Todo esforço, qualquer que seja o fim para que tenda, sofre, ao manifestarse, os desvios que a vida lhe impõe; torna-se outro esforço, serve outros fins, consuma por vezes o mesmo contrário do que pretendera realizar. Só um baixo fim vale a pena, porque só um baixo fim se pode inteiramente efetuar. Se quero empregar meus esforços para conseguir uma fortuna, poderei em certo modo consegui-la; o fim é baixo, como todos os fins quantitativos, pessoais ou não, e é atingível e verificável. Mas como hei de efetuar o intento de servir minha pátria, ou alargar a cultura humana, ou melhorar a humanidade? Nem posso ter a certeza dos processos nem a verificação dos fins;
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147.
Todo esforço, qualquer que seja o fim para que tenda, sofre, ao manifestarse, os desvios que a vida lhe impõe; torna-se outro esforço, serve outros fins, consuma por vezes o mesmo contrário do que pretendera realizar. Só um baixo fim vale a pena, porque só um baixo fim se pode inteiramente efetuar. Se quero empregar meus esforços para conseguir uma fortuna, poderei em certo modo consegui-la; o fim é baixo, como todos os fins quantitativos, pessoais ou não, e é atingível e verificável. Mas como hei de efetuar o intento de servir minha pátria, ou alargar a cultura humana, ou melhorar a humanidade? Nem posso ter a certeza dos processos nem a verificação dos fins;
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y en ese vuelo y en ese sueño
compartir contigo sol y luna,
siendo guardián en tu cielo
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148.
O homem perfeito do pagão era a perfeição do homem que há; o homem perfeito do cristão a perfeição do homem que não há; o homem perfeito do budista a perfeição de não haver o homem. A natureza é a diferença entre a alma e Deus. Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos.
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149.
Muitos têm definido o homem, e em geral o têm definido em contraste com os animais. Por isso, nas definições do homem, é frequente o uso da frase "o homem é um animal..." e um adjetivo, ou "o homem é um animal que... " e diz-se o quê. "O homem é um animal doente", disse Rousseau, e em parte e verdade. "O homem é um animal racional", diz a Igreja, e em parte é verdade. "O homem é um animal que usa de ferramenta", diz Carlyle, e em parte e verdade.
Mas estas definições, e outras como elas, são sempre imperfeitas e laterais. E a razão é muito simples: não é fácil distinguir o homem dos animais, não há critério seguro para distinguir o homem dos animais. As vidas humanas decorrem na mesma íntima inconsciência que as vidas dos animais.
As mesmas leis profundas, que regem de fora os instintos dos animais, regem, também, de fora, a inteligência do homem, que parece não ser mais que um instinto em formação, tão inconsciente como todo instinto, menos perfeito porque ainda não formado. "Tudo vem da sem-razão", diz-se na Antologia Grega. E, na verdade, tudo vem da sem-razão.
Fora da matemática, que não tem que ver senão com números mortos e fórmulas vazias, e por isso pode ser perfeitamente lógica, a ciência não é senão um jogo de crianças no crepúsculo, um querer apanhar sombras de aves e parar sombras de ervas ao vento. E é curioso e estranho que, não sendo fácil encontrar palavras com que verdadeiramente se defina o homem como distinto dos animais, é todavia fácil encontrar maneira de diferençar o homem superior do homem vulgar.
Nunca me esqueceu aquela frase de Haeckel, o biologista, que li na infância da inteligência, quando se leem as divulgações científicas e as razões contra a religião. A frase é esta, ou quase esta: que muito mais longe está o homem superior (um Kant ou um Goethe, creio que diz) do homem vulgar que o homem vulgar do macaco. Nunca esqueci a frase porque ela é verdadeira.
Entre mim, que pouco sou na ordem dos que pensam, e um camponês de Loures vai, sem dúvida, maior distância que entre esse camponês e, já não digo um macaco, mas um gato ou um cão. Nenhum de nós, desde o gato até mim, conduz de facto a vida que lhe é imposta, ou o destino que lhe é dado; todos somos igualmente derivados de não sei quê, sombras de gestos feitos por outrem, efeitos encarnados, consequências que sentem.
Mas entre mim e o camponês há uma diferença de qualidade, proveniente da existência em mim do pensamento abstrato e da emoção desinteressada; e entre ele e o gato não há, no espírito, mais que uma diferença de grau.
O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse "sei só que nada sei", e o estádio marcado por Sanches, quando disse "nem sei se nada sei".
O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra.
Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse «Conhece-te» propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscienciosamente é o emprego ativo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autónomas, a poesia do crepúsculo da desilusão.
Mas sempre qualquer coisa nos ilude, sempre qualquer análise se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa, está além da outra esquina. E é isto que cansa mais que a vida, quando ela cansa, e que” o conhecimento e meditação dela, que nunca deixam de cansar. Ergo-me da cadeira de onde, fincado distraidamente contra a mesa, me entretive a narrar para mim estas impressões irregulares.
Ergo-me, ergo o corpo nele mesmo, e vou até à janela, alta acima dos telhados, de onde posso ver a cidade ir a dormir num começo lento de silêncio. A lua, grande e de um branco branco, elucida tristemente as diferenças socalcadas da casaria. E o luar parece iluminar algidamente todo o mistério do mundo. Parece mostrar tudo, e tudo é sombras com misturas de luz má, intervalos falsos, desniveladamente absurdos, incoerências do visível.
Não há brisa, e parece que o mistério é maior. Tenho náuseas no pensamento abstrato. Nunca escreverei uma página que me revele ou que revele alguma coisa. Uma nuvem muito leve paira vaga acima da lua, como um esconderijo. Ignoro como estes telhados. Falhei, como a natureza inteira
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o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
compartir contigo sol y luna,
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150.
A persistência instintiva da vida através da aparência da inteligência é para mim uma das contemplações mais íntimas e mais constantes. O disfarce irreal da consciência serve somente para me destacar aquela inconsciência que não disfarça. Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma exterioridade de si mesmo que têm os animais. Toda a vida não vive, mas vegeta em maior grau e com mais complexidade.
Guia-se por normas que não sabe que existem, nem que por elas se guia, e as suas ideias, os seus sentimentos, os seus actos, são todos inconscientes — não porque neles falte a consciência, mas porque neles não há duas consciências. Vislumbres de ter a ilusão — tanto, e não mais, tem o maior dos homens.
Sigo, num pensamento de divagação, a história vulgar das vidas vulgares. Vejo como em tudo são servos do temperamento subconsciente, das circunstâncias externas alheias, dos impulsos de convívio e desconvívio que nele, por ele e com ele se chocam como pouca coisa. Quantas vezes os tenho ouvido dizer a mesma frase que simboliza todo o absurdo, todo o nada, toda a insciência falada das suas vidas.
É aquela frase que usam de qualquer prazer material: "é o que a gente leva desta vida"... Leva onde? Leva para onde? Leva para quê? Seria triste despertá-los da sombra com uma pergunta como esta... Fala assim um materialista, porque todo o homem que fala assim é, ainda que subconscientemente, materialista.
O que é que ele pensa levar da vida, e de que maneira? Para onde leva as costeletas de porco e o vinho tinto e a rapariga casual? Para que céu em que não crê? Para que terra para onde não leva senão a podridão que toda a sua vida foi de latente? Não conheço frase mais trágica nem mais plenamente reveladora da humanidade humana. Assim diriam as plantas se soubessem conhecer que gozam do sol.
Assim diriam dos seus prazeres sonâmbulos os bichos inferiores ao homem na expressão de si mesmos. E, quem sabe, eu que falo, se, ao escrever estas palavras numa vaga impressão de que poderão durar, não acho também que a memória de as ter escrito é o que eu "levo desta vida". E, como o inútil cadáver do vulgar à terra comum, baixa ao esquecimento comum o cadáver igualmente inútil da minha prosa feita a atender.
As costeletas de porco, o vinho, a rapariga do outro? Para que troço eu deles? Irmãos na comum insciência, modos diferentes do mesmo sangue, formas diversas da mesma herança — qual de nós poderá renegar o outro? Renega-se a mulher mas não a mãe, não o pai, não o irmão.
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151.
Lento, no luar lá fora da noite lenta, o vento agita coisas que fazem sombra a mexer. Não é talvez senão a roupa que deixaram estendida no andar mais alto, mas a sombra, em si, não conhece camisas e flutua impalpável num acordo mudo com tudo. Deixei abertas as portas da janela, para despertar cedo, mas até agora, e a noite é já tão velha que nada se ouve, não pude deixar-me ao sono nem estar desperto bem. Um luar está para além das sombras do meu quarto, mas não passa pela janela.
Existe, como um dia de prata oca, e os telhados do prédio vizinho, que vejo da cama, são líquidos de brancura enegrecida. Como parabéns do alto a quem não ouve, há uma paz triste na luz dura da lua. E sem ver, sem pensar, olhos fechados já sobre o sono ausente, medito com que palavras verdadeiras se poderá descrever um luar. Os antigos diriam que o luar é branco, ou que é de prata.
Mas a brancura falsa do luar é de muitas cores. Se me erguesse da cama, e visse por detrás dos vidros frios, sei bem que, no alto ar isolado, o luar é de branco cinzento azulado de amarelo esbatido; que, sobre os telhados vários, em desequilíbrios de negrume de uns para outros, ora doura de branco preto os prédios submissos, ora alaga de uma cor sem cor o encarnado castanho das telhas altas.
No fundo da rua, abismo plácido, onde as pedras nuas se arredondam irregularmente, não tem cor salvo um azul que vem talvez do cinzento das pedras. Ao fundo do horizonte será quase de azul escuro, diferente do azul negro do céu ao fundo. Nas janelas onde bate, é de amarelo negro. Daqui, da cama, se abro os olhos que têm o sono que não tenho, é um ar de neve tornada cor onde boiam filamentos de madrepérola morna.
E, se o sinto com o que sinto, é um tédio tornado sombra branca, escurecendo como se olhos se fechassem sobre essa indistinta brancura.
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152.
Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia.
A razão porque tantas vezes interrompo um pensamento com um trecho de paisagem, que de algum modo se integra no esquema, real ou suposto, das minhas impressões, é que essa paisagem é uma porta por onde fujo ao conhecimento da minha impotência criadora .
Tenho a necessidade, no meio das conversas comigo que formam as palavras deste livro, de falar de repente com outra pessoa, e dirijo-me à luz que paira, como agora, sobre os telhados das casas, que parecem molhados de tê-la de lado; ao agitar brando das árvores altas na encosta citadina, que parecem perto, numa possibilidade de desabamento mudo; aos cartazes sobrepostos das casas ingremadas, com janelas por letras onde o sol morto doira goma húmida.
Por que escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso o silêncio como quem receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha mais que o esforço, e gozam a glória na peliça.
Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas dos propósitos, folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma.
Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como o rio na foz para que nasceu incógnito, mas como o lago feito na praia pela maré alta, e cuja água sumida nunca mais regressa ao mar.
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153.
Ergo-me da cadeira com um esforço monstruoso, mas tenho a impressão de que levo a cadeira comigo, e que é mais pesada, porque é a cadeira do subjetivismo.
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154.
Quem sou eu para mim? Só uma sensação minha. O meu coração esvazia-se sem querer, como um balde roto. Pensar? Sentir? Como tudo cansa se é uma coisa definida!
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p197
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155.
Como há quem trabalhe de tédio, escrevo, por vezes, de não ter que dizer. O devaneio, em que naturalmente se perde quem não pensa, perco-me eu nele por escrito, pois sei sonhar em prosa. E há muito sentimento sincero, muita emoção legítima que tiro de não estar sentindo.
Há momentos em que a vacuidade de se sentir viver atinge a espessura de uma coisa positiva. Nos grandes homens de ação, que são os santos, pois que agem com a emoção inteira e não só com parte dela, este sentimento de a vida não ser nada conduz ao infinito.
Engrinaldam-se de noite e de astros, ungemse de silêncio e de solidão. Nos grandes homens de inação, a cujo número humildemente pertenço, o mesmo sentimento conduz ao infinitesimal; puxam-se as sensações, como elásticos, para ver os poros da sua falsa continuidade bamba. E uns e outros, nestes momentos, amam o sono, como o homem vulgar que nem age nem não age, mero reflexo da existência genérica da espécie humana.
Sono é a fusão com Deus, o Nirvana, seja ele em definições o que for; sono é a análise lenta das sensações, seja ela usada como uma ciência atómica da alma, seja ela dormida como uma música da vontade, anagrama lento da monotonia.
Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios-sentidos, quase-expressões o que me fica, como cores de estofos que não vi o que são, harmonias exibidas compostas de não sei que objetos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a um filho morto.
Encontrei-me neste mundo certo dia, que não sei qual foi, e até ali, desde que evidentemente nascera, tinha vivido sem sentir. Se perguntei onde estava, todos me enganaram, e todos se contradiziam. Se pedi que me dissessem o que faria, todos me falaram falso, e cada um me disse uma coisa sua. Se, de não saber, parei no caminho, todos pasmaram que eu não seguisse para onde ninguém sabia o que estava, ou não voltasse para trás — eu, que, desperto na encruzilhada, não sabia de onde viera.
Vi que estava em cena e não sabia o papel que os outros diziam logo, sem o saberem também. Vi que estava vestido de pajem, e não me deram a rainha, culpando-me de a não ter. Vi que tinha nas mãos a mensagem que entregar, e quando lhes disse que o papel estava branco, riram-se de mim.
E ainda não sei se riram porque todos os papéis estão brancos, ou porque todas as mensagens se adivinham. Por fim sentei-me na pedra da encruzilhada como à lareira que me faltou. E comecei, a sós comigo, a fazer barcos de papel com a mentira que me tinham dado. Ninguém me quis acreditar, nem por mentiroso, e não tinha lago com que provasse a minha verdade.
Palavras ociosas, perdidas, metáforas soltas, que uma vaga angústia encadeia a sombras... Vestígios de melhores horas, vividas não sei onde em áleas... Lâmpada apagada cujo ouro brilha no escuro pela memória da extinta luz... Palavras dadas, não ao vento, mas ao chão, deixadas ir dos dedos sem aperto, como folhas secas que neles houvessem caído de uma árvore invisivelmente infinita...
Saudade dos tanques das quintas alheias... Ternura do nunca sucedido... Viver! Viver! E a suspeita ao menos, se acaso no leito de Proserpina haveria bem de me dormir.
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156.
Que rainha imperiosa guarda ao pé dos seus lagos a memória da minha vida partida? Fui o pajem de alamedas insuficientes às horas aves do meu sossego azul. Naus longe completaram o mar a ondear dos meus terraços, e nas nuvens do sul perdi minha alma, como um remo deixado cair.
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157.
Criar dentro de mim um estado com uma política, com partidos e revoluções, e ser eu isso tudo, ser eu Deus no panteísmo real desse povo-eu, essência e ação dos seus corpos, das suas almas, da terra que pisam e dos actos que fazem.
Ser tudo, ser eles e não eles. Ai de mim! Este ainda é um dos sonhos que não logro realizar. Se o realizasse morreria talvez, não sei porquê, mas não se deve poder viver depois disso, tamanho o sacrilégio cometido contra Deus, tamanha usurpação do poder divino de ser tudo. O prazer que me daria criar um jesuitismo das sensações! Há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua.
Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há frases literárias que têm uma individualidade absolutamente humana. Passos de parágrafos meus há que me arrefecem de pavor, tão nitidamente gente eu os sinto, tão recortados de encontro aos muros do meu quarto, na noite, na sombra, .
Tenho escrito frases cujo som, lidas alto ou baixo — é impossível ocultar-lhes o som – é absolutamente o de uma coisa que ganhou exterioridade absoluta e alma inteiramente. Por que exponho eu de vez em quando processos contraditórios e inconciliáveis de sonhar e de aprender a sonhar? Porque, provavelmente, tanto me habituei a sentir o falso como o verdadeiro, o sonhado tão nitidamente como o visto, que perdi a distinção humana, falsa, creio, entre a verdade e a mentira. Basta que eu veja nitidamente, com os olhos ou com os ouvidos, ou com outro sentido qualquer, para que eu sinta que aquilo é real. Pode ser mesmo que eu sinta duas coisas inconjugáveis ao mesmo tempo. Não importa.
Há criaturas que são capazes de sofrer longas horas por não lhes ser possível ser uma figura de um quadro ou de um naipe de baralho de cartas. Há almas sobre quem pesa como uma maldição o não lhes ser possível ser hoje gente da idade média. Aconteceu-me deste sofrimento em tempo.
Hoje já me não acontece. Requintei para além disso. Mas dói-me, por exemplo, não me poder sonhar dois reis em remos diversos, pertencentes, por exemplo, a universos com diversas espécies de espaços e de tempos. Não conseguir isso magoa-me verdadeiramente. Sabe-me a passar fome. Poder sonhar o inconcebível visibilizando-o é um dos grand
es triunfos que não eu, que sou tão grande, senão raras vezes atinjo. Sim, sonhar que sou por exemplo, simultaneamente, separadamente, inconfusamente, o homem e a mulher de um passeio que um homem e uma mulher dão à beira-rio.
Ver-me, ao mesmo tempo, com igual nitidez, do mesmo modo, sem mistura, sendo as duas coisas com igual integração nelas, um navio consciente num mar do sul e uma página impressa de um livro antigo. Que absurdo que isto parece! Mas tudo é absurdo, e o sonho ainda é o que o é menos.
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158.
A quem, embora em sonho, como Dis raptou Proserpina, que pode ser senão sonho o amor de qualquer mulher do mundo? Amei, como Shelley, a Antiga antes que o tempo fosse: todo amor temporal não teve para mim outro gosto senão o de lembrar o que perdi.
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159.
Duas vezes, naquela minha adolescência que sinto longínqua, e que, por assim senti-la, me parece uma coisa lida, um relato íntimo que me fizessem, gozei a dor da humilhação de amar. Do alto de hoje, olhando para trás, para esse passado, que já não sei designar nem como longínquo nem como recente, creio que foi bom que essa experiência da desilusão me acontecesse tão cedo. Não foi nada, salvo o que passei comigo.
No aspeto externo do assunto íntimo, legiões humanas de homens têm passado pelas mesmas torturas. Mas Cedo de mais obtive, por uma experiência, simultânea e conjunta, da sensibilidade e da inteligência, a noção de que a vida da imaginação, por mórbida que pareça, é contudo aquela que calha aos temperamentos como é o meu. As ficções da minha imaginação (posterior) podem cansar, mas não doem nem humilham.
Às amantes impossíveis é também impossível o sorriso falso, o dolo do carinho, a astúcia das carícias. Nunca nos abandonam, nem de qualquer modo nos cessam. São sempre cataclismos do cosmos as grandes angústias da nossa alma. Quando nos chegam, em torno a nós se erra o sol e se perturbam as estrelas.
Em toda a alma que sente chega o dia em que o Destino nela representa um apocalipse de angústia — um entornar dos céus e dos mundos todos sobre a sua desconsolação. Sentir-se superior e ver-se tratado pelo Destino como inferior aos ínfimos — quem pode vangloriar-se de estar homem em tal situação? Se eu um dia pudesse adquirir um rasgo tão grande de expressão, que concentrasse toda a arte em mim, escreveria uma apoteose do sono.
Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado nem futuro
_________________
"Ser como un verso volando
o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
compartir contigo sol y luna,
siendo guardián en tu cielo
y tren de tus ilusiones."
(Hánjel)
o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
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160.
Todo o dia, em toda a sua desolação de nuvens leves e mornas, foi ocupado pelas informações de que havia revolução. Estas notícias, falsas ou certas, enchem-me sempre de um desconforto especial, misto de desdém e de náusea física. Dói-me na inteligência que alguém julgue que altera alguma coisa agitando-se. A violência, seja qual for, foi sempre para mim uma forma esbugalhada de estupidez humana. Depois, todos os revolucionários são estúpidos, como, em grau menor, porque menos incómodo, o são todos os reformadores.
Revolucionário ou reformador — o erro é o mesmo. Impotente para dominar e reformar a sua própria atitude para com a vida, que é tudo, ou o seu próprio ser, que é quase tudo, o homem foge para querer modificar os outros e o mundo externo. Todo o revolucionário, todo o reformador, é um evadido. Combater é não ser capaz de combater-se. Reformar é não ter emenda possível. O homem de sensibilidade justa e reta razão, se se acha preocupado com o mal e a injustiça do mundo, busca naturalmente emendá-la, primeiro, naquilo em que ela mais perto se manifesta; e encontrará isso no seu próprio ser.
Levar-lhe-á essa obra toda a vida. Tudo para nós está no nosso conceito do mundo; modificar o nosso conceito do mundo é modificar o mundo para nós, isto é, é modificar o mundo, pois ele nunca será, para nós, senão o que é para nós. Aquela justiça íntima pela qual escrevemos uma página fluente e bela, aquela reformação verdadeira, pela qual tornamos viva a nossa sensibilidade morta — essas coisas são a verdade, a nossa verdade, a única verdade. O mais que há no mundo é paisagem, molduras que enquadram sensações nossas, encadernações do que pensamos.
E é-o quer seja a paisagem colorida das coisas e dos seres — os campos, as casas, os cartazes e os trajos — quer seja a paisagem incolor das almas monótonas, subindo um momento à superfície em palavras velhas e gestos gastos, descendo outra vez ao fundo na estupidez fundamental da expressão humana. Revolução? Mudança? O que eu quero deveras, com toda a intimidade da minha alma, é que cessem as nuvens átonas que ensaboam cinzentamente o céu; o que eu quero é ver o azul começar a surgir de entre elas, verdade certa e clara porque nada é nem quer. 161
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compartir contigo sol y luna,
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161.
Nada me pesa tanto no desgosto como as palavras sociais de moral. Já a
palavra "dever" é para mim desagradável como um intruso. Mas os termos
"dever cívico", "solidariedade", "humanitarismo", e outros da mesma estirpe,
repugnam-me como porcarias que despejassem sobre mim de janelas. Sintome ofendido com a suposição, que alguém porventura faça, de que essas
expressões têm que ver comigo, de que lhes encontro, não só uma valia, mas
sequer um sentido.
Vi há pouco, num a montra de loja de brinquedos, umas coisas que
exatamente me lembraram o que essas expressões são. Vi, em pratos fingidos,
manjares fingidos para mesas de bonecas. Ao homem que existe, sensual,
egoísta, vaidoso, amigo dos outros porque tem o dom da fala, inimigo dos
outros porque tem o dom da vida, a esse homem que há que oferecer com
que brinque às bonecas com palavras vazias de som e tom?
O governo assenta em duas coisas: refrear e enganar. O mal desses termos
lantejoulados é que nem refreiam nem enganam. Embebedam, quando muito,
e isso é outra coisa.
Se alguma coisa odeio, é um reformador. Um reformador é um homem que
vê os males superficiais do mundo e se propõe curá-los agravando os
fundamentais. O médico tenta adaptar o corpo doente ao corpo são; mas nós
não sabemos o que é são ou doente na vida social.
Não posso considerar a humanidade senão como uma das últimas escolas
na pintura decorativa da Natureza. Não distingo, fundamentalmente, um
homem de uma árvore; e, por certo, prefiro o que mais decore, o que mais
interesse os meus olhos pensantes. Se a árvore me interessa mais, pesa-me
mais que cortem a árvore do que o homem morra. Há idas de poente que me
doem mais que mortes de crianças. Em tudo sou o que não sente, para que
sinta.
Quase me culpo de estar escrevendo estas meias reflexões nesta hora em
que dos confins da tarde sobe, colorindo-se, uma brisa ligeira. Colorindo-se
não, que não é ela que se cobra, mas o ar em que boia incerta; mas como me
parece que é ela mesma que se cobra, é isso que digo, pois hei de por força
dizer o que me parece, visto que sou eu
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o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
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Amalia Lateano- Cantidad de envíos : 4352
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Muchas gracias por compartir... Siempre me atrajo este escritor.
Besos !!!
Besos !!!
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162.
Tudo quanto de desagradável nos sucede na vida — figuras ridículas que
fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qualquer das
virtudes — deve ser considerado como meros acidentes externos, impotentes
para atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou
calos, da vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas,
ou que só tem que supor a nossa existência orgânica ou que preocupar-se o
que há de vital em nós.
Quando atingimos esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos,
estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o
que em nós é externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso o nosso
inimigo.
Daí Horácio, falando do varão justo, que ficaria impávido ainda que em
torno dele ruísse o mundo. A imagem é absurda, justo o seu sentido. Ainda
que em torno de nós rua o que fingimos que somos, porque coexistimos,
devemos ficar impávidos — não porque sejamos justos, mas porque somos
nós, e sermos nós é nada ter que ver com essas coisas externas que ruem,
ainda que ruam sobre o que para elas somos.
A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos.
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163.
A experiência direta é o subterfúgio, ou o esconderijo, daqueles que são
desprovidos de imaginação. Lendo os riscos que correu o caçador de tigres
tenho quanto de riscos valeu a pena ter, salvo o do mesmo risco, que tanto
não valeu a pena ter, que passou.
Os homens de ação são os escravos involuntários dos homens de
entendimento. As coisas não valem senão na interpretação delas. Uns, pois,
criam coisas para que os outros, transmudando-as em significação, as tornem
vidas. Narrar é criar, pois viver é apenas ser vivido.
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164.
A inação consola de tudo. Não agir dá-nos tudo. Imaginar é tudo, desde
que não tenda para agir. Ninguém pode ser rei do mundo senão em sonho. E
cada um de nós, se deveras se conhece, quer ser rei do mundo.
Não ser, pensando, é o trono. Não querer, desejando, é a coroa. Temos o
que abdicamos, porque o conservamos sonhado, intacto, eternamente à luz do
sol que não há, ou da lua que não pode haver.
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165.
Tudo quanto não é a minha alma é para mim, por mais que eu queira que o
não seja, não mais que cenário e decoração. Um homem, ainda que eu possa
reconhecer pelo pensamento que ele é um ente vivo como eu, teve sempre,
para o que em mim, por me ser involuntário, é verdadeiramente eu, menos
importância que uma árvore, se a árvore é mais bela. Por isso senti sempre os
movimentos humanos — as grandes tragédias coletivas da história ou do que
dela fazem — como frisos coloridos, vazios da alma dos que passam neles.
Nunca me pesou o que de trágico se passasse na China. É decoração
longínqua, ainda que a sangue e peste.
Relembro, com tristeza irónica, uma manifestação de operários, feita não
sei com que sinceridade (pois me pesa sempre admitir sinceridade nas coisas
coletivas, visto que é o indivíduo, a sós consigo, o único ser que sente). Era
um grupo compacto e solto de estúpidos animados, que passou gritando
coisas diversas diante do meu indiferentismo de alheio. Tive subitamente
náusea. Nem sequer estavam suficientemente sujos.
Os que verdadeiramente
sofrem não fazem plebe, não formam conjunto. O que sofre sofre só.
Que mau conjunto! Que falta de humanidade e de dor! Eram reais e
portanto incríveis. Ninguém faria com eles um quadro de romance, um
cenário de descrição. Decorriam como lixo num rio, no rio da vida. Tive sono
de vê-los, nauseado e supremo.
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166.
Se considero com atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela
que a diference da vida que vivem os animais. Uns e outros são lançados
inconscientemente através das coisas e do mundo; uns e outros se entretém
com intervalos; uns e outros percorrem diariamente o mesmo percurso
orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem vivem para
além do que vivem. O gato espoja-se ao sol e dorme ali. O homem espoja-se à
vida, com todas as suas complexidades, e dorme ali. Nem um nem outro se
liberta da lei fatal de ser como é. Nenhum tenta levantar o peso de ser. Os
maiores dos homens amam a glória, mas amam-na, não como a uma
imortalidade própria, senão como a uma imortalidade abstrata, de que
porventura não participem.
Estas considerações, que em mim são frequentes, levam-me a uma
admiração súbita por aquela espécie de indivíduos que instintivamente
repugno. Refiro-me aos místicos e aos ascetas — aos remotos de todos os
Tibetes, aos Simões Estilitas de todas as colunas. Estes, ainda que no absurdo,
tentam, de facto, libertar-se da lei animal. Estes, ainda que na loucura, tentam,
de facto, negar a lei da vida, o espojar-se ao sol e o aguardar da morte sem
pensar nela. Buscam, ainda que parados no alto de uma coluna; anseiam, ainda
que numa cela sem luz; querem o que não conhecem, ainda que no martírio
dado e na mágoa imposta.
Nós outros todos, que vivemos animais com mais ou menos complexidade,
atravessamos o palco como figurantes que não falam, contentes da solenidade
vaidosa do trajeto. Cães e homens, gatos e heróis, pulgas e génios, brincamos
a existir, sem pensar nisso (que os melhores pensam só em pensar) sob o
grande sossego das estrelas. Os outros — os místicos da má hora e do
sacrifício — sentem ao menos, com o corpo e o quotidiano, a presença
mágica do mistério. São libertos, porque negam o sol visível; são plenos,
porque se esvaziaram do vácuo do mundo.
Estou quase místico, como eles, ao falar deles, mas seria incapaz de ser
mais que estas palavras escritas ao sabor da minha inclinação ocasional. Serei
sempre da Rua dos Douradores, como a humanidade inteira. Serei sempre, em
verso ou prosa, empregado de carteira. Serei sempre no místico ou no nãomístico,
local e submisso, servo das minhas sensações e da hora em que as ter.
Serei sempre, sob o grande pálio azul do céu mudo, pajem num rito
incompreendido, vestido de vida para cumpri-lo, e executando, sem saber
porquê, gestos e passos, posições e maneiras, até que a festa acabe, ou o meu
papel nela, e eu possa ir comer coisas de gala nas grandes barracas que estão,
dizem, lá em baixo ao fundo do jardim
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167.
Estou num dia em que me pesa, como uma entrada no cárcere, a
monotonia de tudo. A monotonia de tudo não é, porém, senão a monotonia
de mim. Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem, é outro hoje,
pois que hoje não é ontem. Cada dia é o dia que é, e nunca houve outro igual
no mundo. Só na nossa alma está a identidade — a identidade sentida, embora
falsa, consigo mesma — pela qual tudo se assemelha e se simplifica. O mundo
é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa
insuficiente e contínua.
O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao
que amo. Desejo partir — não para as Índias impossíveis, ou para as grandes
ilhas ao Sul de tudo, mas para o lugar qualquer — aldeia ou ermo — que
tenha em si o não ser este lugar. Quero não ver mais estes rostos, estes
hábitos e estes dias. Quero repousar, alheio, do meu fingimento orgânico.
Quero sentir o sono chegar como vida, e não como repouso. Uma cabana à
beira-mar, uma caverna, até, no socalco rugoso de uma serra, me pode dar
isto. Infelizmente, só a minha vontade mo não pode dar.
A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei,
porque esta tem de cumprirse, sem revolta possível nem refúgio que achar.
Uns nascem escravos, outros
tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada. O amor cobarde que todos
temos à liberdade — que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova,
repudiando-a — é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão. Eu mesmo,
que acabo de dizer que desejaria a cabana ou caverna onde estivesse livre da
monotonia de tudo, que é a de mim, ousaria eu partir para essa cabana ou
caverna, sabendo, por conhecimento’, que, pois que a monotonia é de mim, a
haveria sempre de ter comigo? Eu mesmo, que sufoco onde estou e porque
estou, onde respiraria melhor, se a doença é dos meus pulmões e não das
coisas que me cercam? Eu mesmo, que anseio alto pelo sol puro e os campos
livres, pelo mar visível e o horizonte inteiro, quem me diz que não estranharia
a cama, ou a comida, ou não ter que descer os oito lanços de escada até à rua,
ou não entrar na tabacaria da esquina, ou não trocar os bons-dias com o
barbeiro ocioso?
Tudo que nos cerca se torna parte de nós, se nos infiltra na sensação da
carne e da vida, e, baba da grande Aranha, nos liga subtilmente ao que está
perto, enleando-nos num leito leve de morte lenta, onde baloiçamos ao vento.
Tudo é nós, e nós somos tudo; mas de que serve isto, se tudo é nada?
Um raio de sol, uma nuvem que a sombra súbita diz que passa, uma brisa
que se ergue, o silêncio que se segue quando ela cessa, um rosto ou outro,
algumas vozes, o riso casual entre elas que falam, e depois a noite onde
emergem sem sentido os hieróglifos quebrados das estrelas.
213
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168.
E eu, que odeio a vida com timidez, temo a morte com fascinação. Tenho
medo desse nada que pode ser outra coisa, e tenho medo dele
simultaneamente como nada e outra coisa qualquer, como se nele se
pudessem reunir o nulo e o horrível, como se no caixão me fechassem a
respiração eterna de uma alma, corpórea, como se ali triturassem de clausura o
imortal. A ideia de inferno, que só uma alma satânica poderia ter inventado,
parece-me derivar-se de uma confusão desta maneira — ser a mistura de dois
medos diferentes, que se contradizem e malignam
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169.
Releio lúcido, demoradamente, trecho a trecho, tudo quanto tenho escrito.
E acho que tudo é nulo e mais valera que eu o não houvesse feito. As coisas
conseguidas, sejam impérios ou frases, têm, porque se conseguiram, aquela
pior parte das coisas reais, que é o sabermos que são perecíveis. Não é isto,
porém, que sinto e me dói no que fiz, nestes lentos momentos em que o
releio. O que me dói é que não valeu a pena fazê-lo, e que o tempo que perdi
no que fiz o não ganhei senão na ilusão, agora desfeita, de ter valido a pena
fazê-lo.
Tudo quanto buscamos, buscamo-lo por uma ambição, mas essa ambição
ou não se atinge, e somos pobres, ou julgamos que a atingimos, e somos
loucos ricos.
O que me dói é que o melhor é mau, e que outro, se o houvesse, e que eu
sonho, o haveria feito melhor. Tudo quanto fazemos, na arte ou na vida, é a
cópia imperfeita do que pensámos em fazer. Desdiz não só da perfeição
externa, senão da perfeição interna; falha não só à regra do que deveria ser,
senão à regra do que julgávamos que poderia ser. Somos ocos não só por
dentro, senão também por fora, párias da antecipação e da promessa.
Com que vigor da alma sozinha fiz página sobre página reclusa, vivendo
sílaba a sílaba a magia falsa, não do que escrevia, mas do que supunha que
escrevia! Com que encantamento de bruxedo irónico me julguei poeta da
minha prosa, no momento alado em que ela me nascia, mais rápida que os
movimentos da pena, como um desforço falaz aos insultos da vida! E afinal,
hoje, relendo, vejo rebentar meus bonecos, sair-lhes a palha pelos rasgos,
despejarem-se sem ter sido...
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170.
Depois que as últimas chuvas passaram para o sul, e só ficou o vento que as
varreu, regressou aos montões da cidade a alegria do sol certo e apareceu
muita roupa branca pendurada a saltar nas cordas esticadas por paus médios
nas janelas altas dos prédios de todas as cores.
Também fiquei contente, porque existo. Saí de casa para um grande fim,
que era, afinal, chegar a horas ao escritório. Mas, neste dia, a própria
compulsão da vida participava daquela outra boa compulsão que faz o sol vir
nas horas do almanaque, conforme a latitude e a longitude dos lugares da
terra. Senti-me feliz por não poder sentir-me infeliz. Desci a rua
descansadamente, cheio de certeza, porque, enfim, o escritório conhecido, a
gente conhecida nele, eram certezas. Não admira que me sentisse livre, sem
saber de quê. Nos cestos poisados à beira dos passeios da Rua da Prata as
bananas de vender, sob o sol, eram de um amarelo grande.
Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessado a chuva, o haver um
sol bom neste Sul feliz, bananas mais amarelas por terem nódoas negras, a
gente que as vende porque fala, os passeios da Rua da Prata, o Tejo ao fundo,
azul esverdeado a ouro, todo este recanto doméstico do sistema do Universo.
Virá o dia em que não veja isto mais, em que me sobreviverão as bananas
da orla do passeio, e as vozes das vendedeiras solertes, e os jornais do dia que
o pequeno estendeu lado a lado na esquina do outro passeio da rua. Bem sei
que as bananas serão outras, e que as vendedeiras serão outras, e que os
jornais terão, a quem se baixar para vê-los, uma data que não é a de hoje. Mas
eles, porque não vivem, duram ainda que outros; eu, porque vivo, passo ainda
que o mesmo.
Esta hora poderia eu bem solenizá-la comprando bananas, pois me parece
que nestas se projetou todo o sol do dia como um holofote sem máquina. Mas
tenho vergonha dos rituais, dos símbolos, de comprar coisas na rua. Podiam
não me embrulhar bem as bananas, não mas vender como devem ser vendidas
por eu as não saber comprar como devem ser compradas. Podiam estranhar a
minha voz ao perguntar o preço. Mais vale escrever do que ousar viver, ainda
que viver não seja mais que comprar bananas ao sol, enquanto o sol dura e há
bananas que vender.
Mais tarde, talvez... Sim, mais tarde... Um outro, talvez... Não sei...
Depois que as últimas chuvas passaram para o sul, e só ficou o vento que as
varreu, regressou aos montões da cidade a alegria do sol certo e apareceu
muita roupa branca pendurada a saltar nas cordas esticadas por paus médios
nas janelas altas dos prédios de todas as cores.
Também fiquei contente, porque existo. Saí de casa para um grande fim,
que era, afinal, chegar a horas ao escritório. Mas, neste dia, a própria
compulsão da vida participava daquela outra boa compulsão que faz o sol vir
nas horas do almanaque, conforme a latitude e a longitude dos lugares da
terra. Senti-me feliz por não poder sentir-me infeliz. Desci a rua
descansadamente, cheio de certeza, porque, enfim, o escritório conhecido, a
gente conhecida nele, eram certezas. Não admira que me sentisse livre, sem
saber de quê. Nos cestos poisados à beira dos passeios da Rua da Prata as
bananas de vender, sob o sol, eram de um amarelo grande.
Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessado a chuva, o haver um
sol bom neste Sul feliz, bananas mais amarelas por terem nódoas negras, a
gente que as vende porque fala, os passeios da Rua da Prata, o Tejo ao fundo,
azul esverdeado a ouro, todo este recanto doméstico do sistema do Universo.
Virá o dia em que não veja isto mais, em que me sobreviverão as bananas
da orla do passeio, e as vozes das vendedeiras solertes, e os jornais do dia que
o pequeno estendeu lado a lado na esquina do outro passeio da rua. Bem sei
que as bananas serão outras, e que as vendedeiras serão outras, e que os
jornais terão, a quem se baixar para vê-los, uma data que não é a de hoje. Mas
eles, porque não vivem, duram ainda que outros; eu, porque vivo, passo ainda
que o mesmo.
Esta hora poderia eu bem solenizá-la comprando bananas, pois me parece
que nestas se projetou todo o sol do dia como um holofote sem máquina. Mas
tenho vergonha dos rituais, dos símbolos, de comprar coisas na rua. Podiam
não me embrulhar bem as bananas, não mas vender como devem ser vendidas
por eu as não saber comprar como devem ser compradas. Podiam estranhar a
minha voz ao perguntar o preço. Mais vale escrever do que ousar viver, ainda
que viver não seja mais que comprar bananas ao sol, enquanto o sol dura e há
bananas que vender.
Mais tarde, talvez... Sim, mais tarde... Um outro, talvez... Não sei...
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y en ese vuelo y en ese sueño
compartir contigo sol y luna,
siendo guardián en tu cielo
y tren de tus ilusiones."
(Hánjel)
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171.
Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos
homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.
A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou
almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura
do cozinheiro, e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve,
como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as destes homens?
Há quarenta anos que aquela figura de homem vive quase todo o dia numa
cozinha; tem umas breves folgas; dorme relativamente poucas horas; vai de
vez em quando à terra, de onde volta sem hesitação e sem pena; armazena
lentamente dinheiro lento, que se não propõe gastar; adoeceria se tivesse que
retirar-se da sua cozinha (definitivamente) para os campos que comprou na
Galiza; está em Lisboa há quarenta anos e nunca foi sequer à Rotunda, nem a
um teatro, e há um só dia de Coliseu — palhaços nos vestígios interiores da
sua vida. Casou não sei como nem porquê, tem quatro filhos e uma filha, e o
seu sorriso, ao debruçar-se de lá do balcão em direção a onde eu estou,
exprime uma grande, uma solene, uma contente felicidade. E ele não disfarça,
nem há razão para que disfarce. Se a sente é porque verdadeiramente a tem.
E o criado velho que me serve, e que acaba de depor ante mim o que deve
ser o milionésimo café da sua deposição de café em mesas? Tem a mesma
vida que a do cozinheiro, apenas com a diferença de quatro ou cinco metros
— os que distam da localização de um na cozinha para a localização do outro
na parte de fora da casa de pasto. No resto, tem dois filhos apenas, vai mais
vezes à Galiza, já viu mais Lisboa que o outro, e conhece o Porto, onde esteve
quatro anos, e é igualmente feliz.
Revejo, com um pasmo assustado, o panorama destas vidas, e descubro, ao
ir ter horror, pena, revolta delas, que quem não tem nem horror, nem pena,
nem revolta, são os próprios que teriam direito a tê-las, são os mesmos que
vivem essas vidas. É o erro central da imaginação literária: supor que os
outros são nós e que devem sentir como nós. Mas, felizmente para a
humanidade, cada homem é só quem é, sendo dado ao génio, apenas, o ser
mais alguns outros.
Tudo, afinal, é dado em relação àquilo em que é dado. Um pequeno
incidente de rua, que chama à porta o cozinheiro desta casa, entretém-no mais
que me entretém a mim a contemplação da ideia mais original, a leitura do
melhor livro, o mais grato dos sonhos inúteis. E, se a vida é essencialmente
monotonia, o facto é que ele escapou à monotonia mais do que eu. E escapa à
monotonia mais facilmente do que eu. A verdade não está com ele nem
comigo, porque não está com ninguém; mas a felicidade está com ele deveras.
Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente
tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para
além do terceiro leão. Para o meu cozinheiro monótono uma cena de
bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto.
Quem
nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a
Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a terra não
encontra de cinco mil milhas em diante novidade, porque encontra só coisas
novas; outra vez a novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito
abstrato de novidade ficou no mar com a segunda delas.
Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gozar o espetáculo
inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com
o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.
Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino
o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distração. No meio do
meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga,
vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras
eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu. Mas reconheço, entre
dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada disso seria meu. Mais vale, na
verdade, o patrão Vasques que os Reis de Sonho; mais vale, na verdade, o
escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques
impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar o sonho dos Reis de
Sonho; tendo o escritório da Rua dos Douradores, posso gozar a visão
interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis de Sonho, que
me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de
impossível?
A monotonia, a igualdade baça dos dias mesmos, a nenhuma diferença de
hoje para ontem — isto me fique sempre, com a alma desperta para gozar da
mosca que me distrai, passando casual ante meus olhos, da gargalhada que se
ergue volúvel da rua incerta, a vasta libertação de serem horas de fechar o
escritório, o repouso infinito de um dia feriado.
Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não
poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador
romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está
privado de ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não
o deixa sentir.
_________________
"Ser como un verso volando
o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
compartir contigo sol y luna,
siendo guardián en tu cielo
y tren de tus ilusiones."
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172.
A ladeira leva ao moinho, mas o esforço não leva a nada.
Era uma tarde de primeiro outono, quando o céu tem um calor frio morto,
e há nuvens que abafam a luz em cobertores de lentidão.
Duas coisas só me deu o Destino : uns livros de contabilidade e o dom de
sonhar
_________________
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y en ese vuelo y en ese sueño
compartir contigo sol y luna,
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173.
O sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. Assim se
insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova
sem se querer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate —
mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar
do seu veneno, que é ela mesma.
Como um espetáculo na bruma aprendi nos sonhos a coroar de imagens as
caras do quotidiano, a dizer o comum com estranheza, o simples com
derivação, a dourar, com um sol de artifício, os recantos e os móveis mortos e
a dar música, como para me embalar, quando as escrevo, às frases fluidas da
minha fixação.
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174.
Depois de uma noite mal dormida, toda a gente não gosta de nós. O sono
ido levou consigo qualquer coisa que nos tornava humanos. Há uma irritação
latente connosco, parece, no mesmo ar inorgânico que nos cerca. Somos nós,
afinal, que nos desapoiámos, e é entre nós e nós que se fere a diplomacia da
batalha surda.
Tenho hoje arrastado pela rua os pés e o grande cansaço. Tenho a alma
reduzida a uma meada atada, e o que sou e fui, que sou eu, esqueceu-se do seu
nome. Se tenho amanhã, não sei senão que não dormi, e a confusão de vários
intervalos põe grandes silêncios na minha fala interna.
Ah, grandes parques dos outros, jardins usuais para tantos, maravilhosas
áleas dos que nunca me conhecerão! Estagno entre vigílias, como quem nunca
ousou ser supérfluo, e o que medito estremunha-se como um sonho ao fim.
Sou uma casa viúva, claustral de si mesma, sombreada de espectros tímidos
e furtivos. Estou sempre no quarto ao lado, ou estão eles, e há grandes ruídos
de árvores no meu torno. Divago e encontro; encontro porque divago. Os
meus dias de criança vestidos vós mesmos de bibe!
E, no meio de tudo isto, vou pela rua fora, dorminhoco da minha
vagabundagem folha. Qualquer vento lento me varreu do solo, e erro, como
um fim de crepúsculo, entre os acontecimentos da paisagem. Pesam-me as
pálpebras nos pés arrastados. Quisera dormir porque ando. Tenho a boca
fechada como se fosse para os beiços se pegarem. Naufrago o meu
deambular.
Sim, não dormi, mas estou mais certo assim, quando nunca dormi nem
durmo. Sou eu verdadeiramente nesta eternidade casual e simbólica do estado
de meia-alma em que me iludo. Uma ou outra pessoa olha-me como se me
conhecesse e me estranhasse. Sinto que os olho também com órbitas sentidas
sob pálpebras que as roçam, e não quero saber de haver mundo.
Tenho sono, muito sono, todo o sono!
_________________
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o un ciego soñando
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175.
Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido
de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho
destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos,
não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na
ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em
plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego
político.
Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da
ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fundamentos da fé
cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a crítica
mitológica, reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um
amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura; e a sua crítica
científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades selvagens da
"ciência" primitiva dos evangelhos; ao mesmo tempo, a liberdade de
discussão, que pôs em praça todos os problemas metafísicos, arrastou com
eles os problemas religiosos onde fossem da metafísica.
Ébrias de uma coisa
incerta, a que chamaram "positividade", essas gerações criticaram toda a
moral, esquadrinharam todas as regras de viver, e, de tal choque de doutrinas,
só ficou a certeza de nenhuma, e a dor de não haver essa certeza. Uma
sociedade assim indisciplinada nos seus fundamentos culturais não podia,
evidentemente, ser senão vítima, na política, dessa indisciplina; e assim foi que
acordámos para um mundo ávido de novidades sociais, e com alegria ia à
conquista de uma liberdade que não sabia o que era, de um progresso que
nunca definira.
Mas o criticismo frustre dos nossos pais, se nos legou a impossibilidade de
ser cristão, não nos legou o contentamento com que a tivéssemos; se nos
legou a descrença nas fórmulas morais estabelecidas, não nos legou a
indiferença à moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto o
problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a como esse
problema se resolvesse. Os nossos pais destruíram contentemente, porque
viviam numa época que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquilo
mesmo que eles destruíam que dava força à sociedade para que pudessem
destruir sem sentir o edifício rachar-se. Nós herdámos a destruição e os seus
resultados.
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos
agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos
processos porque se conquista o internamento num manicómio: a
incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação.
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