Aires de Libertad

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    FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

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    Mensaje por Maria Lua Sáb 26 Nov - 11:43

    356.


    Depois que o calor cessou, e o princípio leve da chuva cresceu para ouvirse,
    ficou no ar uma tranquilidade que o ar do calor não tinha, uma nova paz
    em que a água punha uma brisa sua. Tão clara era a alegria desta chuva
    branda, sem tempestade nem escuridão, que aqueles mesmos, que eram quase
    todos, que não tinham guarda-chuva ou roupa de defesa, estavam rindo a falar
    no seu passo rápido pela rua lustrosa.
    Num intervalo de indolência cheguei à janela aberta do escritório – o calor
    a fizera abrir, a chuva não a fizera fechar — e contemplei com a atenção
    intensa e indiferente, que é o meu modo, aquilo mesmo que acabo de
    descrever com justeza antes de o ter visto. Sim, lá ia a alegria aos dois banais,
    falando a sorrir pela chuva miúda, com passos mais rápidos que apressados,
    na claridade limpa do dia que se velara.

    Mas, de repente, da surpresa de uma esquina que já lá estava, rodou para a
    minha vista um homem velho e mesquinho, pobre e não humilde, que seguia
    impaciente sob a chuva que havia abrandado. Esse, que por certo não tinha
    fito, tinha ao menos impaciência. Olhei-o com a atenção, não já desatenta, que
    se dá às coisas, mas definidora, que se dá aos símbolos. Era o símbolo de
    ninguém; por isso tinha pressa. Era o símbolo de quem nada fora; por isso
    sofria. Era parte, não dos que sentem a sorrir a alegria incómoda da chuva,
    mas da mesma chuva – um inconsciente, tanto que sentia a realidade.

    Não era isto, porém, que eu queria dizer. Entre a minha observação do
    transeunte que, afinal, perdi logo de vista, por não ter continuado a olhá-lo, e
    o nexo destas observações inseriu-se-me qualquer mistério da desatenção,
    qualquer emergência da alma que me deixou sem prosseguimento. E ao fundo
    da minha desconexão, sem que eu os oiça, oiço’ os sons das falas dos moços
    da embalagem, lá no fundo do escritório, na parte que é o princípio do
    armazém, e vejo sem ver os cordéis enfardadores das encomendas postais,
    passados duas vezes, com os nós duas vezes corridos, à roda dos embrulhos
    em papel pardo forte, na mesa ao pé da janela para o saguão, entre piadas e
    tesouras.
    Ver é ter visto.


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 26 Nov - 11:44

    357.



    Regra é da vida que podemos, e devemos, aprender com toda a gente. Há
    coisas da seriedade da vida que podemos aprender com charlatães e bandidos,
    há filosofias que nos ministram os estúpidos, há lições de firmeza e de lei que
    vêm no acaso e nos que são do acaso. Tudo está em tudo.
    Em certos momentos muito claros da meditação, como aqueles em que,
    pelo princípio da tarde, vagueio observante pelas ruas, cada pessoa me traz
    uma notícia, cada casa me dá uma novidade, cada cartaz tem um aviso para
    mim.
    O meu passeio calado é uma conversa contínua, e todos nós, homens,
    casas, pedras, cartazes e céu, somos uma grande multidão amiga,
    acotovelando-se de palavras na grande procissão do Destino.


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 26 Nov - 11:45

    358.


    Vi e ouvi ontem um grande homem. Não quero dizer um grande homem
    atribuído, mas um grande homem que verdadeiramente o é. Tem valia, se a há
    neste mundo; conhecem que tem valia; e ele sabe que o conhecem. Tem, pois,
    todas as condições para que eu o chame um grande homem. E, efetivamente,
    o que o chamo.

    O aspeto físico é de um comerciante cansado. A cara tem traços de fadiga,
    mas tanto poderiam ser de pensar de mais como de não viver higienicamente.
    Os gestos são quaisquer. O olhar tem uma certa viveza — privilégio de quem
    não é míope. A voz é um pouco embrulhada, como se os inícios da paralisia
    geral estragassem essa emissão da alma. E a alma emitida discursa sobre a
    política de partidos, sobre a desvalorização do escudo, e sobre o que há de
    reles nos colegas da grandeza.

    Se eu não soubesse quem ele é, não o conheceria pela estampa. Sei bem que
    não há que fazer dos grandes homens aquela ideia heroica que as almas
    simples formam: que um grande poeta há de ser um Apoio de corpo e um
    Napoleão de expressão; ou, com menos exigências, um homem de distinção e
    um rosto expressivo. Sei bem que estas coisas são humanidades naturais e
    absurdas. Mas, se não se espera tudo ou quase tudo, espera-se todavia alguma
    coisa. E, quando se passa da figura vista para a alma falada, não há sem dúvida
    que esperar espírito ou vivacidade, mas há ao menos que contar com
    inteligência, com, ao menos, a sombra da elevação.

    Tudo isto — estas desilusões humanas — nos faz pensar no que pode
    realmente haver de verdade no conceito vulgar de inspiração. Parece que este
    corpo destinado a comerciante e esta alma destinada a homem educado são,
    quando estão a sós, investidos misteriosamente de qualquer coisa interior que
    lhes é externa, e que não falam, senão que se fala neles, e a voz diz o que fora
    mentira que eles dissessem.

    São especulações casuais e inúteis. Chego a ter pena de as ter. Não diminui
    com elas a valia do homem; não aumenta com elas a expressão do seu corpo.
    Mas, na verdade, nada altera nada, e o que dizemos ou fazemos roça só os
    cimos dos montes, em cujos vale
    s dormem as coisas.


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 26 Nov - 11:46

    359.


    Ninguém compreende outro. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da
    vida; corre entre nós o mar que nos define e separa. Por mais que uma alma se
    esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma
    palavra — sombra disforme no chão do seu entendimento.
    Amo as expressões porque não sei nada do que exprimem. Sou como o
    mestre de Santa Marta: contento-me com o que me é dado. Vejo, e já é muito.
    Quem é capaz de entender?

    Talvez seja por este ceticismo do inteligível que eu encaro de igual modo
    uma árvore e uma cara, um cartaz e um sorriso. (Tudo é natural, tudo
    artificial, tudo igual.) Tudo o que vejo é para mim o só visível, seja o céu alto
    azul de verde branco da manhã que há de vir, seja o esgar falso em que se
    contrai o rosto de quem está a sofrer perante testemunhas a morte de quem
    ama.
    Bonecos, ilustrações, páginas que existem e se voltam. O meu coração não
    está neles nem quase minha atenção, que os percorre de fora, como uma
    mosca por um papel.
    Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objetivo
    de cores, de formas, de expressões de que sou o espelho oscilante por vender
    inútil.
    3


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 26 Nov - 11:47

    360.


    Comparados com os homens simples e autênticos, que passam pelas ruas
    da vida, com um destino natural e calhado, essas figuras dos cafés assumem
    um aspeto que não sei definir senão comparando-as a certos duendes de
    sonhos — figuras que não são de pesadelo nem de mágoa, mas cuja
    recordação, quando acordamos, nos deixa, sem que saibamos porquê, um
    sabor a um nojo passado, um desgosto de qualquer coisa que está com eles
    mas que se não pode definir como sendo deles.

    Vejo os vultos dos génios e dos vencedores reais, mesmo pequenos, singrar
    na noite das coisas sem saber o que cortam as suas proas altivas, nesse’ mar de
    sargaço de palha de embalagem e aparas de cortiça.
    Ali se resume tudo, como no chão do saguão do prédio do escritório, que,
    visto através das grades da janela do armazém, parece uma cela para prender
    lixo.


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 26 Nov - 11:48

    361.


    A procura da verdade — seja a verdade subjetiva do convencimento, a
    objetiva da realidade, ou a social do dinheiro ou do poder – traz sempre
    consigo, se nela se emprega quem merece prémio, o conhecimento último da
    sua inexistência. A sorte grande da vida sai somente aos que compraram por
    acaso.
    A arte tem valia porque nos tira de aqui.


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 26 Nov - 11:48

    362.


    É legitima toda a violação da lei moral que é feita em obediência a uma lei
    moral superior. Não é desculpável roubar um pão por ter fome. É desculpável
    a um artista roubar dez contos para garantir por dois anos a sua vida e
    tranquilidade, desde que a sua obra tenda a um fim civilizacional; se é uma
    mera obra estética, não vale o argumento.


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 26 Nov - 11:50

    363.

    Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é
    possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria
    preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós... E essa
    impossibilidade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e se
    transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo (possuímos apenas a
    nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado,
    tornarse-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento
    do outro ente, desapareceria...

    Possuímos a alma? Ouve-me em silêncio: Nós não a possuímos. Nem a
    nossa alma é nossa sequer. Como, de resto, possuir uma alma? Entre alma e
    alma há o abismo de serem almas’.
    Que possuímos? Que possuímos? Que nos leva a amar? A beleza? E nós
    possuímo-la amando? A mais feroz e dominadora posse de um corpo o que
    possui dele? Nem o corpo, nem a alma, nem a beleza sequer. A posse de um
    corpo lindo não abraça a beleza, abraça a carne celulada e gordurosa; o beijo
    não toca na beleza da boca, mas na carne húmida dos lábios perecíveis e
    mucosas; a própria cópula é um contacto apenas, um contacto esfregado e
    próximo, mas não uma penetração real, sequer de um corpo por outro
    corpo... Que possuímos nós? Que possuímos?

    As nossas sensações, ao menos? Ao menos o amor é um meio de nos
    possuirmos, a nós, nas nossas sensações? É, ao menos, um modo de
    sonharmos nitidamente, e mais gloriosamente portanto, o sonho de
    existirmos? E, ao menos, desaparecida a sensação, fica a memória dela
    connosco sempre, e assim, realmente possuímos...
    Desenganemos até disto. Nós nem as nossas sensações possuímos. Não
    fales. A memória, afinal, é a sensação do passado... E toda a sensação é uma
    ilusão.

    — Escuta-me, escuta-me sempre. Escuta-me e não olhes pela janela aberta
    a plana outra margem do rio, nem o crepúsculo nem esse silvo de um
    comboio que corta o longe vago . — Escuta-me em silêncio...
    Nós não possuímos as nossas sensações... Nós não nos possuímos nelas.
    (Urna inclinada, o crepúsculo verte sobre nós um óleo de onde as horas,
    pétalas de rosas, boiam espaçadamente.)







    435



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    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 11:38

    364.


    Eu não possuo o meu corpo — como posso eu possuir com ele? Eu não
    possuo a minha alma — como posso possuir com ela? Não compreendo o
    meu espírito — como através dele compreender’?
    Não possuímos nem o corpo nem uma verdade — nem sequer uma ilusão.
    Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por
    fora e por dentro.
    Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer — eu sou
    eu?
    Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.
    Quando outrem possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não.
    Possui outra sensação.
    Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como
    sabemos nós o que possuímos?
    Se do que comes, dissesses, "eu possuo isto", eu compreendia-te. Porque
    sem dúvida o que comes, tu o incluis em ti, tu o transformas em matéria tua,
    tu o sentes entrar em ti e pertencer-te. Mas do que comes não falas tu de
    "posse". A que chamas tu possuir?


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    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 11:39

    365.


    A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser
    feliz — tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra.
    Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem
    para ti, em amá-los. Veste teu ser do ouro da tarde morta, como um rei
    deposto numa manhã de rosas, com Maio nas nuvens brancas e o sorriso das
    virgens nas quintas afastadas. A tua ânsia morra entre mirtos, teu tédio cesse
    entre tamarindos e o som da água acompanhe tudo isto como um entardecer
    ao pé de margens, e o rio, sem sentido salvo correr, eterno, para marés
    longínquas. O resto é a vida que nos deixa, a chama que morre no nosso
    olhar, a púrpura gasta antes de a vestirmos, a lua que vela o nosso abandono,
    as estrelas que estendem o seu silêncio sobre a nossa hora de desengano.
    Assídua, a mágoa estéril e amiga que nos aperta ao peito com amor.
    O meu destino é a decadência.

    O meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca
    sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que
    esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida
    como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era
    feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e
    a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mais
    escusas.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 11:40

    366.


    Paisagens inúteis como aquelas que dão a volta às chávenas chinesas,
    partindo da asa e vindo acabar na asa, de repente. As chávenas são sempre tão
    pequenas... Para onde se prolongaria, e com que de porcelana, a paisagem que
    não se prolongou para além da asa da chávena?
    É possível a certas almas sentir uma dor profunda por a paisagem pintada
    num abano chinês não ter três dimensões.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 11:40

    367.


    ... E os crisântemos adoecem a sua vida lassa em jardins apenumbrados de
    contê-los.
    ... A luxúria japonesa de ter evidentemente duas dimensões apenas.
    ... A existência colorida sobre transparências baças das figuras japonesas nas
    chávenas.
    ... Uma mesa posta para um chá discreto — mero pretexto para conversas
    inteiramente estéreis — teve sempre para mim qualquer coisa de ente e
    individualidade com alma. Forma, como um organismo, um todo sintético!
    Que não é a pura soma das partes que o compõem.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 11:41

    368.

    E os diálogos nos jardins fantásticos que contornam nada definidamente
    certas chávenas? Que palavras sublimes não devem estar trocando as duas
    figuras que se assentam no lado de lá daquele bule! E eu sem ouvidos
    apropriados para as ouvir, morto na policroma humanidade!
    Deliciosa psicologia das coisas deveras estáticas! A eternidade tece-a e o
    gesto que uma figura pintada tem desdenha, do alto da sua eternidade visível,
    a nossa transitória febre, que nunca se fixa numa atitude nem se demora’ nos
    portões de um esgar .

    Que curioso deve ser o folclore do colorido povo dos painéis! Os amores
    das figuras bordadas — amores de duas dimensões, de uma castidade
    geométrica — devem ser para entretenimento dos psicólogos ouvidos.
    Não amamos, senão que fingimos amar. O verdadeiro amor, o imortal e
    inútil, pertence àquelas figuras em que a mudança não entra, pela sua natureza
    de estáticas. Desde que eu o conheço, o japonês que se senta na convexa do
    meu bule não mudou ainda... Não saboreou nunca as mãos da mulher que
    está a um distar errado dele. Um colorido extinto como de um sol despejado,
    entornado, irrealiza eternamente as encostas desse monte. E tudo aquilo
    obedece a um instante de pena — pena mais fiel do que esta que inutilmente
    preenchesse a fragilidade das minhas horas exaustas.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 11:42

    369.


    Nesta era metálica dos bárbaros só um culto metodicamente excessivo das
    nossas faculdades de sonhar, de analisar e de atrair pode servir de salvaguarda
    à nossa personalidade, para que se não desfaça ou para nula ou para idêntica
    às outras.
    O que as nossas sensações têm de real é precisamente o que têm de não
    nossas. O que há de comum nas sensações é que forma a realidade. Por isso a
    nossa individualidade nas nossas sensações está só na parte enorme delas. A
    alegria que eu teria se visse um dia o sol escarlate. Seria tão meu aquele sol, só
    meu!


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 11:44

    370.


    Nunca deixo saber aos meus sentimentos o que lhes vou fazer sentir...
    Brinco com as minhas sensações como uma princesa cheia de tédio com os
    seus grandes gatos prontos e cruéis...
    Fecho subitamente portas dentro de mim, por onde certas sensações iam
    passar para se realizarem. Retiro bruscamente do seu caminho os objetos
    espirituais que lhes vão vincar certos gestos.
    Pequenas frases sem sentido, metidas nas conversas que supomos estar
    tendo; afirmações absurdas feitas com cinzas de outras que já de si não
    significam nada...

    — O seu olhar tem qualquer coisa de música tocada a bordo de um barco,
    no meio misterioso de um rio com florestas na margem oposta...
    — Não diga que é fria uma noite de luar. Abomino as noites de luar... Há
    quem costume realmente tocar música nas noites de luar... — Isso também é
    possível... E é lamentável, está claro... Mas o seu olhar tem realmente o desejo
    de ser saudoso de qualquer coisa... Falta-lhe o sentimento que exprime... Acho
    na falsidade da sua expressão uma quantidade de ilusões que tenho tido...
    — Creia que sinto às vezes o que digo, e até, apesar de mulher, o que digo
    com o olhar.
    ..
    — Não está sendo cruel para consigo própria? Nós sentimos realmente o
    que pensamos que estamos sentindo? Esta nossa conversa, por exemplo, tem
    visos de realidade? Não tem. Num romance não seria admitida.
    — Com muita razão... Eu não tenho a absoluta certeza de estar falando
    consigo, repare... Apesar de mulher, criei-me um dever de ser estampa de um
    livro de impressões de um desenhista doido... Tenho em mim detalhes
    exageradamente nítidos... Dá um pouco, bem sei, a impressão de realidade
    excessiva e um pouco forçada...

    Acho que a única coisa digna de uma mulher
    contemporânea é este ideal de ser estampa. Quando eu era criança queria ser a
    rainha de um naipe qualquer num baralho de cartas antigo que havia na minha
    casa... Achava esse mister de uma heráldica realmente compassiva... Mas
    quando se é criança, tem-se aspirações morais destas... Só depois, na idade em
    que as nossas aspirações são todas imorais, é que pensamos nisso a serto...
    — Eu, como nunca falo a crianças, creio no instinto artista delas... Sabe,
    enquanto estou falando, agora mesmo, eu estou querendo penetrar o íntimo
    sentido dessas coisas que me estava dizendo... Perdoa-me?

    — Não de todo... Nunca se deve devassar os sentimentos que os outros
    fingem que têm. São sempre demasiadamente íntimos... Acredite que me dói
    realmente estar-lhe estas confidências íntimas, que, se bem que todas elas
    falsas, representam verdadeiros farrapos da minha pobre alma... No fundo,
    acredite, o que somos de mais doloroso é o que não somos realmente, e as
    nossas maiores tragédias passam-se na nossa ideia de nós .
    — Isso é tão verdadeiro... Para que dizê-lo? Feriu-me. Para que tirar à
    nossa conversa a sua irrealidade constante? Assim é quase uma conversa
    possível, passada a uma mesa de chá, entre uma mulher linda e um imaginador
    de sensações.

    — Sim, sim... É a minha vez de pedir perdão... Mas olhe que eu estava
    distraída e não reparei realmente em que tinha dito uma coisa justa...
    Mudemos de assunto... Que tarde que é sempre!... Não se torne a zangar...
    Olhe que esta minha frase não tem sentido absolutamente nenhum...
    — Não me peça desculpas, não repare em que estamos falando... Toda a
    boa conversa deve ser um monólogo de dois... Devemos, no fim, não poder
    ter a certeza se conversámos realmente com alguém ou se imaginámos
    totalmente a conversa... As melhores e as mais íntimas conversas, e sobretudo
    as menos moralmente instrutivas, são aquelas que os romancistas têm entre
    duas personagens das suas novelas... Como exemplo...

    — Por amor de Deus! Não ia decerto citar-me um exemplo... Isso só se
    faz nas gramáticas; não sei se se recorda que até nunca as lemos.
    — Leu alguma vez uma gramática?
    — Eu nunca. Tive sempre uma aversão profunda a saber como se dizem
    as coisas... A minha única simpatia, nas gramáticas, ia para as exceções e para
    os pleonasmos... Escapar às regras e dizer coisas inúteis resume bem a atitude
    essencialmente moderna... Não é assim que se diz?...
    — Absolutamente... O que tem de antipático nas gramáticas (já reparou na
    deliciosa impossibilidade de estarmos falando neste assunto?) — o que há de
    mais antipático nas gramáticas é o verbo, os verbos... São as palavras que dão
    sentido às frases... Uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos...
    Os verbos!... Um amigo meu que se suicidou — cada vez que tenho uma
    conversa um pouco longa suicido um amigo — tinha tencionado dedicar toda
    a sua vida a destruir os verbos.
    ..
    — Ele porque se suicidou?
    — Espere, ainda não sei... Ele pretendia descobrir e fixar o modo de não
    completar as frases sem parecer fazê-lo. Ele costumava dizer-me que
    procurava o micróbio da significação... Suicidou-se, é claro, porque um dia
    reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si... A importância do
    problema deu-lhe cabo do cérebro... Um revólver e...
    — Ah, não... Isso de modo algum... Não vê que não podia ser um
    revólver?... Um homem desses nunca dá um tiro na cabeça... O senhor pouco
    se entende com os amigos que nunca teve... É um defeito grande, sabe?... A
    minha melhor amiga — uma deliciosa rapaz que eu inventei -

    — Dão-se bem?
    — Tanto quanto é possível... Mas essa rapariga, não imagina,
    As duas criaturas que estavam à mesa de chá não tiveram com certeza esta
    conversa. Mas estavam tão alinhadas e bem vestidas que era pena que não
    falassem assim... Por isso escrevi esta conversa para elas a terem tido... As suas
    atitudes, os seus pequenos gestos, as suas criancices de olhares e sorrisos,
    momentos de conversa que ambos entendemos no sentimento de existirmos,
    disseram nitidamente o que falsamente finjo que reporto... Quando eles um
    dia forem ambos e sem dúvida casados cada um para seu lado — em intentos
    de mais juntos, para poderem casar um com o outro -, se eles por acaso
    olharem para estas páginas, acredito que reconhecerão o que nunca disseram e
    que não deixarão de me ser gratos por eu ter interpretado tão bem, não só o
    que eles são realmente, mas o que eles nunca desejaram ser nem sabiam que
    eram..
    .
    Eles, se me lerem, acreditem que foi isto que realmente disseram. Na
    conversa aparente que eles escutaram um ao outro faltavam tantas coisas que
    — faltou o perfume da hora, o aroma do chá, a significação para o caso do
    ramo de que ela tinha ao peito... Tudo isso, que assim formou parte da
    conversa, eles se esqueceram de dizer... Mas tudo isto lá estava e o que eu faço
    é, mais do que um trabalho literário, um trabalho de historiador. Reconstruo,
    completando... E isso me servirá de desculpa junto deles, de ter estado tão
    fixamente a escutar-lhes o que diziam e não queriam dizer.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 11:45

    371.

    Apoteose do absurdo

    Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias
    do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma
    misteriosa maneira especial.
    Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas
    que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde
    nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas — o
    absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e
    do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e
    desejos de ação útil e profícua. O absurdo salva de chegar apesar de tédio
    aquele estado de alma que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.
    E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos —
    não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão .


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    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 11:46

    372.

    Apoteose do absurdo

    Absurdemos a vida, de leste a oeste.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:41

    373.

    A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem
    do espírito através da matéria, e como é o espírito que viaja, é nele que se vive.
    Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa,
    mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é
    tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho
    como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou
    muito.
    Quem está ao canto da sala dança com todos os dançarmos. Vê tudo, e,
    porque vê tudo, vive tudo. Como tudo, em súmula e ultimidade, é uma
    sensação nossa, tanto vale o contacto com um corpo como a visão dele, ou,
    até, a sua simples recordação. Danço, pois, quando vejo dançar. Digo, como o
    poeta inglês, narrando que contemplava, deitado na erva ao longe, três
    ceifeiros:

    "Um quarto está ceifando, e esse sou eu."
    Vem isto tudo, que vai dito como vai sentido, a propósito do grande
    cansaço, aparentemente sem causa, que desceu hoje súbito sobre mim. Estou
    não só cansado, mas amargurado, e a amargura é incógnita também. Estou, de
    angustiado, à beira de lágrimas — não de lágrimas que se choram, mas que se
    reprimem, lágrimas de uma doença da alma, que não de uma dor sensível.
    Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pensado sem ter pensado!
    Pesam sobre mim mundos de violências paradas, de aventuras tidas sem
    movimento. Estou farto do que nunca tive nem terei, tediento de deuses por
    existir. Trago comigo as feridas de todas as batalhas que evitei. O meu corpo
    muscular está moído do esforço que nem pensei em fazer.

    Baço, mudo, nulo... O céu ao alto é de um verão morto, imperfeito. Olho-o
    como se ele ali não estivesse. Durmo o que penso, estou deitado andando,
    sofro sem sentir. A minha grande nostalgia é de nada, é nada, como o céu alto
    que não vejo, e que estou fitando impessoalmente.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:41

    374.

    Na perfeição nítida do dia estagna contudo o ar cheio de sol. Não é a
    pressão presente da trovoada futura, mal-estar dos corpos involuntários, vago
    baço do céu azul deveras. E o torpor sensível da insinuação do ócio, pluma
    roçando leve a face a adormecer. E estio mas verão. Apetece o campo até a
    quem não gosta dele.

    Se eu fora outro, penso, este seria para mim um dia feliz, pois o sentiria
    sem pensar nele. Concluiria com uma alegria de antecipação o meu trabalho
    normal — aquele que me é monotonamente anormal todos os dias. Tomaria o
    carro para Benfica, com amigos combinados. Jantaríamos em pleno fim de
    sol, entre hortas. A alegria em que estaríamos seria parte da paisagem, e por
    todos, quantos nos vissem, reconhecida como de ali.

    Como, porém, sou eu, gozo um pouco o pouco que é imaginar-me esse
    outro. Sim, logo ele-eu, sob parreira ou árvore, comerá o dobro do que sei
    comer, beberá o dobro do que ouso beber, rirá o dobro do que posso pensar
    em rir. Logo ele, eu agora. Sim, um momento fui outro: vi, vivi, em outrem,
    essa alegria humilde e humana de existir como um animal em mangas de
    camisa. Grande dia que me fez sonhar assim! É tudo azul e sublime no alto
    como o meu sonho efémero de ser caixeiro de praça com saúde em não sei
    que férias de fim de dia.


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    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:42

    375.


    O campo é onde não estamos. Ali, só ali, há sombras verdadeiras e
    verdadeiro arvoredo.
    A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida,
    há um ponto final.
    O milagre é a preguiça de Deus, ou, antes, a preguiça que Lhe atribuímos,
    inventando o milagre.
    Os Deuses são a encarnação do que nunca poderemos ser.
    O cansaço de todas as hipóteses...


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:43

    376.


    A leve embriaguez da febre ligeira, quando um desconforto mole e
    penetrante e frio pelos ossos doridos fora e quente nos olhos sob têmporas
    que batem — a esse desconforto quero como um escravo a um tirano amado.
    Dá-me aquela quebrada passividade trémula em que entrevejo visões, viro
    esquinas de ideias e entre entrepolamentos de sentimentos me desconcerto’.
    Pensar, sentir, querer, tornam-se uma só confusa coisa. As crenças, as
    sensações, as coisas imaginadas e as atuais estão desarrumadas, são como o
    conteúdo misturado no chão, de várias gavetas subvertidas


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    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:43

    377.


    A sensação da convalescença, sobretudo se se fez mal sentir nos nervos’ a
    doença que a precedeu, tem qualquer coisa de alegria triste. Há um outono nas
    emoções e nos pensamentos, ou, antes, um daqueles princípios de primavera
    que, salvo que não caem folhas, parecem, no ar e no céu, o outono.
    O cansaço sabe bem, e o bem que sabe dói um pouco. Sentimo-nos um
    pouco à parte da vida, ainda que nela, como que na varanda da casa de viver.
    Estamos contemplativos sem pensar, sentimos sem emoção definível. A
    vontade sossega, pois não há necessidade dela.
    É então que certas memórias, certas esperanças, certos vagos desejos
    sobem lentamente a rampa da consciência, como caminheiros vagos vistos do
    alto do monte. Memórias de coisas fúteis, esperança de coisas que não fez mal
    que não fossem, desejos que não tiveram violência de natureza ou de emissão,
    que nunca puderam querer ser.

    Quando o dia se ajusta a estas sensações, como hoje, que, ainda que estio,
    está meio nublado com azuis, e um vago vento que por não ser quente é quase
    frio, então aquele estado de alma se acentua em que pensamos, sentimos,
    vivemos estas impressões. Não que sejam mais claras as memórias, as
    esperanças, os desejos que tínhamos. Mas sente-se mais, e a sua soma incerta
    pesa um pouco, absurdamente, sobre o coração.

    Há qualquer coisa de longínquo em mim neste momento. Estou de facto à
    varanda da vida, mas não é bem desta vida. Estou por sobre ela, e vendo-a de
    onde vejo. Jaz diante de mim, descendo em socalcos e resvalamentos, como
    uma paisagem diversa, até aos fumos sobre casas brancas das aldeias do vale.
    Se cerrar os olhos, continuo vendo, pois que não vejo. Se os abrir nada mais
    vejo, pois que não via. Sou todo eu uma vaga saudade, nem do passado, nem
    do futuro: sou uma saudade do presente, anónima, prolixa e incompreendida.


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    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:44

    378.


    Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência
    é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se
    não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência
    de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos
    interstícios do conhecimento.

    Talvez porque eu pense de mais ou sonhe de mais, o certo é que não
    distingo entre a realidade que existe e o sonho, que é a realidade que não
    existe. E assim intercalo nas minhas meditações do céu e da terra coisas que
    não brilham de sol ou se pisam com pés — maravilhas fluidas da imaginação.
    Douro-me de poentes supostos, mas o suposto é vivo na suposição.
    Alegro-me de brisas imaginárias, mas o imaginário vive quando se imagina.
    Tenho alma por hipóteses várias, mas essas hipóteses têm alma própria, e me
    dão portanto a que têm.

    Não há problema senão o da realidade, e esse é insolúvel e vivo. Que sei eu
    da diferença entre uma árvore e um sonho? Posso tocar na árvore; sei que
    tenho o sonho. Que é isto, na sua verdade?
    Que é isto? Sou eu que, sozinho no escritório deserto, posso viver
    imaginando sem desvantagem da inteligência. Não sofro interrupção de
    pensar das carteiras abandonadas e da secção de remessas só com papel e
    cordéis em rolos. Estou, não no meu banco alto, mas recostado, por uma
    promoção por fazer, na cadeira de braços redondos do Moreira. Talvez seja a
    influência do lugar que me unge de distraído. Os dias de grande calor fazem
    sono; durmo sem dormir por falta de energia. E por isso penso assim.


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    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:45

    379.


    Intervalo doloroso

    Já me cansa a rua, mas não, não me cansa — tudo é rua na vida. Há a
    taberna em frente, que vejo se olho por cima do ombro direito; e há o
    convento em frente, que vejo se olho por cima do ombro esquerdo; e, no
    meio, que não verei se me não voltar de todo, o sapateiro enche de som
    regular o portão do escritório da Companhia Africana. Os outros andares são
    indeterminados. No terceiro andar há uma pensão, dizem que imoral, mas isso
    é como tudo, a vida.

    Cansar-me a rua? Canso-me só quando penso. Quando olho a rua, ou a
    sinto, não penso: trabalho com um grande repouso íntimo, último naquele
    canto, escriturantemente ninguém. Não tenho alma, ninguém tem alma —
    tudo é trabalho na casa larga. Onde os milionários gozam, sempre no
    estrangeiro deles, também há trabalho, e também não há alma. Fica de tudo
    um ou outro poeta. Quem me dera que de mim ficasse uma frase, uma coisa
    dita de que se dissesse, Bem feito!, como os números que vou inscrevendo,
    copiando-os, no livro da minha vida inteira.
    Nunca deixarei, creio, de ser ajudante de guarda-livros de um armazém de
    fazendas. Desejo, com uma sinceridade que é feroz, não passar nunca a
    guarda- livros.


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    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:46

    380.

    Há muito — não sei se há dias, se há meses — não registo impressão
    nenhuma; não penso, portanto não existo. Estou esquecido de quem sou; não
    sei escrever porque não sei ser. Por um adormecimento oblíquo, tenho sido
    outro. Saber que me não lembro é despertar.
    Desmaiei um bocado da minha vida. Volto a mim sem memória do que
    tenho sido, e a do que fui sofre de ter sido interrompida. Há em mim uma
    noção confusa de um intervalo incógnito, um esforço fútil de parte da
    memória para querer encontrar a outra. Não consigo reatar-me. Se tenho
    vivido, esqueci-me de o saber.

    Não é que seja este primeiro dia do outono sensível — o primeiro de frio
    não fresco que veste o estio morto de menos luz — que me dê, numa
    transparência alheada, uma sensação de desígnio morto ou de vontade falsa.
    Não é que haja, neste interlúdio de coisas perdidas, um vestígio incerto de
    memória inútil. É, mais dolorosamente que isso, um tédio de estar lembrando
    o que se não recorda, um desalento do que a consciência perdeu entre algas
    ou juncos, a beira não sei de quê.

    Conheço que o dia, límpido e imóvel, tem um céu positivo e azul menos
    claro que o azul profundo. Conheço que o sol, vagamente menos de ouro que
    era, doura de reflexos húmidos os muros e as janelas. Conheço que, não
    havendo vento ou brisa que o lembre e negue, dorme todavia uma frescura
    desperta pela cidade indefinida. Conheço tudo isso, sem pensar nem querer, e
    não tenho sono senão por lembrança, nem saudade senão por desassossego.
    Convalesço, estéril e longínquo, da doença que não tive. Predisponho-me,
    ágil de despertar, ao que não ouso. Que sono me não deixou dormir? Que
    afago me não quis falar? Que bom ser outro com este hausto frio de
    primavera forte! Que bom poder ao menos pensá-lo, melhor que a vida,
    enquanto ao longe na imagem relembrada os juncos, sem vento que se sinta,
    se inclinam glaucos da ribeira!

    Quantas vezes, relembrando quem não fui, me medito jovem e esqueço! E
    eram outras que foram as paisagens que não vi nunca; eram novas sem terem
    sido as paisagens que deveras vi. Que me importa? Findei a acasos e
    interstícios, e, enquanto o fresco do dia é o do sol mesmo, dormem frios, no
    poente que vejo sem ter, os juncos escuros da ribeira.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:47

    381.

    Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o
    não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a que uns chamam tédio, não é
    mais que aborrecimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; há
    outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do
    cansaço, é do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água
    participa do hidrogénio e oxigénio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se
    assemelhar.

    Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro
    lhe presta uma significação que em certo modo o transcende — como quando
    se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do
    mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de
    posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço —
    nenhuma destas coisas é o tédio; mas também o não é o sentimento profundo
    da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia
    desiludida se ergue, e se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o
    santo.

    O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o
    cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade
    prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros
    mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro,
    ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de
    ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do
    nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres
    que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra
    coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que
    sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia.



    O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é tudo. O aborrecido, o
    mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da
    estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio
    sente-se preso em liberdade fruste numa cela infinita. Sobre o que se aborrece,
    ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao
    que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas, e ele fugir, ou
    doer de as não poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto.
    Mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar, porque não existem;
    nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.
    E é isto que eu sinto ante a beleza plácida desta tarde que finda

    imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas, como
    sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e
    longínqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente
    trémula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo
    de novo os olhos ao céu, há já, entre o que de vagamente colorido se esfia
    sem farrapos no ar invisível, um tom algendo de branco baço, como se
    alguma coisa também das coisas, onde são mais altas e frustes, tivesse um
    tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo
    imponderável de angústia e de desolação.

    Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? Que há no
    céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que
    nuvens, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente
    incidentes de um sol já submisso? Que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o
    tédio é isso, é só isso. É que em tudo isto — céu, terra, mundo, — o que há
    em tudo isto não é senão eu!


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:48

    382.


    Cheguei àquele ponto em que o tédio é uma pessoa, a ficção encarnada do
    meu convívio comigo.


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    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:49

    383.


    O mundo exterior existe como um ator num palco: está lá mas é outra
    coisa.



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    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 12:50

    384.

    E tudo é uma doença incurável.

    A ociosidade de sentir, o desgosto de ter de não saber fazer nada, a
    inca
    pacidade de agir, como um…









    458


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 27 Nov - 21:48

    385.


    Névoa ou fumo? Subia da terra ou descia do céu? Não se sabia: era mais
    como uma doença do ar que uma descida ou uma emanação. Por vezes
    parecia mais uma doença dos olhos do que uma realidade da natureza.
    Fosse o que fosse ia por toda a paisagem uma inquietação turva, feita de
    esquecimento e de atenuação. Era como se o silêncio do mau sol tomasse para
    seu um corpo imperfeito. Dir-se-ia que ia acontecer qualquer coisa e que por
    toda a parte havia uma intuição pela qual o visível se velava .

    Era difícil dizer se o céu tinha nuvens ou antes névoa. Era um torpor baço,
    aqui e ali colorido, um acinzentamento imponderavelmente amarelado, salvo
    onde se esboroava em cor-de-rosa falso, ou onde estagnava azulescendo, mas
    aí não se distinguia se era o céu que se revelava, se era outro azul que o
    encobria.

    Nada era definido, nem o indefinido. Por isso apetecia chamar fumo à
    névoa, por ela não parecer névoa, ou perguntar se era névoa ou fumo, por
    nada se perceber do que era. O mesmo calor do ar colaborava na dúvida. Não
    era calor, nem frio, nem fresco; parecia compor a sua temperatura de
    elementos tirados de outras coisas que o calor. Dir-se-ia, deveras, que uma
    névoa fria aos olhos era quente ao tato, como se tato e vista fossem dois
    modos sensíveis do mesmo sentido.

    Nem era, em torno dos contornos das árvores, ou das esquinas dos
    edifícios, aquele esbater de recortes ou de arestas, que a verdadeira névoa traz,
    estagnando, ou o verdadeiro fumo, natural, entreabre e entrescurece. Era
    como se cada coisa projetasse de si uma sombra vagamente diurna, em todos
    os sentidos, sem luz que a explicasse como sombra, sem lugar de projeção que
    a justificasse como visível.


    Nem visível era: era como um começo de ir a ver-se qualquer coisa, mas em
    toda a parte por igual, como se o a revelar hesitasse em ser aparecido.
    E que sentimento havia? A impossibilidade de o ter, o coração desfeito na
    cabeça, os sentimentos confundidos, um torpor da existência desperta, um
    apurar de qualquer coisa anímica como o ouvido para uma revelação
    definitiva, inútil, sempre a aparecer já, como a verdade, sempre, como a
    verdade, gémea de nunca aparecer.


    Até a vontade de dormir, que lembra ao pensamento, desapetece por
    parecer um esforço o mero bocejo de a ter. Até deixar de ver faz doer os
    olhos. E, na abdicação incolor da alma inteira, só os ruídos exteriores, longe,
    são o mundo impossível que ainda existe.
    Ah, outro mundo, outras coisas, outra alma com que senti-las, outro
    pensamento com que saber dessa alma! Tudo, até o tédio, menos este esfumar
    comum da alma e das coisas, este desamparo azulado da indefinição de tudo!


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