangíveis
      Clareando como um raio de sol a paisagem da vida.
      O poeta tem o coração claro das aves
      E a sensibilidade das crianças.
      O poeta chora.
      Chora de manso, com lágrimas doces, com lágrimas tristes
      Olhando o espaço imenso da sua alma.
      O poeta sorri.
      Sorri à vida e à beleza e à amizade
      Sorri com a sua mocidade a todas as mulheres que passam.
      O poeta é bom.
      Ele ama as mulheres castas e as mulheres impuras
      Sua alma as compreende na luz e na lama
      Ele é cheio de amor para as coisas da vida
      E é cheio de respeito para as coisas da morte.
      O poeta não teme a morte.
      Seu espírito penetra a sua visão silenciosa
      E a sua alma de artista possui-a cheia de um novo mistério.
      A sua poesia é a razão da sua existência
      Ela o faz puro e grande e nobre
      E o consola da dor e o consola da angústia.

      A vida do poeta tem um ritmo diferente
      Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e olhando o céu
      Preso, eternamente preso pelos extremos intangíveis.


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      Mensaje por Maria Lua Dom 21 Ago 2022, 09:08

      MORMAÇO



      No silêncio morno das coisas do meio-dia
      Eu me esvaio no aniquilamento dos agudíssimos do violino
      Que a menina pálida estuda há anos sem compreender.
      Eu sinto o letargo das dissonâncias harmônicas
      Do vendedor de modinhas e da pedra do amolador
      Que trazem a visão de mulheres macilentas dançando no espaço
      Na moleza das espatifadas da carne.

      Eu vou pouco a pouco adormecendo
      Sentindo os gritos do violino que penetram em todas as frestas
      E ressecam os lábios entreabertos na respiração
      Mas que dão a impressão da mediocridade feliz e boa.

      Que importa que a imagem do Cristo pregada na parede seja a verdade...

      Eu sinto que a verdade é a grande calma do sono
      Que vem com o cantar longínquo dos galos
      E que me esmaga nos cílios longos beijos luxuriosos...

      Eu sinto a queda de tudo na lassidão...
      Adormeço aos poucos na apatia dos ruídos da rua
      E na constância nostálgica da tosse do vizinho tuberculoso
      Que há um ano espera a morte que eu morro no sono do meio-dia.


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      Mensaje por Maria Lua Dom 21 Ago 2022, 09:09

      ROMANZA



      Branca mulher de olhos claros
      De olhar branco e luminoso
      Que tinhas luz nas pupilas
      E luz nos cabelos louros
      Onde levou-te o destino
      Que te afastou para longe
      Da minha vista sem vida
      Da minha vida sem vista?

      Andavas sempre sozinha
      Sem cão, sem homem, sem Deus
      Eu te seguia sozinho
      Sem cão, sem mulher, sem Deus
      Eras a imagem de um sonho
      A imagem de um sonho eu era
      Ambos levando a tristeza
      Dos que andam em busca do sonho.

      Ias sempre, sempre andando
      E eu ia sempre seguindo
      Pisando na tua sombra
      Vendo-a às vezes se afastar
      Nem sabias quem eu era
      Não te assustavam meus passos
      Tu sempre andando na frente
      Eu sempre atrás caminhando.

      Toda a noite em minha casa
      Passavas na caminhada
      Eu te esperava e seguia
      Na proteção do meu passo
      E após o curto caminho
      Da praia de ponta a ponta
      Entravas na tua casa
      E eu ia, na caminhada.

      Eu te amei, mulher serena
      Amei teu vulto distante
      Amei teu passo elegante
      E a tua beleza clara
      Na noite que sempre vinha
      Mas sempre custava tanto
      Eu via a hora suprema
      Das horas da minha vida.

      Eu te seguia e sonhava
      Sonhava que te seguia
      Esperava ansioso o instante
      De defender-te de alguém
      E então meu passo mais forte
      Dizia: quero falar-te
      E o teu, mais brando, dizia:
      Se queres destruir... vem.

      Eu ficava. E te seguia
      Pelo deserto da praia
      Até avistar a casa
      Pequena e branca da esquina.
      Entravas. Por um momento
      Esperavas que eu passasse
      Para o olhar de boa-noite
      E o olhar de até-amanhã.

      Quase um ano o nosso idílio.
      Uma noite... não passaste.
      Esperei-te ansioso, inquieto
      Mas não vieste. Por quê?
      Foste embora? Procuraste
      O amor de algum outro passo
      Que em vez de seguir-te sempre
      Andasse sempre ao teu lado?

      Eu ando agora sozinho
      Na praia longa e deserta
      Eu ando agora sozinho
      Por que fugiste? Por quê?
      Ao meu passo solitário
      Triste e incerto como nunca
      Só responde a voz das ondas
      Que se esfacelam na areia.

      Branca mulher de olhos claros
      Minha alma ainda te deseja
      Traze ao meu passo cansado
      A alegria do teu passo
      Onde levou-te o destino
      Que te afastou para longe
      Da minha vista sem vida
      Da minha vida sem vista?


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      Mensaje por Maria Lua Lun 22 Ago 2022, 21:29

      SUSPENSÃO



      Fora de mim, fora de nós, no espaço, no vago
      A música dolente de uma valsa
      Em mim, profundamente em mim
      A música dolente do teu corpo
      E em tudo, vivendo o momento de todas as coisas
      A música da noite iluminada.

      O ritmo do teu corpo no meu corpo...
      O giro suave da valsa longínqua, da valsa suspensa...
      Meu peito vivendo teu peito
      Meus olhos bebendo teus olhos, bebendo teu rosto...
      E a vontade de chorar que vinha de todas as coisas.


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      Mensaje por Maria Lua Mar 23 Ago 2022, 12:40

      VAZIO



      A noite é como um olhar longo e claro de mulher.
      Sinto-me só.
      Em todas as coisas que me rodeiam
      Há um desconhecimento completo da minha infelicidade.
      A noite alta me espia pela janela
      E eu, desamparado de tudo, desamparado de mim próprio
      Olho as coisas em torno
      Com um desconhecimento completo das coisas que me rodeiam.

      Vago em mim mesmo, sozinho, perdido
      Tudo é deserto, minha alma é vazia
      E tem o silêncio grave dos templos abandonados.
      Eu espio a noite pela janela
      Ela tem a quietação maravilhosa do êxtase.
      Mas os gatos embaixo me acordam gritando luxúrias
      E eu penso que amanhã...
      Mas a gata vê na rua um gato preto e grande
      E foge do gato cinzento.

      Eu espio a noite maravilhosa
      Estranha como um olhar de carne.
      Vejo na grade o gato cinzento olhando os amores da gata e do gato preto
      Perco-me por momentos em antigas aventuras
      E volto à alma vazia e silenciosa que não acorda mais
      Nem à noite clara e longa como um olhar de mulher
      Nem aos gritos luxuriosos dos gatos se amando na rua.

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      Mensaje por Maria Lua Mar 23 Ago 2022, 12:41

      QUIETAÇÃO


      No espaço claro e longo
      O silêncio é como uma penetração de olhares calmos...
      Eu sinto tudo pousado dentro da noite
      E chega até mim um lamento contínuo de árvores curvas.
      Como desesperados de melancolia
      Uivam na estrada cães cheios de lua.
      O silêncio pesado que desce
      Curva todas as coisas religiosamente
      E o murmúrio que sobe é como uma oração da noite...

      Eu penso em ti.
      Minha boca cicia longamente o teu nome
      E eu busco sentir no ar o aroma morno da tua carne.
      Vejo-te ainda na visão que te precisou no espaço
      Ouvindo de olhos dolentes as palavras de amor que eu te dizia
      Fora do tempo, fora da vida, na cessação suprema do instante
      Ouvindo, junto de mim, a angústia apaixonada da minha voz
      Num desfalecimento.

      Pelo espaço claro e longo
      Vibra a luz branca das estrelas.
      Nem uma aragem, tudo parado, tudo silêncio
      Tudo imensamente repousado.
      E eu cheio de tristeza, sozinho, parado
      Pensando em ti.

      ---


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Mar 23 Ago 2022, 12:42

      OLHOS MORTOS



      Algum dia esses olhos que beijavas tanto
      Numa carícia sem mistérios
      Olharão para o céu e pararão.
      Nesse dia nem o teu beijo angelizante
      Poderá novamente despertá-los.
      A luz que lhes boiava nas pupilas
      Tu a verás talvez na face magra
      Do Cristo prisioneiro entre as mãos crispadas.
      Eles serão brancos — a imagem desse céu alto e suspenso
      Que foi a sua última visão.
      Eles não te dirão mais nada.
      Não te falarão aquela linguagem extraordinária
      Que te repousava como uma música longínqua.
      Não olharão mais nada que uma distância qualquer, longe
      Uma distância que nem tu nem ninguém saberá qual é.
      Eles estarão abertos, compreensivos da morte, parados
      Nem tu conseguirás mais despertá-los.
      E eu te peço — tu que tanto amavas repousá-los
      Com a luz clara do teu olhar sem martírios —
      Não os prendas à angústia triste do teu pranto.
      Silêncio... silêncio... Beija-os ainda e vai...
      Deixa-os fitando eternamente o céu.


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Mar 23 Ago 2022, 12:43

      A ESPOSA



      Às vezes, nessas noites frias e enevoadas
      Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos
      Essa estranha visão de mulher calma
      Surgindo do vazio dos meus olhos parados
      Vem espiar minha imobilidade.

      E ela fica horas longas, horas silenciosas
      Somente movendo os olhos serenos no meu rosto
      Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.
      Nada diz, nada pensa, apenas olha — e o seu olhar é como a luz
      De uma estrela velada pela bruma.
      Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que descem
      Mas que não vencem o olhar perdido longe.
      Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias
      Se sentir frias suas mãos.
      Quando a porta ranger e a cabecinha de criança
      Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo
      Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios
      Sorrindo de um sorriso misterioso
      E se irá num passo leve
      Após o beijo leve e roçagante...

      Eu só verei a porta que se vai fechando brandamente...

      Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei.


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Mar 23 Ago 2022, 12:44

      A QUE HÁ DE VIR



      Aquela que dormirá comigo todas as luas
      É a desejada de minha alma.
      Ela me dará o amor do seu coração
      E me dará o amor da sua carne.
      Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo
      E virá a mim com os peitos e virá a mim com os lábios
      Ela é a querida da minha alma
      Que me fará longos carinhos nos olhos
      Que me beijará longos beijos nos ouvidos
      Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso.
      Ela só verá minhas alegrias e minhas tristezas
      Temerá minha cólera e se aninhará no meu sossego
      Ela abandonará filho e esposo
      Abandonará o mundo e o prazer do mundo
      Abandonará Deus e a Igreja de Deus
      E virá a mim me olhando de olhos claros
      Se oferecendo à minha posse
      Rasgando o véu da nudez sem falso pudor
      Cheia de uma pureza luminosa.
      Ela é a amada sempre nova do meu coração
      Ela ficará me olhando calada
      Que ela só crerá em mim
      Far-me-á a razão suprema das coisas.
      Ela é a amada da minha alma triste
      É a que dará o peito casto
      Onde os meus lábios pousados viverão a vida do seu coração.

      Ela é a minha poesia e a minha mocidade
      É a mulher que se guardou para o amado de sua alma
      Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela dele.

      Ela é o amor vivendo de si mesmo.

      É a que dormirá comigo todas as luas
      E a quem eu protegerei contra os males do mundo.

      Ela é a anunciada da minha poesia
      Que eu sinto vindo a mim com os lábios e com os peitos
      E que será minha, só minha, como a força é do forte e a poesia é d
      o poeta.


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Mar 23 Ago 2022, 12:46

      CARNE


      Que importa se a distância estende entre nós léguas e léguas
      Que importa se existe entre nós muitas montanhas?
      O mesmo céu nos cobre
      E a mesma terra liga nossos pés.
      No céu e na terra é tua carne que palpita
      Em tudo eu sinto o teu olhar se desdobrando
      Na carícia violenta do teu beijo.
      Que importa a distância e que importa a montanha
      Se tu és a extensão da carne
      Sempre presente?


      ***********************


      CARNE


      Que importa si la distancia se extiende entre nosotros leguas y leguas
      ¿Qué importa si hay muchas montañas entre nosotros?
      El mismo cielo nos cubre
      Y la misma tierra ata nuestros pies.
      En el cielo y en la tierra es tu carne la que palpita
      En todo siento tus ojos abrirse
      En la caricia violenta de tu beso.
      Que importa la distancia y que importa la montaña
      Si eres la extensión de la carne
      ¿Siempre presente?



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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Miér 24 Ago 2022, 09:23

      DESDE SEMPRE


      Na minha frente, no cinema escuro e silencioso
      Eu vejo as imagens musicalmente rítmicas
      Narrando a beleza suave de um drama de amor.
      Atrás de mim, no cinema escuro e silencioso
      Ouço vozes surdas, viciadas
      Vivendo a miséria de uma comédia de carne.
      Cada beijo longo e casto do drama
      Corresponde a cada beijo ruidoso e sensual da comédia
      Minha alma recolhe a carícia de um
      E a minha carne a brutalidade do outro.
      Eu me angustio.
      Desespera-me não me perder da comédia ridícula e falsa
      Para me integrar definitivamente no drama.
      Sinto a minha carne curiosa prendendo-me às palavras implorantes
      Que ambos se trocam na agitação do sexo.
      Tento fugir para a imagem pura e melodiosa
      Mas ouço terrivelmente tudo
      Sem poder tapar os ouvidos.
      Num impulso fujo, vou para longe do casal impudico
      Para somente poder ver a imagem.

      Mas é tarde. Olho o drama sem mais penetrar-lhe a beleza
      Minha imaginação cria o fim da comédia que é sempre o mesmo fim
      E me penetra a alma uma tristeza infinita
      Como se para mim tudo tivesse morrido.


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      o un ciego soñando
      y en ese vuelo y en ese sueño
      compartir contigo sol y luna,
      siendo guardián en tu cielo
      y tren de tus ilusiones."
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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Miér 24 Ago 2022, 09:31

      A UMA MULHER



      Quando a madrugada entrou eu estendi o meu peito nu sobre o teu peito
      Estavas trêmula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
      E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
      Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
      Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
      Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
      Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
      Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
      E que era preciso fugir para não perder o único instante
      Em que foste realmente a ausência de sofrimento
      Em que realmente foste a serenidade.¨



      ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨


      A UNA MUJER


      Cuando amaneció estiré mi pecho desnudo sobre tu pecho
      Estabas temblorosa y tu cara pálida y tus manos frías
      Y la angustia del regreso vivia en tus ojos.
      Tuve piedad de tu destino que era morir en mi destino
      Quería alejar de ti la carga de la carne por un segundo
      Quería besarte con un vago cariño agradecido.
      Pero cuando mis labios tocaron tus labios
      Comprendí que la muerte ya estaba en tu cuerpo
      Y que era necesario huir para no perder el único instante
      En qué fuiste realmente la ausencia de sufrimiento?
      En la que realmente fuiste la serenidad.


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Jue 25 Ago 2022, 08:38

      VELHICE


      Virá o dia em que eu hei de ser um velho experiente
      Olhando as coisas através de uma filosofia sensata
      E lendo os clássicos com a afeição que a minha mocidade não permite.
      Nesse dia Deus talvez tenha entrado definitivamente em meu espírito
      Ou talvez tenha saído definitivamente dele.
      Então todos os meus atos serão encaminhados no sentido do túmulo
      E todas as ideias autobiográficas da mocidade terão desaparecido:
      Ficará talvez somente a ideia do testamento bem escrito.
      Serei um velho, não terei mocidade, nem sexo, nem vida
      Só terei uma experiência extraordinária.
      Fecharei minha alma a todos e a tudo
      Passará por mim muito longe o ruído da vida e do mundo
      Só o ruído do coração doente me avisará de uns restos de vida em mim.
      Nem o cigarro da mocidade restará.
      Será um cigarro forte que satisfará os pulmões viciados
      E que dará a tudo um ar saturado de velhice.
      Não escreverei mais a lápis
      E só usarei pergaminhos compridos.
      Terei um casaco de alpaca que me fechará os olhos.

      Serei um corpo sem mocidade, inútil, vazio
      Cheio de irritação para com a vida
      Cheio de irritação para comigo mesmo.

      O eterno velho que nada é, nada vale, nada vive

      O velho cujo único valor é ser o cadáver de uma mocidade criadora.


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      siendo guardián en tu cielo
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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Vie 26 Ago 2022, 08:53

      EXTENSÃO


      Eu busquei encontrar na extensão um caminho
      Um caminho qualquer para qualquer lugar.
      Eu segui ao sabor de todos os ventos
      Mas somente a extensão.

      Chorei. Prostrado na terra eu olhei para o céu
      E pedi ao Senhor o caminho da fé.
      Noites e noites foram-se em silêncio
      E somente a extensão.

      Quis morrer. Talvez a terra fosse o único caminho
      E à terra me abracei esperando o meu fim
      Porém tudo era terra e eu não quis mais a terra
      Que era a grande extensão.

      Quis viver. E em mim mesmo eu busquei o caminho
      Na ansiedade de uma última esperança
      Eu olhei — e volvi à extensão desesperado
      Era tudo extensão.






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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Vie 26 Ago 2022, 08:55

      SOLIDÃO



      Desesperança das desesperanças...
      Última e triste luz de uma alma em treva...
      — A vida é um sonho vão que a vida leva
      Cheio de dores tristemente mansas.

      — É mais belo o fulgor do céu que neva
      Que os esplendores fortes das bonanças
      Mais humano é o desejo que nos ceva
      Que as gargalhadas claras das crianças.

      Eu sigo o meu caminho incompreendido
      Sem crença e sem amor, como um perdido
      Na certeza cruel que nada importa.

      Às vezes vem cantando um passarinho
      Mas passa. E eu vou seguindo o meu caminho
      Na tristeza sem fim de uma alma morta.


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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Lun 29 Ago 2022, 07:53

      SENHOR, EU NÃO SOU DIGNO



      Para que cantarei nas montanhas sem eco
      As minhas louvações?
      A tristeza de não poder atingir o infinito
      Embargará de lágrimas a minha voz.
      Para que entoarei o salmo harmonioso
      Se tenho na alma um de-profundis?
      Minha voz jamais será clara como a voz das crianças
      Minha voz tem as inflexões dos brados de martírio
      Minha voz enrouqueceu no desespero...
      Para que cantarei
      Se em vez de belos cânticos serenos
      A solidão escutará gemidos?
      Antes ir. Ir pelas montanhas sem eco
      Pelas montanhas sem caminho
      Onde a voz fraca não irá.
      Antes ir — e abafar as louvações no peito
      Ir vazio de cantos pela vida
      Ir pelas montanhas sem eco e sem caminho, pelo silêncio
      Como o silêncio que caminha...


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      Mensaje por Maria Lua Lun 29 Ago 2022, 07:55

      SONORIDADE



      Meus ouvidos pousam na noite dormente como aves calmas
      Há iluminações no céu se desfazendo...

      O grilo é um coração pulsando no sono do espaço
      E as folhas farfalham um murmúrio de coisas passadas
      Devagarinho...
      Em árvores longínquas pássaros sonâmbulos pipilam
      E águas desconhecidas escorrem sussurros brancos na treva.
      Na escuta meus olhos se fecham, meus lábios se oprimem
      Tudo em mim é o instante de percepção de todas as vibrações.
      Pela reta invisível os galos são vigilantes que gritam sossego
      Mais forte, mais fraco, mais brando, mais longe, sumindo
      Voltando, mais longe, mais brando, mais fraco, mais forte.
      Batidos distantes de passos caminham no escuro sem almas
      Amantes que voltam...

      Pouco a pouco todos os ruídos se vão penetrando como dedos
      E a noite ora.
      Eu ouço a estranha ladainha
      E ponho os olhos no alto, sonolento.
      Um vento leve começa a descer como um sopro de bênção
      Ora pro nobis...

      Os primeiros perfumes ascendem da terra
      Como emanações de calor de um corpo jovem.

      Na treva os lírios tremem, as rosas se desfolham...

      O silêncio sopra sono pelo vento
      Tudo se dilata um momento e se enlanguesce
      E dorme.

      Eu vou me desprendendo de mansinho...

      A noite dorme.


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      Mensaje por Maria Lua Lun 29 Ago 2022, 07:57

      JUDEU ERRANTE


      Hei de seguir eternamente a estrada
      Que há tanto tempo venho já seguindo
      Sem me importar com a noite que vem vindo
      Como uma pavorosa alma penada.

      Sem fé na redenção, sem crença em nada
      Fugitivo que a dor vem perseguindo
      Busco eu também a paz onde, sorrindo
      Será também minha alma uma alvorada.

      Onde é ela? Talvez nem mesmo exista...
      Ninguém sabe onde fica... Certo, dista
      Muitas e muitas léguas de caminho...

      Não importa. O que importa é ir em fora
      Pela ilusão de procurar a aurora
      Sofrendo a dor de caminhar sozinho.


      _________________



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      Mensaje por Maria Lua Lun 29 Ago 2022, 08:00

      A GRANDE VOZ


      É terrível, Senhor! Só a voz do prazer cresce nos ares.
      Nem mais um gemido de dor, nem mais um clamor de heroísmo
      Só a miséria da carne, e o mundo se desfazendo na lama da carne.

      É terrível, Senhor. Desce teus olhos.
      As almas sãs clamam a tua misericórdia.
      Elas creem em ti. Creem na redenção do sacrifício.
      Dize-lhes, Senhor, que és o Deus da Justiça e não da covardia
      Dize-lhes que o espírito é da luta e não do crime.

      Dize-lhes, Senhor, que não é tarde!

      Senhor! Tudo é blasfêmia e tudo é lodo.
      Se um lembra que amanhã é o dia da miséria
      Mil gritam que hoje é o dia da carne.
      Olha, Senhor, antes que seja tarde
      Abandona um momento os puros e os bem-aventurados
      Desvia um segundo o teu olhar de Roma
      Dá remédio a esta infelicidade sem remédio
      Antes que ela corrompa os bem-aventurados e os puros.

      Não, meu Deus. Não pode prevalecer o prazer e a mentira.
      A Verdade é o Espírito. Tu és o Espírito supremo
      E tu exigiste de Abraão o sacrifício de um filho.
      Na verdade o que é forte é o que mata se o Espírito exige.
      É o que sacrifica à causa do bem seu ouro e seu filho.
      A alma do prazer é da terra. A alma da luta e do espaço.
      E a alma do espaço aniquilará a alma da terra
      Para que a Verdade subsista.

      Talvez, Senhor meu Deus, fora melhor
      Findar a humanidade esfacelada
      Com o fogo sagrado de Sodoma.
      Melhor fora, talvez, lançar teu raio
      E terminar eternamente tudo.
      Mas não, Senhor. A morte aniquila — ao fraco a morte inglória.
      A luta redime — ao forte a luta e a vida.
      Mais vale, Senhor, a tua piedade
      Mais vale o teu amor concitando ao combate último.

      Senhor, eu não compreendo os teus sagrados desígnios.
      Jeová — tu chamaste à luta os homens fortes
      Tua mão lançou pragas contra os ímpios
      Tua voz incitou ao sacrifício da vida as multidões.
      Jesus — tu pregaste a parábola suave
      Tu apanhaste na face humildemente
      E carregaste ao Gólgota o madeiro.
      Senhor, eu não os compreendo, teus desígnios.

      Senhor, antes de seres Jesus a humanidade era forte
      Os homens bons ouviam a doçura da tua voz
      Os maus sentiam a dureza da tua cólera.
      E depois, depois que passaste pelo mundo
      Teu doce ensinamento foi esquecido
      Tua existência foi negada
      Veio a treva, veio o horror, veio o pecado
      Ressuscitou Sodoma.

      Senhor, a humanidade precisa ouvir a voz de Jeová
      Os fortes precisam se erguer de armas em punho
      Contra o mal — contra o fraco que não luta.
      A guerra, Senhor, é em verdade a lei da vida
      O homem precisa lutar, porque está escrito
      Que o Espírito há de permanecer na face da Terra.

      Senhor! Concita os fortes ao combate
      Sopra nas multidões inquietas o sopro da luta
      Precipita-nos no horror da avalancha suprema.
      Dá ao homem que sofre a paz da guerra
      Dá à terra cadáveres heroicos
      Dá sangue quente ao chão!

      Senhor! Tu que criaste a humanidade.
      Dize-lhe que o sacrifício será a redenção do mundo
      E que os fracos hão de perecer nas mãos dos fortes.
      Dá-lhe a morte no campo de batalha
      Dá-lhe as grandes avançadas furiosas
      Dá-lhe a guerra, Senhor!




      Fin del libro
      O CAMINHO PARA A DISTÂNCIA
      Rio de Janeiro, Schmidt Editora, 1933



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      VINICIUS DE MORAES  - Página 16 Empty Re: VINICIUS DE MORAES

      Mensaje por Maria Lua Vie 02 Sep 2022, 14:52

      FORMA E EXEGESE
      Rio de Janeiro, Pongetti, 1935






      O OLHAR PARA TRÁS





      Nem surgisse um olhar de piedade ou de amor
      Nem houvesse uma branca mão que apaziguasse minha fronte palpitante...
      Eu estaria sempre como um círio queimando para o céu a minha fatalidade
      Sobre o cadáver ainda morno desse passado adolescente.

      Talvez no espaço perfeito aparecesse a visão nua
      Ou talvez a porta do oratório se fosse abrindo misteriosamente...
      Eu estaria esquecido, tateando suavemente a face do filho morto
      Partido de dor, chorando sobre o seu corpo insepultável.

      Talvez da carne do homem prostrado se visse sair uma sombra igual à minha
      Que amasse as andorinhas, os seios virgens, os perfumes e os lírios da terra
      Talvez... mas todas as visões estariam também em minhas lágrimas boiando
      E elas seriam como óleo santo e como pétalas se derramando sobre o nada.

      Alguém gritaria longe: — “Quantas rosas nos deu a primavera!...”
      Eu olharia vagamente o jardim cheio de sol e de cores noivas se enlaçando
      Talvez mesmo meu olhar seguisse da flor o voo rápido de um pássaro
      Mas sob meus dedos vivos estaria a sua boca fria e os seus cabelos luminosos.

      Rumores chegariam a mim, distintos como passos na madrugada
      Uma voz cantou, foi a irmã, foi a irmã vestida de branco! — a sua voz é fresca como o orvalho...
      Beijam-me a face — irmã vestida de azul, por que estás triste?
      Deu-te a vida a velar um passado também?

      Voltaria o silêncio — seria uma quietude de nave em Senhor Morto
      Numa onda de dor eu tomaria a pobre face em minhas mãos angustiadas
      Auscultaria o sopro, diria à toa — Escuta, acorda
      Por que me deixaste assim sem me dizeres quem eu sou?

      E o olhar estaria ansioso esperando
      E a cabeça ao sabor da mágoa balançando
      E o coração fugindo e o coração voltando
      E os minutos passando e os minutos passando...

      No entanto, dentro do sol a minha sombra se projeta
      Sobre as casas avança o seu vago perfil tristonho
      Anda, dilui-se, dobra-se nos degraus das altas escadas silenciosas
      E morre quando o prazer pede a treva para a consumação da sua miséria.

      É que ela vai sofrer o instante que me falta
      Esse instante de amor, de sonho, de esquecimento
      E quando chega, a horas mortas, deixa em meu ser uma braçada de lembranças
      Que eu desfolho saudoso sobre o corpo embalsamado do eterno ausente.

      Nem surgisse em minhas mãos a rósea ferida
      Nem porejasse em minha pele o sangue da agonia...
      Eu diria — Senhor, por que me escolheste a mim que sou escravo
      Por que me chagaste a mim cheio de chagas?

      Nem do meu vazio te criasses, anjo que eu sonhei de brancos seios
      De branco ventre e de brancas pernas acordadas
      Nem vibrasses no espaço em que te moldei perfeita...
      Eu te diria — Por que vieste te dar ao já vendido?

      Oh, estranho húmus deste ser inerme e que eu sinto latente
      Escorre sobre mim como o luar nas fontes pobres
      Embriaga o meu peito do teu bafo que é como o sândalo
      Enche o meu espírito do teu sangue que é a própria vida!

      Fora, um riso de criança — longínqua infância da hóstia consagrada
      Aqui estou ardendo a minha eternidade junto ao teu corpo frágil!
      Eu sei que a morte abrirá no meu deserto fontes maravilhosas
      E vozes que eu não sabia em mim lutarão contra a Voz.

      Agora porém estou vivendo da tua chama como a cera
      O infinito nada poderá contra mim porque de mim quer tudo
      Ele ama no teu sereno cadáver o terrível cadáver que eu seria
      O belo cadáver nu cheio de cicatriz e de úlceras.

      Quem chamou por mim, tu, mãe? Teu filho sonha...
      Lembras-te, mãe, a juventude, a grande praia enluarada...
      Pensaste em mim, mãe? Oh, tudo é tão triste
      A casa, o jardim, o teu olhar, o meu olhar, o olhar de Deus...

      E sob a minha mão tenho a impressão da boca fria murmurando
      Sinto-me cego e olho o céu e leio nos dedos a mágica lembrança
      Passastes, estrelas... Voltais de novo arrastando brancos véus
      Passastes, luas... Voltais de novo arrastando negros véus...


      _________________



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      "Ser como un verso volando
      o un ciego soñando
      y en ese vuelo y en ese sueño
      compartir contigo sol y luna,
      siendo guardián en tu cielo
      y tren de tus ilusiones."
      (Hánjel)





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      Mensaje por Maria Lua Sáb 03 Sep 2022, 15:31

      Soneto de Fidelidade



      De tudo ao meu amor serei atento
      Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
      Que mesmo em face do maior encanto
      Dele se encante mais meu pensamento.

      Quero vivê-lo em cada vão momento
      E em seu louvor hei de espalhar meu canto
      E rir meu riso e derramar meu pranto
      Ao seu pesar ou seu contentamento

      E assim, quando mais tarde me procure
      Quem sabe a morte, angústia de quem vive
      Quem sabe a solidão, fim de quem ama

      Eu possa me dizer do amor (que tive):
      Que não seja imortal, posto que é chama
      Mas que seja infinito enquanto dure.




      *******************

      Soneto de fidelidad



      De todo a mi amor estaré atento
      Antes, y con tal celo, y siempre, y tanto
      Que incluso ante el mayor encanto
      Con él se encante más mi pensamiento.

      Quiero vivirlo en cada vano momento
      Y en su loor he de esparcir mi canto
      Y reír mi risa y derramar mi llanto
      A su pesar o a su contentamiento.

      Y así, cuando más tarde me busque
      Quién sabe la muerte, angustia de quien vive
      Quién sabe la soledad, fin de quien ama

      Pueda yo decir del amor (que tuve):
      Que no sea inmortal, puesto que es llama
      Mas que sea infinito mientras dure.



      _________________



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      o un ciego soñando
      y en ese vuelo y en ese sueño
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      siendo guardián en tu cielo
      y tren de tus ilusiones."
      (Hánjel)





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      Mensaje por Maria Lua Lun 05 Sep 2022, 08:15

      SURSUM



      Eu avanço no espaço as mãos crispadas, essas mãos juntas — lembras-te? — que o destino das coisas separou
      E sinto vir se desenrolando no ar o grande manto luminoso onde os anjos entoam madrugadas...
      A névoa é como o incenso que desce e se desmancha em brancas visões que vão subindo...
      — Vão subindo as colunas do céu... (cisnes em multidão!) como os olhares serenos estão longe!...
      Oh, vitrais iluminados que vindes crescendo nas brumas da aurora, o sangue escorre do coração dos vossos santos
      Oh, Mãe das Sete Espadas... Os anjos passeiam com pés de lã sobre as teclas dos velhos harmônios...
      Oh, extensão escura de fiéis! Cabeças que vos curvais ao peso tão leve da gaze eucarística
      Ouvis? Há sobre nós um brando tatalar de asas enormes
      O sopro de uma presença invade a grande floresta de mármore em ascensão.
      Sentis? Há um olhar de luz passando em meus cabelos, agnus dei...
      Oh, repousar a face, dormir a carne misteriosa dentro do perfume do incenso em ondas!
      No branco lajedo os passos caminham, os anjos farfalham as vestes de seda
      Homens, derramai-vos como a semente pelo chão! O triste é o que não pode ter amor...
      Do órgão como uma colmeia os sons são abelhas eternas fugindo, zumbindo, parando no ar
      Homens, crescei da terra como as sementes e cantai velhas canções lembradas...
      Vejo chegar a procissão de arcanjos — seus olhos fixam a cruz da consagração que se iluminou no espaço
      Cantam seus olhos azuis, tantum ergo! — de suas cabeleiras louras brota o incêndio impalpável da destinação
      Queimam... alongam em êxtase os corpos de cera, e crepitando serenamente a cabeça em chamas
      Voam — sobre o mistério voam os círios alados cruzando o ar um frêmito de fogo!...
      Oh, foi outrora, quando nascia o sol — Tudo volta, eu dizia — e olhava o
      [céu onde eu não via Deus suspenso sobre o caos como o impossível equilíbrio
      Balançando o imenso turíbulo do tempo sobre a inexistência da humana serenidade.


      _________________



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