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    FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

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    Mensaje por Maria Lua Lun 13 Jun 2022, 14:50

    117. 




    A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstrata das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos.


     Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se.


     A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar. 


    Mas não, a definição ainda é abstrata. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma. 


    Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade direta; os campos, as cidades, as ideias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. 


    As crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não "Tenho vontade de chorar", que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão isto: "Tenho vontade de lágrimas". 


    E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afetada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere resolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura líquida. "Tenho vontade de lágrimas"! 


    Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral. Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é homens e mulheres, amores supostos e vaidades factícias, subterfúgios da digestão e do esquecimento, gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 13 Jun 2022, 14:51

    118.


    Que me pesa que ninguém leia o que escrevo? Escrevo-o para me distrair de viver, e publico-o porque o jogo tem essa regra. Se amanhã se perdessem todos os meus escritos, teria pena, mas, creio bem, não com pena violenta e louca como seria de supor, pois que em tudo ia toda a minha vida. Não é outra, pois, que a mãe, morto o filho, meses depois estar aí? E é a mesma. 


    A grande terra que serve os mortos serviria, menos maternalmente, esses papéis. Tudo não importa e creio bem que houve quem visse a vida sem uma grande paciência para essa criança acordada e com grande desejo do sossego de quando ela, enfim, se tenha ido deitar.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 13 Jun 2022, 14:51

    119. 


    Foi sempre com desgosto que li no diário de Amiel as referências que lembram que ele publicou livros. A figura quebra-se ali. Se não fora isso, que grande! O diário de Amiel doeu-me sempre pela minha causa. Quando cheguei àquele ponto em que ele diz que sobre ele desceu o fruto do espírito como sendo "a consciência da consciência", senti uma referência direta à minha alma


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    Mensaje por Maria Lua Jue 16 Jun 2022, 17:43

    120. 


    Aquela malícia incerta e quase imponderável que alegra qualquer coração humano ante a dor dos outros, e o desconforto alheio, ponho-a eu no exame das minhas próprias dores, levo-a tão longe que nas ocasiões em que me sinto ridículo ou mesquinho, gozo-a como se fosse outro que o estivesse sendo. 


    Por uma estranha e fantástica transformação de sentimentos, acontece que não sinto essa alegria maldosa e humaníssima perante a dor e o ridículo alheio. Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dor, mas um desconforto estético e uma irritação sinuosa. 


    Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana ria à custa de outro, quando não tem direito de o fazer. 


    De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado. Mais terrível de que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros. 


    Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida. Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer para uma ação qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim consegue. 


    Hoje já não se mata, e ele apenas me pode incomodar; se isso acontecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver mais longe adentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o estado. Creio que a sorte soube providenciar. 


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    Mensaje por Maria Lua Jue 16 Jun 2022, 17:44

    121.


     Como todo o indivíduo de grande mobilidade mental, tenho um amor orgânico e fatal à fixação. 
    Abomino a vida nova e o lugar desconhecido. 


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    Mensaje por Maria Lua Jue 16 Jun 2022, 17:46

    122. 


    A ideia de viajar nauseia-me. Já vi tudo que nunca tinha visto. Já vi tudo que ainda não vi. O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir, sob a falsa diferença das coisas e das ideias, a perene identidade de tudo, a semelhança absoluta entre a mesquita, o templo e a igreja, a igualdade da cabana e do castelo, o mesmo corpo estrutural a ser rei vestido e selvagem nu, a eterna concordância da vida consigo mesma, a estagnação de tudo que vivo só de mexer-se está passando.


     Paisagens são repetições. Numa simples viagem de comboio divido-me inútil e angustiadamente entre a inatenção à paisagem e a inatenção ao livro que me entreteria se eu fosse outro. Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-ma. Só não há tédio nas paisagens que não existem, nos livros que nunca lerei. 


    A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste. Ah, viajem os que não existem! Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida. Mas aos que pensam e sentem, aos que estão despertos, a horrorosa histeria dos comboios, dos automóveis, dos navios não os deixa dormir nem acordar. 


    De qualquer viagem, ainda que pequena, regresso como de um sono cheio de sonhos — uma confusão tórpida, com as sensações coladas umas às outras, bêbado do que vi. Para o repouso falta-me a saúde da alma. Para o movimento falta-me qualquer coisa que há entre a alma e o corpo; negam-se-me, não os movimentos, mas o desejo de os ter. 


    Muita vez me tem sucedido querer atravessar o rio, estes dez minutos do Terreiro do Paço a Cacilhas. E quase sempre tive como que a timidez de tanta gente, de mim mesmo e do meu propósito. Uma ou outra vez tenho ido, sempre opresso, sempre pondo somente o pé em terra de quando estou de volta. 


    Quando se sente de mais, o Tejo é Atlântico sem número, e Cacilhas outro continente, ou até outro universo. 


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    Mensaje por Maria Lua Lun 20 Jun 2022, 09:35

    123. 




    A renúncia é a libertação. Não querer é poder. Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza da minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele. 


    Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver. Somos todos míopes, exceto para dentro. 


    Só o sonho vê com o olhar. No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas só — o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda a experiência humana — o céu vasto, com o dia e a noite que acontecem dele e nele; o correr dos rios — todos da mesma água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulamente extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo... 


    Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a linguagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem. Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes? Estas coisas são acidentes da superfície; podem sentir-se com o andar mas não com o sentir. 


    O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana, criando uma simplicidade social que é no seu modo uma nova nudez. 


    O que nas pronúncias locais é universal é o timbre caseiro das vozes de gente que vive espontânea, a diversidade dos seres juntos, a sucessão multicolor das maneiras, as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações. Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? 


    O universo não é meu: sou eu. 


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    Mensaje por Maria Lua Lun 20 Jun 2022, 09:37

    124. 




    (Chapter on Indifference or something like that) Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. Pedir mais é próprio das crianças. Conquistar mais é próprio dos loucos, porque toda a conquista é Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite, mas há três maneiras de o fazer, e a cada alma elevada compete escolher uma das maneiras.


     Pode viver-se a vida em extremo pela posse extrema dela, pela viagem Ulisseia através de todas as sensações vividas, através de todas as formas de energia exteriorizada. Raros, porém, são, em todas as épocas do mundo, os que podem fechar os olhos cheios do cansaço soma de todos os cansaços, os que possuíram tudo de todas as maneiras. 


    Raros podem assim exigir da vida, conseguindo-o, que ela se lhes entregue corpo e alma; sabendo não ser ciumentos dela por saber ter-lhe o amor inteiramente. Mas este deve ser, sem dúvida, o desejo de toda a alma elevada e forte. Quando essa alma, porém, verifica que lhe é impossível tal realização, que não tem forças para a conquista de todas as partes do Todo, tem dois outros caminhos que siga — um, a abdicação inteira, a abstenção formal, completa, relegando para a esfera da sensibilidade aquilo que não pode possuir integralmente na região da atividade e da energia.


    Mais vale supremamente não agir que agir inutilmente, fragmentariamente, imbastantemente, como a inúmera supérflua maioria inane dos homens; outro, o caminho do perfeito equilíbrio, a busca do Limite na Proporção Absoluta, por onde a ânsia de Extremo passa da vontade e da emoção para a Inteligência, sendo toda a ambição não de viver toda a vida, não de sentir toda a vida, mas de ordenar toda a vida, de a cumprir em Harmonia e Coordenação inteligente. 


    A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial. 


    Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver. 


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    Mensaje por Maria Lua Lun 20 Jun 2022, 09:39

    125. 




    Não fizeram, Senhor, as vossas naus viagem mais primeira que a que o meu pensamento, no desastre deste livro, conseguiu. Cabo não dobraram, nem Draia viram mais afastada, tanto da audácia dos audazes como da imaginação dos por ousar, igual aos cabos que dobrei com a minha meditação, e às praias a que, com o meu El, fiz aportar o meu esforço. 


    Por vosso início, Senhor, se descobriu o Mundo Real; pelo meu o Mundo Intelectual se descobrirá. Arcaram os vossos argonautas com monstros e medos. Também, na viagem do meu pensamento, tive monstros e medos com que arcar. No caminho para o abismo abstrato, que está no fundo das coisas, há horrores, que passar, que os homens do mundo não imaginam e medos que ter que a experiência humana não conhece; é mais humano talvez o cabo para o lugar indefinido do mar comum do que a senda abstrata para o vácuo do mundo. 


    Apartados do uso dos seus lares, êxuis do caminho das suas casas, viúvos para sempre da brandura de a vida ser a mesma, chegaram por fim os vossos emissários, vós já morto, ao extremo oceânico da Terra. Viram, no material, um novo céu e uma terra nova. Eu, longe dos caminhos de mim próprio, cego da visão da vida que amo, cheguei por fim, também, ao extremo vazio das coisas, à borda imponderável do limite dos entes, à porta sem lugar do abismo abstrato do Mundo. Entrei, senhor, essa Porta.


     Vaguei, senhor, por esse mar. Contemplei, senhor, esse invisível abismo. Ponho esta obra de Descoberta suprema na invocação do vosso nome português, criador de argonautas. 


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    Mensaje por Maria Lua Lun 20 Jun 2022, 19:17

    126.




     Tenho grandes estagnações. Não é que, como toda a gente, esteja dias sobre dias para responder num postal à carta urgente que me escreveram. Não é que, como ninguém, adie indefinidamente o fácil que me é útil, ou o útil que me é agradável. Há mais subtileza na minha desinteligência comigo. 


    Estagno na mesma alma. Dá-se em mim uma suspensão da vontade, da emoção, do pensamento, e esta suspensão dura magnos dias; só a vida vegetativa da alma — a palavra, o gesto, o hábito — me exprimem eu para os outros, e, através deles, para mim. Nesses períodos da sombra, sou incapaz de pensar, de sentir, de querer. Não sei escrever mais que algarismos, ou riscos. 


    Não sinto, e a morte de quem amasse far-me-ia a impressão de ter sido realizada numa língua estrangeira. Não posso; é como se dormisse e os meus gestos, as minhas palavras, os meus actos certos, não fossem mais que uma respiração periférica, instinto rítmico de um organismo qualquer. 


    Assim se passam dias sobre dias, nem sei dizer quanto da minha vida, se somasse, se não haveria passado assim. As vezes ocorre-me que, quando dispo esta paragem de mim, talvez não esteja na nudez que suponho, e haja ainda vestes impalpáveis a cobrir a eterna ausência da minha alma verdadeira; ocorre-me que pensar, sentir, querer também podem ser estagnações, perante um mais íntimo pensar, um sentir mais meu, uma vontade perdida algures no labirinto do que realmente sou. 


    Seja como for deixo que seja. E ao deus, ou aos deuses, que haja, largo da mão o que sou, conforme a sorte manda e o acaso faz, fiel a um compromisso esquecido


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    Mensaje por Maria Lua Lun 20 Jun 2022, 19:19

    127. 


    Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou forte, nem nobre, nem grande. Sofro e sonho. 
    Queixome porque sou fraco e, porque sou artista, entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor a minha ideia de os achar belos. Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos, o não ser doido para que pudesse afastar da alma de todos os que me cercam, E tomar o sonho por real, viver demasiado os sonhos deu-me este espinho à rosa falsa da minha sonhada vida: que nem os sonhos me agradam, porque lhes acho defeitos. 
    Nem com pintar esse vidro de sombras coloridas me oculto o rumor da vida alheia ao meu olhá-la, do outro lado. Ditosos os fazedores de sistemas pessimistas! Não só se amparam de ter feito qualquer coisa, como também se alegram do explicado, e se incluem na dor universal. Eu não me queixo pelo mundo. 
    Não protesto em nome do universo. Não sou pessimista. Sofro e queixo-me, mas não sei se o que há de mal é o sofrimento nem sei se é humano sofrer. Que me importa saber se isso é certo ou não? Eu sofro, não sei se merecidamente. (Corça perseguida.) Eu não sou pessimista, sou triste


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    Mensaje por Maria Lua Lun 20 Jun 2022, 19:20

    128.


     Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituirse. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade. 


    Nada poderia indignar-me tanto como se no escritório me estranhassem. Quero gozar comigo a ironia de me não estranharem. Quero o cilício de me julgarem igual a eles. 


    Quero a crucifixão de me não distinguirem. Há martírios mais subtis que aqueles que se registam dos santos e dos eremitas. Há suplícios da inteligência como os há do corpo e do desejo. 


    E desses, como dos outros, suplícios há uma volúpia.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 20 Jun 2022, 19:21

    129. 


    O moço atava os embrulhos de todos os dias no frio crepuscular do escritório vasto. "Que grande trovão", disse para ninguém, com um tom alto de "bons dias", o crudelíssimo bandido. O meu coração começou a bater de novo. O apocalipse tinha passado. Fez-se uma pausa. E com que alívio — luz forte e clara, espaço, trovão duro — este troar próximo já afastado nos aliviava do que houvera. 


    Deus cessara. Senti-me respirar com os pulmões inteiros. Reparei que estava pouco ar no escritório. Notei que havia ali outra gente, sem ser o moço. Todos tinham estado calados. Soou uma coisa trémula e crespa: era a grande folha espessa do Razão que o Moreira virara para diante, bruscamente, para verificar. 


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    Mensaje por Maria Lua Lun 27 Jun 2022, 22:34

    130. 




    Penso, muitas vezes, em como eu seria se, resguardado do vento da sorte pelo biombo da riqueza, nunca houvesse sido trazido, pela mão moral do meu tio, para um escritório de Lisboa, nem houvesse ascendido dele para outros, até este píncaro barato de bom ajudante de guarda-livros, com um trabalho como uma certa sesta e um ordenado que dá para estar a viver.


     Sei bem que, se esse passado que não foi tivesse sido, eu não seria hoje capaz de escrever estas páginas, em todo o caso melhores, por algumas, do que as nenhumas que em melhores circunstâncias não teria feito mais que sonhar. É que a banalidade é uma inteligência e a realidade, sobretudo se é estúpida ou áspera, um complemento natural da alma. Devo ao ser guarda-livros grande parte do que posso sentir e pensar como a negação e a fuga do cargo. 


    Se houvesse de inscrever, no lugar sem letras de resposta a um questionário, a que influências literárias estava grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde, mas não o fecharia sem nele inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, do Vieira caixeiro de praça e do António moço do escritório. E a todos poria, em letras magnas, o endereço chave LISBOA. 


    Vendo bem, tanto o Cesário Verde como estes foram para a minha visão do mundo coeficientes de correção. Creio que é esta a frase, cujo sentido exato evidentemente ignoro, com que os engenheiros designam o tratamento que se faz à matemática para ela poder andar até à vida. Se é, foi isso mesmo. 


    Se não é, passe por o que poderia ser, e a intenção valha pela metáfora que falhou. Considerando, aliás, e com a clareza que posso, o que tem sido aparentemente a minha vida, vejo-a como uma coisa colorida — capa de chocolate ou anilha de charuto — varrida, pela escova leve da criada que escuta de cima, da toalha a levantar para a pá de lixo das migalhas, entre as côdeas da realidade propriamente dita. 


    Destaca-se das coisas cujo destino é igual por um privilégio que vai ter à pá também. E a conversa dos deuses continua por cima do escovar, indiferente a esses incidentes do serviço do mundo. Sim, se eu tivesse sido rico, resguardado, escovado, ornamental, não teria sido nem esse breve episódio de papel bonito entre migalhas; teria ficado num prato da sorte — "não, muito obrigado" — e recolheria ao aparador para envelhecer. Assim, rejeitado depois de me comerem o miolo prático, vou com o pó do que resta do corpo de Cristo para o caixote do lixo, e nem imagino o que se segue, e entre que astros; mas sempre é seguir.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Lun 27 Jun 2022, 22:36

    131.


     Não tendo que fazer, nem que pensar em fazer, vou pôr neste papel a descrição do meu ideal — Apontamento A sensibilidade de Mallarmé dentro do estilo de Vieira; sonhar como Verlaine no corpo de Horácio; ser Homero ao luar. 


    Sentir tudo de todas as maneiras; saber pensar com as emoções e sentir com o pensamento; não desejar muito senão com a imaginação; sofrer com coquetterie; ver claro para escrever justo; conhecer-se com fingimento e tática, naturalizar-se diferente e com todos os documentos; em suma, usar por dentro todas as sensações, descascando-as até Deus; mas embrulhar de novo e repor na montra como aquele caixeiro que daqui estou vendo com as latas pequenas da graxa da nova marca. 


    Todos estes ideais, possíveis ou impossíveis, acabam agora. Tenho a realidade diante de mim — não é sequer o caixeiro, é a mão dele (a ele não vejo), tentáculo absurdo de uma alma com família e sorte, que faz trejeitos de aranha sem teia nó esticar-se da reposição cá à frente. 


    E uma das latas caiu, como o Destino de toda a gente


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    Mensaje por Maria Lua Lun 27 Jun 2022, 22:37

    132.




     Quanto mais contemplo o espetáculo do mundo, e o fluxo e refluxo da mutação das coisas, mais profundamente me compenetro da ficção ingénita de tudo, do prestígio falso da pompa de todas as realidades. 


    E nesta contemplação, que a todos, que refletem, uma ou outra vez terá sucedido, a marcha multicolor dos costumes e das modas, o caminho complexo dos progressos e das civilizações, a confusão grandiosa dos impérios e das culturas — tudo isso me aparece como um mito e uma ficção, sonhado entre sombras e esquecimentos. 


    Mas não sei se a definição suprema de todos esses propósitos mortos, até quando conseguidos, deve estar na abdicação extática do Buda, que, ao compreender a vacuidade das coisas, se ergueu do seu êxtase dizendo "Já sei tudo", ou na indiferença demasiado experiente do imperador Severo: "omnia fui, nihil expedit — fui tudo, nada vale a pena."


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    Mensaje por Maria Lua Lun 27 Jun 2022, 22:40

    133




    O mundo, monturo de forças instintivas, que em todo o caso brilha ao sol com tons palhetados de ouro claro e escuro. Para mim, se considero, pestes, tormentas, guerras, são produtos da mesma força cega, operando uma vez através de micróbios inconscientes, outra vez através de raios e águas inconscientes, outra vez através de homens inconscientes. 


    Um terramoto e um massacre não têm para mim diferença senão a que há entre assassinar com uma faca e assassinar com um punhal. O monstro imanente nas coisas tanto se serve — para o seu bem ou o seu mal, que, ao que parece, lhe são indiferentes – da deslocação de um pedregulho na altura ou da deslocação do ciúme ou da cobiça num coração. 


    O pedregulho cai, e mata um homem; a cobiça ou o ciúme armam um braço, e o braço mata um homem. Assim é o mundo, monturo de forças instintivas, que todavia brilha ao sol com tons palhetados de ouro claro e escuro. Para fazer face à brutalidade de indiferença, que constitui o fundo visível das coisas, descobriram os místicos que o melhor era repudiar. 


    Negar o mundo, virar-se dele como de um pântano a cuja beira nos encontrássemos. Negar como o Buda, negando-lhe a realidade absoluta; negar como o Cristo, negando-lhe a realidade relativa; negar. Não pedi à vida mais do que ela me não exigisse nada. À porta da cabana que não tive sentei-me ao sol que nunca houve, e gozei a velhice futura da minha realidade cansada (com o prazer de a não ter ainda). 


    Não ter morrido ainda basta para os pobres da vida, e ter ainda a esperança para contente com o sonho só quando não estou sonhando, contente com o mundo só quando sonho longe dele. Pêndulo oscilante, sempre movendo-se para não chegar, indo só para voltar, preso eternamente à dupla fatalidade de um centro e de um movimento inútil. 


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    Mensaje por Maria Lua Lun 27 Jun 2022, 22:41

    134. 


    Busco-me e não me encontro. Pertenço a horas crisântemos, nítidas em alongamentos de jarros. Devo fazer da minha alma uma coisa decorativa. Não sei que detalhes demasiadamente pomposos e escolhidos definem o feitio do meu espírito. O meu amor ao ornamental é, sem dúvida, porque sinto nele qualquer coisa de idêntico à substância da minha alma.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 27 Jun 2022, 22:41

    135. 


    As coisas mais simples, mais realmente simples, que nada pode tornar semisimples, torna-mas complexas o eu vivê-las. Dar a alguém os bons-dias por vezes intimida-me. Seca-se-me a voz, como se houvesse uma audácia estranha em ter essas palavras em voz alta. É uma espécie de pudor de existir — não tem outro nome!


    A análise constante’ das nossas sensações cria um modo novo de sentir, que parece artificial a quem analise só com a inteligência, que não com a própria sensação. Toda a vida fui fútil metafisicamente, sério a brincar. Nada fiz a sério, por mais que quisesse. Divertiu-se em mim comigo um Destino malin. 


    Ter emoções de chita, ou de seda, ou de brocado! Ter emoções descritíveis assim! Ter emoções descritíveis! Sobe por mim na alma um arrependimento que é de Deus por tudo, uma paixão surda de lágrimas pela condenação dos sonhos na carne dos que os sonharam... 


    E odeio sem ódio todos os poetas que escreveram versos, todos os idealistas que fizeram ver o seu ideal, todos os que conseguiram o que queriam. Vagueio indefinidamente nas ruas sossegadas, ando até cansar o corpo em acordo com a alma, dói-me até aquele extremo da dor conhecida que tem um gozo em sentir-se, uma compaixão materna por si-mesma, que é musicada e indefinível. 


    Dormir! Adormecer! Sossegar! Ser uma consciência abstrata de respirar sossegadamente, sem mundo, sem astros, sem alma — mar morto de emoção refletindo uma ausência de estrelas!


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    Mensaje por Maria Lua Lun 04 Jul 2022, 13:31

    136. 






    O peso de sentir! O peso de ter que sentir!


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    Mensaje por Maria Lua Lun 04 Jul 2022, 13:32

    137. 






    A hiperacuidade não sei se das sensações, se da só expressão delas, ou se, mais propriamente, da inteligência que está entre umas e outra e forma do propósito de exprimir a emoção fictícia que existe só para ser expressa. (Talvez não seja mais em mim que a máquina de revelar quem não sou.)


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    Mensaje por Maria Lua Lun 04 Jul 2022, 13:32

    138. 




    Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da sensibilidade. 
    A erudição da sensibilidade nada tem a ver com a experiência da vida. A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a análise desse contacto. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar. Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. "Qualquer estrada", disse Carlylé, "até esta estrada de Entepfuhl, te leva até ao fim do mundo." Mas a estrada de Entepfuhl, se for seguida toda, e até ao fim, volta a Entepfuhl; de modo que o Entepfuhl, onde já estávamos, é aquele mesmo fim do mundo que íamos a buscar. Condillac começa o seu livro célebre, "Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações". Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava partida é a que percorro e é minha. Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar. Nos países que os outros visitam, visitam-nos anónimos e peregrinos. Nos países que tenho visitado, tenho sido, não só o prazer escondido do viajante incógnito, mas a majestade do Rei que ali reina, e o povo cujo uso ali habita, e a história inteira daquela nação e das outras. As mesmas paisagens, as mesmas casas eu as vi porque as fui, feitas em Deus com a substância da minha imaginação


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    Mensaje por Maria Lua Vie 08 Jul 2022, 15:40

    139. 




    Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no apodrecimento há fermentação. Há muito tempo que não só não escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. 


    Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me distrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho. Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. 


    Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num revérbero alto de fogo frio.


     À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave do fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com esta minha tristeza, se cruzou agora – visto com ouvido — o som súbito do elétrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva. Há muito tempo que não sou eu


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 24 Jul 2022, 14:57

    140.




     Acontece-me às vezes, e sempre que acontece é quase de repente, surgir-me no meio das sensações um cansaço tão terrível da vida que não há sequer hipótese de acto com que dominá-lo. Para o remediar o suicídio parece incerto, a morte, mesmo suposta a inconsciência, ainda pouco. É um cansaço que ambiciona, não o deixar de existir — o que pode ser ou pode não ser possível -, mas uma coisa muito mais horrorosa e profunda, o deixar de sequer ter existido, o que não há maneira de poder ser. 


    Creio entrever, por vezes, nas especulações, em geral confusas, dos índios, qualquer coisa desta ambição mais negativa do que o nada. Mas ou lhes falta a agudeza de sensação para relatar assim o que pensam, ou lhes falta a acuidade de pensamento para sentir assim o que sentem. O facto é que o que neles entrevejo não vejo. O facto é que me creio o primeiro a entregar a palavras o absurdo sinistro desta sensação sem remédio. 


    E curo-a com o escrevê-la. Sim, não há desolação, se é profunda deveras, desde que não seja puro sentimento, mas nela participe a inteligência, para que não haja o remédio irónico de a dizer. Quando a literatura não tivesse outra utilidade, esta, embora para poucos, teria. Os males da inteligência, infelizmente, doem menos que os do sentimento, e os do sentimento, infelizmente, menos que os do corpo. 


    Digo "infelizmente" porque a dignidade humana exigiria o avesso. Não há sensação angustiada do mistério que possa doer como o amor, o ciúme, a saudade, que possa sufocar como o medo físico intenso, que possa transformar como a cólera ou a ambição. Mas também nenhuma dor das que esfacelam a alma consegue ser tão realmente dor como a dor de dentes, ou a das cólicas, ou (suponho) a dor de parto.


     De tal modo somos constituídos que a inteligência que enobrece certas emoções ou sensações, e as eleva acima das outras, as deprime também se estende a sua análise à comparação entre todas. Escrevo como quem dorme, e toda a minha vida é um recibo por assinar. Dentro da capoeira de onde irá a matar, o galo canta hinos à liberdade porque lhe deram’ dois poleiros.


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    Mensaje por Maria Lua Dom 24 Jul 2022, 14:59

    141. 


    Paisagem de chuva 


    Em cada pingo de chuva a minha vida falhada chora na natureza. Há qualquer coisa do meu desassossego no gota a gota, na bátega a bátega com que a tristeza do dia se destorna inutilmente por sobre a terra. Chove tanto, tanto. A minha alma é húmida de ouvi-lo. Tanto... A minha carne é líquida e aquosa em torno à minha sensação dela. 


    Um frio desassossegado põe mãos gélidas em torno ao meu pobre coração. As horas cinzentas alongam-se, emplaniciam-se no tempo; os momentos arrastam-se. Como chove! As biqueiras golfam torrentes mínimas de águas sempre súbitas. Desce pelo meu saber que há canos um barulho perturbador de descida de água. Bate contra a vidraça, indolente, gemedoramente, a chuva; 


    Uma mão fria aperta-me a garganta e não me deixa respirar a vida. Tudo morre em mim, mesmo o saber que posso sonhar! De nenhum modo físico estou bem. Todas as maciezas em que me reclino têm arestas para a minha alma. Todos os olhares para onde olho estão tão escuros de lhes bater esta luz empobrecida do dia para se morrer sem dor


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    Mensaje por Maria Lua Dom 24 Jul 2022, 15:00

    142. 




    O que há de mais reles nos sonhos é que todos os têm. Em qualquer coisa pensa no escuro o moço de fretes que modorra de dia contra o candeeiro no intervalo dos carretos. Sei em que entrepensa: é no mesmo em que eu me abismo entre lançamento e lançamento no tédio estival do escritório quietíssimo.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 01 Ago 2022, 09:09

    143.




     Tenho mais pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho. Os que sonham grandemente, ou são doidos e acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples, para quem o devaneio é uma música da alma, que os embala sem lhes dizer nada. Mas o que sonha o possível tem a possibilidade real da verdadeira desilusão. Não me pode pesar muito o ter deixado de ser imperador romano, mas pode doer-me o nunca ter sequer falado à costureira que, cerca das nove horas, volta sempre a esquina da direita. 


    O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e delega nela a sua solução. Um vive exclusivo e independente; o outro submisso das contingências do que acontece. Por isso amo as paisagens impossíveis e as grandes áreas desertas dos piamos onde nunca estarei. As épocas históricas passadas são de pura maravilha, pois desde logo não posso supor que se realizarão comigo. 


    Durmo quando sonho o que não há; vou despertar quando sonho o que pode haver. Debruço-me, de uma das janelas de sacada do escritório abandonado ao meio-dia, sobre a rua onde a minha distração sente movimentos de gente nos olhos, e os não vê, da distância da meditação. Durmo sobre os cotovelos onde o corrimão me dói, e sei de nada com um grande prometimento. 


    Os pormenores da rua parada onde muitos andam destacam-se-me com um afastamento mental: os caixotes apinhados na carroça, os sacos à porta do armazém do outro, e, na montra mais afastada da mercearia da esquina, o vislumbre das garrafas daquele vinho do Porto que sonho que ninguém pode comprar. Isola-se-me o espírito de metade da matéria. Investigo com a imaginação. 


    A gente que passa na rua é sempre a mesma que passou há pouco, é sempre o aspeto flutuante de alguém, nódoas de movimento, vozes de incerteza, coisas que passam e não chegam a acontecer. Anotação com a consciência dos sentidos, antes que com os mesmos sentidos... A possibilidade de outras coisas... E, de repente, soa, de detrás de mim no escritório, a vinda metafisicamente abrupta do moço. 


    Sinto que o poderia matar por me interromper o que eu não estava pensando. Olho-o, voltando-me, com um silêncio cheio de ódio, escuto antecipadamente, numa tensão de homicídio latente, a voz que ele vai usar para me dizer qualquer coisa. Ele sorri do fundo da casa e dá-me as boastardes em voz alta. Odeio-o como ao universo. Tenho os olhos pesados de supor. 


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Lun 01 Ago 2022, 09:11

    144. 




    Depois dos dias todos de chuva, de novo o céu traz o azul, que escondera, aos grandes espaços do alto. Entre as ruas, onde as poças dormem como charcos do campo, e a alegria clara que esfria no alto, há um contraste que torna agradáveis as ruas sujas e primaveril o céu de inverno baço. É domingo e não tenho que fazer. Nem sonhar me apetece, de tão bem que está o dia. Gozo-o com uma sinceridade de sentidos a que a inteligência se abandona. 


    Passeio como um caixeiro liberto. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me sentir rejuvenescer. Na grande praça dominical há um movimento solene de outra espécie de dia. Em São Domingos há a saída de uma missa, e vai começar outra. Vejo uns que saem e os que ainda não entraram, esperando por alguns que não estão vendo quem sai. Todas estas coisas não têm importância. São, como tudo no comum da vida, um sono dos mistérios e das ameias, e eu olho, como um arauto chegado, a planície da minha meditação. 


    Outrora, criança, eu ia a esta mesma missa, ou porventura à outra, mas devia ser a esta. Punha, com a devida consciência, o meu único fato melhor, e gozava tudo — até o que não tinha razão de gozar. Vivia por fora e o fato era limpo e novo. Que mais quer quem tem que morrer e o não sabe pela mão da mãe? Outrora gozava tudo isto, por isso é só agora, talvez, que compreendo quanto o gozava. 


    Entrava para a missa como para um grande mistério, e saía da missa como para uma clareira. E assim é que verdadeiramente era, e ainda verdadeiramente é. Só o ser que não crê e é adulto, com alma que recorda e chora, são a ficção e o transtorno, o desalinho e a lajem fria. Sim, o que eu sou fora insuportável, se eu não pudesse lembrar-me do que fui. 


    E esta multidão alheia que continua ainda a sair da missa, e o princípio da multidão possível que começa a chegar para entrar para a outra — tudo isto são como barcos que passam por mim, rio lento, sob as janelas abertas do meu lar erguido sobre a margem. Memórias, domingos, missas, prazer de haver sido, milagre do tempo que ficou por ter passado, e não esquece nunca porque foi meu... 


    Diagonal absurda das sensações normais, som súbito de carruagem de praça que soa rodas no fundo dos silêncios ruidosos dos automóveis, e de qualquer modo, por um paradoxo maternal do tempo, subsiste hoje, aqui mesmo, entre o que sou e o que perdi, no antero olhar de mim que sou eu...


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Lun 01 Ago 2022, 09:12

    145. 




    Quanto mais alto o homem, de mais coisas tem que se privar. No píncaro não há lugar senão para o homem só. Quanto mais perfeito, mais completo; e quanto mais completo, menos outrem. Estas considerações vieram ter comigo depois de ler num jornal a notícia da grande vida múltipla de um homem célebre. Era um milionário americano, e tinha sido tudo. 


    Tivera quanto ambicionara — dinheiro, amores, afetos, dedicações, viagens, coleções. Não é que o dinheiro possa tudo, mas o grande magnetismo, com que se obtém muito dinheiro, pode, efetivamente, quase tudo. Quando depunha o jornal sobre a mesa do café, já refletia que o mesmo, na sua esfera, poderia dizer o caixeiro de praça, mais ou menos meu conhecido, que todos os dias almoça, como hoje está almoçando, na mesa ao fundo do canto. 


    Tudo quanto o milionário teve, este homem teve; em menor grau, e certo, mas para a sua estatura. Os dois homens conseguiram o mesmo, nem há diferença de celebridade, porque aí também a diferença de ambientes estabelece a identidade. Não há ninguém no mundo que não conhecesse o nome do milionário americano; mas não há ninguém na praça de Lisboa que não conheça o nome do homem que está ali almoçando. 


    Estes homens, afinal, obtiveram tudo quanto a mão pode atingir, estendendo o braço. Variava neles o comprimento do braço; no resto eram iguais. Não consegui nunca ter inveja desta espécie de gente. Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde se não está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo, em conseguir, enfim, qualquer coisa de difícil’, de absurdo, em vencer, como obstáculos, a própria realidade do mundo. 


    Se me disserem que é nulo o prazer de durar depois de não existir, responderei, primeiro, que não sei se o é ou não, pois não sei a verdade sobre a sobrevivência humana; responderei, depois, que o prazer da fama futura é um prazer presente — a fama é que é futura. E é um prazer de orgulho igual a nenhum que qualquer posse material consiga dar. Pode ser, de facto, ilusório, mas seja o que for, é mais largo do que o prazer de gozar só o que está aqui. 


    O milionário americano não pode crer que a posteridade aprecie os seus poemas, visto que não escreveu nenhuns; o caixeiro de praça não pode supor que o futuro se deleite nos seus quadros, visto que nenhuns pintou. Eu, porém, que na vida transitória não sou nada, posso gozar a visão do futuro a ler esta página, pois efetivamente a escrevo; posso orgulhar-me, como d


    e um filho, da fama que terei, porque, ao menos, tenho com que a ter. E quando penso isto, erguendo-me da mesa, é com uma íntima majestade que a minha estatura invisível se ergue acima de Detroit, Michigan, e de toda a praça de Lisboa. Reparo, porém, que não foi com estas reflexões que comecei a refletir. 


    O que pensei logo foi no pouco que tem que ser na vida quem tem que sobreviver. Tanto faz uma reflexão como a outra, pois são a mesma. A glória não é uma medalha, mas uma moeda: de um lado tem a Figura, do outro uma indicação de valor. Para os valores maiores não há moeda: são de papel e esse valor é sempre pouco. Com estas psicologias metafísicas se consolam os humildes como eu.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 01 Ago 2022, 09:13

    146. 




    Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também


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