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FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
BERNARDO SOARES
(FERNANDO PESSOA)
PREFÁCIO
Há em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou casas de pasto em que, sobre uma loja com feitio de taberna decente, se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida.
O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram-me, num período da minha vida, a ser frequente num a sobreloja dessas. Sucedia que, quando calhava jantar pelas sete horas, quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspeto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessarme. Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado.
Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava — parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito. Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça. Reparava extraordinariamente para as pessoas que estavam, não suspeitosamente, mas com um interesse especial; mas não as observava como que perscrutando-as, mas como que interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio.
Foi esse traço curioso que primeiro me deu interesse por ele. Passei a vê-lo melhor. Verifiquei que um certo ar de inteligência animava de certo modo incerto as suas feições. Mas o abatimento, a estagnação da angústia fria, cobria tão regularmente o seu aspeto que era difícil descortinar outro traço além desse.
Soube incidentalmente, por um criado do restaurante, que era empregado de comércio, numa casa ali perto. Um dia houve um acontecimento na rua, por baixo das janelas — uma cena de pugilato entre dois indivíduos, Os que estavam na sobreloja correram às janelas, e eu também, e também o indivíduo de quem falo. Troquei com ele uma frase casual, e ele respondeu no mesmo tom. A sua voz era baça e trémula, como a das criaturas que não esperam nada, porque é perfeitamente inútil esperar. Mas era porventura absurdo dar esse relevo ao meu colega vespertino de restaurante. Não sei porquê, passámos a cumprimentarmo-nos desde esse dia.
Um dia qualquer, que nos aproximara talvez a circunstância absurda de coincidir virmos ambos jantar às nove e meia, entrámos num a conversa casual. A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia. Respondi que sim. Falei-lhe da revista Orpheu, que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a, elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem em Orpheu sói ser para poucos.
Ele disse-me que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler livros, soía gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também.
***
Ele mobilara — é impossível que não fosse à custa de algumas coisas essenciais — com um certo e aproximado luxo os seus dois quartos. Cuidara especialmente das cadeiras — de braços, fundas, moles -, dos reposteiros e dos tapetes. Dizia ele que assim se criara um interior "para manter a dignidade do tédio". No quarto à moderna o tédio torna-se desconforto, mágoa física. Nada o obrigara nunca a fazer nada. Em criança passara isoladamente. Aconteceu que nunca passou por nenhum agrupamento. Nunca frequentara um curso. Não pertencera nunca a uma multidão.
Dera-se com ele o curioso fenómeno que com tantos — quem sabe, vendo bem, se com todos? — se dá, as circunstâncias ocasionais da sua vida se terem talhado à imagem e semelhança da direção dos seus instintos, de inércia todos, e de afastamento. Nunca teve de se defrontar com as exigências do estado ou da sociedade. Às próprias exigências dos seus instintos ele se furtou. Nada o aproximou nunca nem de amigos nem de amantes.
Fui o único que, de alguma maneira, estive na intimidade dele. Mas — apesar de ter vivido sempre com uma falsa personalidade sua, e de suspeitar que nunca ele me teve realmente por amigo — percebi sempre que ele alguém havia de chamar a si para lhe deixar o livro que deixou. Agrada-me pensar que, ainda que ao princípio isto me doesse, quando o notei, por fim vendo tudo através do único critério digno de um psicólogo, fiquei’ do mesmo modo amigo dele e dedicado ao fim para que ele me aproximou de si — a publicação deste seu livro.
Até nisto — é curioso descobri-lo — as circunstâncias, pondo ante ele quem, do meu carácter, lhe pudesse servir, lhe foram favoráveis. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer. Fernando Pessoa.
_________________
"Ser como un verso volando
o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
compartir contigo sol y luna,
siendo guardián en tu cielo
y tren de tus ilusiones."
(Hánjel)
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LIBRO DEL DESASOSIEGO
BERNARDO SOARES
(FERNANDO PESSOA)
1 PREFACIO
Hay en Lisboa unos pocos restaurantes o casas de comidas en los que, encima de una tienda con hechuras de taberna decente, se alza un entresuelo que tiene el aspecto casero y pesado de un restaurante de ciudad pequeña sin tren. En esos entresuelos poco visitados, excepto los domingos, es frecuente encontrar tipos curiosos, caras sin interés, una serie de apartes en la vida.
El deseo de sosiego y la conveniencia de los precios me han llevado, durante un período de mi vida, a ser parroquiano de uno de esos entresuelos. Sucedía que, cuando tenía que cenar a las siete, casi siempre encontraba a un individuo cuyo aspecto, que al principio no me interesó, empezó a interesarme poco a poco. Era un hombre que aparentaba unos treinta años, magro, más alto que bajo, encorvado exageradamente cuando estaba sentado, pero menos cuando estaba de pie, vestido con cierto descuido no totalmente descuidado.
A la cara pálida y sin facciones interesantes, un aire de sufrimiento no le añadía interés, y era difícil definir qué especie de sufrimiento indicaba aquel aire; parecía indicar varios: privaciones, angustias y ese sufrimiento que nace de la indiferencia de haber sufrido mucho. Cenaba siempre poco, y terminaba fumando tabaco de hebra. Observaba de manera extraordinaria a las personas que había allí, no de modo sospechoso, sino con un interés especial; pero no las observaba como escrutándolas, sino como si le interesasen y no quisiera fijarse en sus facciones o analizar las manifestaciones de su carácter. Fue este rasgo curioso el que primero hizo que me interesase por él.
Pasé a verle mejor. Me di cuenta de que un aire inteligente animaba de cierto modo incierto sus facciones. Pero el abatimiento, la inercia de la angustia fría, ocultaba tan regularmente su aspecto que era difícil entrever, además de éste, cualquier otro rasgo. Supe incidentalmente, por un camarero del restaurante, que era un empleado comercial, de una firma de allí cerca. Un día sucedió algo en la calle, por debajo de las ventanas: una escena de pugilato entre dos individuos. Los que estaban en el entresuelo corrieron hacia las ventanas, y yo también, y también el individuo del que estoy hablando.
Cambié con él una frase casual, y me respondió en el mismo tono. Su voz era empañada y trémula, como la de las criaturas que no esperan nada, porque es perfectamente inútil esperar. Pero resultaba, por ventura, absurdo conceder esa importancia a mi compañero vespertino de restaurante. No sé por qué, empezamos a saludarnos desde aquel día.
Un día cualquiera, en el que tal vez nos aproximó la circunstancia absurda de coincidir el que ambos fuésemos a cenar a las nueve y media, empezamos una conversación accidental. A cierta altura, me preguntó si escribía. Respondí que sí. Le hablé de la revista «Orpheu» , que había aparecido hacía poco. La elogió, la elogió mucho, y yo me quedé verdaderamente pasmado. Me permití hacerle la observación de que me extrañaba, porque el arte de los que escriben en «Orpheu» suele ser para pocos.
Por lo demás, añadió, aquel arte no le había ofrecido verdaderas novedades: y tímidamente observó que, no teniendo dónde ir ni qué hacer, ni amigos a los que visitar, ni interés en leer libros, solía gastar sus noches, en su cuarto alquilado, escribiendo también .
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1º PARTE
DIÁRIO DE BERNARDO SOARES
Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa
1.
Nasci num tempo em que a maioria dos jovens tinham perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a tinham tido — sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus.
Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade.
Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal.
Este culto da Humanidade, com os seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais. Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência.
A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia. A quem, como eu, assim, vivendo não sabe ter vida, que resta senão, como aos meus poucos pares, a renúncia por modo e a contemplação por destino?
Não sabendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabê-lo, porque se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na abstração do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós, ficavanos, como motivo de ter alma, a contemplação estética da vida. E, assim, alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo subtilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.
Retendo, da ciência, somente aquele seu preceito central, de que tudo é sujeito às leis fatais, contra as quais se não reage independentemente, porque reagir é elas terem feito que reagíssemos; e verificando como esse preceito se ajusta ao outro, mais antigo, da divina fatalidade das coisas, abdicamos do esforço como os débeis do entretimento dos atletas, e curvamo-nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida.
Não tomando nada a sério, nem considerando que nos fosse dada, por certa, outra realidade que não as nossas sensações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos. E, se nos empregamos assiduamente, não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura.
Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita, e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda. E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o converter na nossa íntima substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas alheias, que podemos gozar como se viessem na tarde.
Não é este o conceito dos pessimistas, como aquele de Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde ele tecia palha para se distrair. Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incómodo. Não temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos. Produzimo-la, é certo, para nos distrair, porém não como o preso que tece a palha, para se distrair do Destino, senão da menina que borda almofadas, para se distrair, sem mais nada.
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim.
Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero. Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.
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o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
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2.
Tenho que escolher o que detesto — ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a ação, que a minha sensibilidade repugna; ou a ação, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu. Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei-- de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra.
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3.
Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos — tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto.
Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada.
Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que e a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstrato, para os homens e para as coisas — uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.
Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está no meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o elétrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador noturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer!
Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que são donos das lojas. Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta hora não são muito frequentes; esses são musicais.
No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação. Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu destino, alheio, até, ao destino próprio — inconsciência, carambas ao despropósito quando o acaso deita pedras, ecos de vozes incógnitas — salada coletiva da vida.
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5.
Tenho diante de mim as duas páginas grandes do livro pesado; ergo da sua inclinação na carteira velha, com os olhos cansados, uma alma mais cansada do que os olhos. Para além do nada que isto representa, o armazém, até à Rua dos Douradores, enfileira as prateleiras regulares, os empregados regulares, a ordem humana e o sossego do vulgar.
Na vidraça há o ruído do diverso, e o ruído diverso é vulgar, como o sossego que está ao pé das prateleiras. Baixo olhos novos sobre as duas páginas brancas, em que os meus números cuidadosos puseram resultados da sociedade.
E, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas páginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus traços a régua e de letra, inclui também os grandes navegadores, os grandes santos, os poetas de todas as eras, todos eles sem escrita, a vasta prole expulsa dos que fazem a valia do mundo.
No próprio registo de um tecido que não sei o que seja se me abrem as portas do Indo e de Samarcanda, e a poesia da Pérsia, que não é de um lugar nem de outro, faz das suas quadras, desrimadas no terceiro verso, um apoio longínquo para o meu desassossego. Mas não me engano, escrevo, somo, e a escrita segue, feita normalmente por um empregado deste escritório.
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6.
Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.
Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios.
Nestes momentos meu coração pulsa mais alto pela minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação contra mim desce-me da inteligência...
Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, assisto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que a expender estendo sobre o mataborrão velho. Aqui eu, neste quarto andar, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui, eu, assim!...
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7.
Hoje, num dos devaneios sem propósito nem dignidade que constituem grande parte da substância espiritual da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da Rua dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, dos empregados todos, do moço, do garoto e do gato. Senti em sonho a minha libertação, como se mares do Sul me houvessem oferecido ilhas maravilhosas por descobrir. Seria então o repouso, a arte conseguida, o cumprimento intelectual do meu ser.
Mas de repente, e no próprio imaginar, que fazia num café no feriado modesto do meio-dia, uma impressão de desagrado me assaltou o sonho: senti que teria pena. Sim, digo-o como se o dissesse circunstanciadamente: teria pena. O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato meigo — tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que, por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me deles era uma metade e semelhança da morte.
Aliás, se amanhã me apartasse deles todos, e despisse este trajo da Rua dos Douradores, a que outra coisa me chegaria — porque a outra me haveria de chegar?, de que outro trajo me vestiria — porque de outro me haveria de vestir? Todos temos o patrão Vasques, para uns visível, para outros invisível. Para mim chama-se realmente Vasques, e é um homem sadio, agradável, de vez em quando brusco mas sem lado de dentro, interesseiro mas no fundo justo, com uma justiça que falta a muitos grandes génios e a muitas maravilhas humanas da civilização, direita e esquerda. Para outros será a vaidade, a ânsia de maior riqueza, a glória, a imortalidade...
Prefiro o Vasques homem meu patrão, que é mais tratável, nas horas difíceis, que todos os patrões abstratos do mundo. Considerando que eu ganhava pouco, disse-me o outro dia um amigo, sócio de uma firma que é próspera por negócios com todo o Estado: "você é explorado, Soares". Recordou-me isso de que o sou; mas como na vida temos todos que ser explorados, pergunto se valerá menos a pena ser explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade, pela glória, pelo despeito, pela inveja ou pelo impossível. Há os que Deus mesmo explora, e são profetas e santos na vacuidade do mundo.
E recolho-me, como ao lar que os outros têm, à casa alheia, escritório amplo, da Rua dos Douradores. Achego-me à minha secretária como a um baluarte contra a vida. Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim.
Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar — ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspeto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas.
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8.
O patrão Vasques. Tenho, muitas vezes, inexplicavelmente, a hipnose do patrão Vasques. Que me é esse homem, salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas, num tempo diurno da minha vida? Trata-me bem, fala-me com amabilidade, salvo nos momentos bruscos de preocupação desconhecida em que não fala bem a alguém. Sim, mas porque me preocupa? É um símbolo? É uma razão? O que é? O patrão Vasques.
Lembro-me já dele no futuro com a saudade que sei que hei de ter então. Estarei sossegado numa casa pequena nos arredores de qualquer coisa, fruindo um sossego onde não farei a obra que não faço agora, e buscarei, para a continuar a não ter feito, desculpas diversas daquelas em que hoje me esquivo a mim.
Ou estarei internado num asilo de mendicidade, feliz da derrota inteira, misturado com a ralé dos que se julgaram génios e não foram mais que mendigos com sonhos, junto com a massa anónima dos que não tiveram poder para vencer nem renúncia larga para vencer do avesso. Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão Vasques, o escritório da Rua dos Douradores, e a monotonia da vida quotidiana será para mim como a recordação dos amores que me não foram advindos, ou dos triunfos que não haveriam de ser meus.
O patrão Vasques. Vejo de lá hoje, como o vejo hoje de aqui mesmo — estatura média, atarracado, grosseiro com limites e afeições, franco e astuto, brusco e afável — chefe, à parte o seu dinheiro, nas mãos cabeludas e lentas, com as veias marcadas como pequenos músculos coloridos, o pescoço cheio mas não gordo, as faces coradas e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita a horas.
Vejo-o, vejo os seus gestos de vagar enérgico, os seus olhos a pensar para dentro coisas de fora, recebo a perturbação da sua ocasião em que lhe não agrado, e a minha alma alegra-se com o seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o aplauso de uma multidão.
Será, talvez, porque não tenho próximo de mim figura de mais destaque do que o patrão Vasques, que, muitas vezes, essa figura comum e até ordinária se me emaranha na inteligência e me distrai de mim. Creio que há símbolo. Creio ou quase creio que algures, num a vida remota, este homem foi qualquer coisa na minha vida mais importante do que é hoje.
_________________
"Ser como un verso volando
o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
compartir contigo sol y luna,
siendo guardián en tu cielo
y tren de tus ilusiones."
(Hánjel)
o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
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siendo guardián en tu cielo
y tren de tus ilusiones."
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9.
Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora.
E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente.
Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução.
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10.
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende.
Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei.
Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o rosto muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados
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11.
Litania
Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos — um poço fitando o Céu
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12.
Invejo — mas não sei se invejo — aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.
Que há de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida.
A minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Trato só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço.
Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas... Intervalo... Nada...
De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a’ um filho vivo... Sim, croché..
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13.
A miséria da minha condição não é estorvada por estas palavras conjugadas, com que formo, pouco a pouco, o meu livro casual e meditado. Subsisto nulo no fundo de toda a expressão, como um pó indissolúvel no fundo do copo de onde se bebeu só água. Escrevo a minha literatura como escrevo os meus lançamentos — com cuidado e indiferença.
Ante o vasto céu estrelado e o enigma de muitas almas, a noite do abismo incógnito e o choro de nada se compreender — ante tudo isto o que escrevo no caixa auxiliar e o que escrevo neste papel da alma são coisas igualmente restritas à Rua dos Douradores, muito pouco aos grandes espaços milionários do universo. Tudo isto é sonho e fantasmagoria, e pouco vale que o sonho seja lançamentos como prosa de bom porte.
Que serve sonhar com princesas, mais que sonhar com a porta da entrada do escritório? Tudo que sabemos é uma impressão nossa, e tudo que somos é uma impressão alheia, melodrama de nós, que, sentindo-nos, nos constituímos nossos próprios espectadores ativos, nossos deuses por licença da Câmara
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14.
Saber que será má a obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada.
Essa planta é a alegria dela, e também por vezes a minha. O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distração de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou me não basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida.
Um tédio que inclui a antecipação só de mais tédio; a pena, já, de amanhã ter pena de ter tido pena hoje — grandes emaranhamentos sem utilidade nem verdade, grandes emaranhamentos... ... Onde, encolhido num banco de espera da estação apeadeiro, o meu desprezo dorme entre o gabão do meu desalento’... ...
O mundo de imagens sonhadas de que se compõe, por igual, o meu conhecimento e a minha vida... Em nada me pesa ou em mim dura o escrúpulo da hora presente. Tenho fome da extensão do tempo, e quero ser eu sem condições.
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15.
Conquistei, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu.
Reclamei, espaço a pequeno espaço, o pântano em que me quedara nulo.
Pari meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo.
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16.
Devaneio entre Cascais e Lisboa. Fui pagar a Cascais uma contribuição do
patrão Vasques, de uma casa que tem no Estoril. Gozei antecipadamente o
prazer de ir, uma hora para lá, uma hora para cá, vendo os aspetos sempre
vários do grande rio e da sua foz atlântica. Na verdade, ao ir, perdi-me em
meditações abstratas, vendo sem ver as paisagens aquáticas que me alegrava ir
ver, e ao voltar perdi-me na fixação destas sensações.
Não seria capaz de
descrever o mais pequeno pormenor da viagem, o mais pequeno trecho de
visível. Lucrei estas páginas, por olvido e contradição. Não sei se isso é melhor
ou pior do que o contrário, que também não sei o que é.
O comboio abranda, é o Cais do Sodré. Cheguei a Lisboa, mas não a uma
conclusão.
patrão Vasques, de uma casa que tem no Estoril. Gozei antecipadamente o
prazer de ir, uma hora para lá, uma hora para cá, vendo os aspetos sempre
vários do grande rio e da sua foz atlântica. Na verdade, ao ir, perdi-me em
meditações abstratas, vendo sem ver as paisagens aquáticas que me alegrava ir
ver, e ao voltar perdi-me na fixação destas sensações.
Não seria capaz de
descrever o mais pequeno pormenor da viagem, o mais pequeno trecho de
visível. Lucrei estas páginas, por olvido e contradição. Não sei se isso é melhor
ou pior do que o contrário, que também não sei o que é.
O comboio abranda, é o Cais do Sodré. Cheguei a Lisboa, mas não a uma
conclusão.
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17.
São horas talvez de eu fazer o único esforço de eu olhar para a minha vida.
Vejo-me no meio de um deserto imenso. Digo do que ontem literariamente
fui, procuro explicar a mim próprio como cheguei aqui.
Vejo-me no meio de um deserto imenso. Digo do que ontem literariamente
fui, procuro explicar a mim próprio como cheguei aqui.
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18.
Encaro serenamente, sem mais nada que o que na alma represente um
sorriso, o fechar-se-me sempre a vida nesta Rua dos Douradores, neste
escritório, nesta atmosfera desta gente. Ter o que me dê para comer e beber, e
onde habite, e o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever – dormir
— que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do Destino?
Tive grandes ambições e sonhos dilatados — mas esses também os teve o
moço de fretes ou a costureira, porque sonhos tem toda a gente: o que nos
diferença é a força de conseguir ou o destino de se conseguir connosco.
Em sonhos sou igual ao moço de fretes e à costureira. Só me distingue
deles o saber escrever. Sim, é um acto, uma realidade minha que me diferença
deles. Na alma sou seu igual.
Bem sei que há ilhas ao Sul e grandes paixões cosmopolitas, e se eu tivesse
o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para Rua dos
Douradores.
Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a
literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torne tanto mais
ridículo quanto maior for a sua própria beleza.
Terei saudades do Moreira, mas o que são saudades perante as grandes
ascensões?
Sei bem que o dia em que for guarda-livros da casa Vasques e C.ª será um
dos grandes dias da minha vida. Sei-o com uma antecipação amarga e irónica,
mas sei-o com a vantagem intelectual da certeza.
Encaro serenamente, sem mais nada que o que na alma represente um
sorriso, o fechar-se-me sempre a vida nesta Rua dos Douradores, neste
escritório, nesta atmosfera desta gente. Ter o que me dê para comer e beber, e
onde habite, e o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever – dormir
— que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do Destino?
Tive grandes ambições e sonhos dilatados — mas esses também os teve o
moço de fretes ou a costureira, porque sonhos tem toda a gente: o que nos
diferença é a força de conseguir ou o destino de se conseguir connosco.
Em sonhos sou igual ao moço de fretes e à costureira. Só me distingue
deles o saber escrever. Sim, é um acto, uma realidade minha que me diferença
deles. Na alma sou seu igual.
Bem sei que há ilhas ao Sul e grandes paixões cosmopolitas, e se eu tivesse
o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para Rua dos
Douradores.
Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a
literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torne tanto mais
ridículo quanto maior for a sua própria beleza.
Terei saudades do Moreira, mas o que são saudades perante as grandes
ascensões?
Sei bem que o dia em que for guarda-livros da casa Vasques e C.ª será um
dos grandes dias da minha vida. Sei-o com uma antecipação amarga e irónica,
mas sei-o com a vantagem intelectual da certeza.
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19.
No recôncavo da praia à beira-mar, entre as selvas e as várzeas da margem,
subia da incerteza do abismo nulo a inconstância do desejo aceso. Não haveria
que escolher entre os trigos e os muitos e a distância continuava entre
ciprestes.
O prestígio das palavras isoladas, ou reunidas segundo um acordo de som,
com ressonâncias íntimas e sentidos divergentes no mesmo tempo em que
convergem, a pompa das frases postas entre os sentidos das outras,
malignidade dos vestígios, esperança dos bosques, e nada mais que a
tranquilidade dos tanques entre as quintas da infância dos meus subterfúgios...
Assim, entre os muros altos da audácia absurda, nos renques das árvores e nos
sobressaltos do que se estiola, outro que não eu ouviria dos lábios tristes a
confissão negada a melhores insistências. Nunca, entre o tinir das lanças no
pátio por ver, nem que os cavaleiros viessem de volta da estrada vista desde o
alto do muro, haveria mais sossego no Solar dos Últimos, nem se lembraria
outro nome, do lado de cá da estrada, senão o que encantava de noite, com o
das mouras, a criança que morreu depois, da vida e da maravilha.
Leves, entre os sulcos que havia na erva, porque os passos abriam nadas
entre o verdor agitado, as passagens dos últimos perdidos soavam
arrastadamente, como reminiscências do vindouro. Eram velhos os que
haveriam de vir, e só novos os que não viriam nunca. Os tambores rolaram à
beira da estrada e os clarins pendiam nulos nas mãos lassas, que os deixariam
se ainda tivessem força para deixar qualquer coisa.
Mas, de novo, na consequência do prestígio, soavam altos os alaridos
findos, e os cães tergiversavam nas áleas vistas. Tudo era absurdo, como um
luto, e as princesas dos sonhos dos outros passeavam sem claustros
indefinidamente.
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20.
Várias vezes, no decurso da minha vida opressa por circunstâncias, me tem
sucedido, quando quero libertar-me de qualquer grupo delas, ver-me
subitamente cercado por outras da mesma ordem, como se houvesse
definidamente uma inimizade contra mim na teia incerta das coisas.
Arranco do pescoço uma mão que me sufoca. Vejo que na mão, com que a
essa arranquei, me veio preso um laço que me caiu no pescoço com o gesto de
libertação. Afasto, com cuidado, o laço, e é com as próprias mãos que me
quase estrangulo.
Várias vezes, no decurso da minha vida opressa por circunstâncias, me tem
sucedido, quando quero libertar-me de qualquer grupo delas, ver-me
subitamente cercado por outras da mesma ordem, como se houvesse
definidamente uma inimizade contra mim na teia incerta das coisas.
Arranco do pescoço uma mão que me sufoca. Vejo que na mão, com que a
essa arranquei, me veio preso um laço que me caiu no pescoço com o gesto de
libertação. Afasto, com cuidado, o laço, e é com as próprias mãos que me
quase estrangulo.
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21.
Haja ou não deuses, deles somos servos.
Haja ou não deuses, deles somos servos.
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22.
A minha imagem, tal qual eu a via nos espelhos, anda sempre ao colo da
minha alma. Eu não podia ser senão curvo e débil como sou, mesmo nos
meus pensamentos.
Tudo em mim é de um príncipe de cromo colado no álbum velho de uma
criancinha que morreu sempre há muito tempo.
Amar-me é ter pena de mim. Um dia, lá para o fim do futuro, alguém
escreverá sobre mim um poema, e talvez só então eu comece a reinar no meu
Reino.
Deus é o existirmos e isto não ser tudo.
A minha imagem, tal qual eu a via nos espelhos, anda sempre ao colo da
minha alma. Eu não podia ser senão curvo e débil como sou, mesmo nos
meus pensamentos.
Tudo em mim é de um príncipe de cromo colado no álbum velho de uma
criancinha que morreu sempre há muito tempo.
Amar-me é ter pena de mim. Um dia, lá para o fim do futuro, alguém
escreverá sobre mim um poema, e talvez só então eu comece a reinar no meu
Reino.
Deus é o existirmos e isto não ser tudo.
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23.
Absurdo
Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não
sabermos quem somos. Porque, de resto nós o que somos é esfinges falsas e
não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo
com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino.
Estabelecer teorias, pensando-as paciente e honestamente, só para depois
agirmos contra elas — agirmos e justificar as nossas ações com teorias que as
condenam. Talhar um caminho na vida, e em seguida agir contrariamente a
seguir por esse caminho. Ter todos os gestos e todas as atitudes de qualquer
coisa que nem somos, nem pretendemos ser, nem pretendemos ser tomados
como sendo.
Comprar livros para não os ler; ir a concertos nem para ouvir a música nem
para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar
dias no campo só porque o campo nos aborrece
Absurdo
Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não
sabermos quem somos. Porque, de resto nós o que somos é esfinges falsas e
não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo
com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino.
Estabelecer teorias, pensando-as paciente e honestamente, só para depois
agirmos contra elas — agirmos e justificar as nossas ações com teorias que as
condenam. Talhar um caminho na vida, e em seguida agir contrariamente a
seguir por esse caminho. Ter todos os gestos e todas as atitudes de qualquer
coisa que nem somos, nem pretendemos ser, nem pretendemos ser tomados
como sendo.
Comprar livros para não os ler; ir a concertos nem para ouvir a música nem
para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar
dias no campo só porque o campo nos aborrece
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24.
Hoje, como me oprimisse a sensação do corpo aquela angústia antiga que
por vezes extravasa, não comi bem, nem bebi o costume, no restaurante, ou
casa de pasto, em cuja sobreloja baseio a continuação da minha existência. E
como, ao sair eu, o criado verificasse que a garrafa de vinho ficara no meio
voltou-se para mim e disse: "Até logo, Sr. Soares, e desejo as melhoras."
Ao toque de clarim desta frase simples a minha alma aliviou-se como se
num céu de nuvens o vento de repente as afastasse. E então reconheci o que
nunca claramente reconhecera, que nestes criados de café e de restaurante,
nos barbeiros, nos moços de frete das esquinas, eu tenho uma simpatia
espontânea, natural, que não posso orgulhar-me de receber dos que privam
comigo em maior intimidade, impropriamente dita...
A fraternidade tem subtilezas.
Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um milionário
americano, com bens na Inglaterra, ou Suíça, e o chefe socialista da aldeia —
não há diferença de qualidade mas apenas de quantidade. Abaixo destes
estamos nós, os amorfos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o
mestre- escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes que me
fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta anedotas, o criado que acaba
de me fazer a fraternidade de me desejar aquelas melhoras, por eu não ter
bebido senão metade do vinho
Hoje, como me oprimisse a sensação do corpo aquela angústia antiga que
por vezes extravasa, não comi bem, nem bebi o costume, no restaurante, ou
casa de pasto, em cuja sobreloja baseio a continuação da minha existência. E
como, ao sair eu, o criado verificasse que a garrafa de vinho ficara no meio
voltou-se para mim e disse: "Até logo, Sr. Soares, e desejo as melhoras."
Ao toque de clarim desta frase simples a minha alma aliviou-se como se
num céu de nuvens o vento de repente as afastasse. E então reconheci o que
nunca claramente reconhecera, que nestes criados de café e de restaurante,
nos barbeiros, nos moços de frete das esquinas, eu tenho uma simpatia
espontânea, natural, que não posso orgulhar-me de receber dos que privam
comigo em maior intimidade, impropriamente dita...
A fraternidade tem subtilezas.
Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um milionário
americano, com bens na Inglaterra, ou Suíça, e o chefe socialista da aldeia —
não há diferença de qualidade mas apenas de quantidade. Abaixo destes
estamos nós, os amorfos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o
mestre- escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes que me
fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta anedotas, o criado que acaba
de me fazer a fraternidade de me desejar aquelas melhoras, por eu não ter
bebido senão metade do vinho
_________________
"Ser como un verso volando
o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
compartir contigo sol y luna,
siendo guardián en tu cielo
y tren de tus ilusiones."
(Hánjel)
o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
compartir contigo sol y luna,
siendo guardián en tu cielo
y tren de tus ilusiones."
(Hánjel)
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25.
É uma oleografia sem remédio. Fito-a sem saber se vejo. Na montra há
outras e aquela. Está ao centro da montra do vão de escada.
Ela aperta a primavera contra o seio e os olhos com que me fita são tristes.
Sorri com brilho do papel e as cores da sua face são encarnado, O céu por trás
dela é azul de fazenda clara. Tem uma boca recortada e quase pequena por
sobre cuja expressão postal os olhos me fitam sempre com uma grande pena.
O braço que segura as flores lembra-me o de alguém. O vestido ou blusa é
aberto num decote ladeado. Os olhos são realmente tristes: fitam-me do
fundo da realidade litográfica com uma verdade qualquer. Ela veio com a
primavera. Os seus olhos tristes são grandes, mas nem é por isso. Separo-me
de em frente da montra com uma grande violência sobre os pés. Atravesso a
rua e volto-me com uma revolta impotente. Ela segura ainda a primavera que
lhe deram e os seus olhos são tristes como o que eu não tenho na vida. Vista à
distância, a oleografia tem afinal mais cores. A figura tem uma fita de cor de
mais rosa contornando o alto do cabelo; não tinha reparado. Há em olhos
humanos, ainda que litográficos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da
consciência, o grito clandestino de haver alma. Com um grande esforço ergome do sono em que me molho e sacudo, como um cão, os húmidos da treva
de bruma. E por cima do meu desertar, numa despedida de outra coisa
qualquer, os olhos tristes da vida toda, desta oleografia metafísica que
contemplamos à distância, fitam-me como se eu soubesse de Deus. A gravura
tem um calendário na base. É emoldurada em cima e em baixo por duas
réguas pretas de um convexo chato mal pintado. Entre o alto e o baixo do seu
definitivo, por sobre 1929 com vinheta obsoletamente caligráfica cobrindo o
inevitável primeiro de Janeiro, os olhos tristes sorriem-me ironicamente.
É curioso de onde, afinal, eu conhecia a figura. No escritório há, no canto
do fundo, um calendário idêntico, que tenho visto muitas vezes.
Mas, por um mistério, ou oleográfico ou meu, a idêntica do escritório não
tem olhos com pena. É só uma oleografia. (É de papel que brilha e dorme por
cima da cabeça do Alves canhoto o seu viver de esbatimento.)
Quero sorrir de tudo isto, mas sinto um grande mal-estar. Sinto um frio de
doença súbita na alma. Não tenho força para me revoltar contra esse absurdo.
A que janela para que segredo de Deus me abeiraria eu sem querer? Para onde
dá a montra do vão de escada? Que olhos me fitavam na oleografia? Estou
quase a tremer. Ergo involuntariamente os olhos para o canto distante do
escritório onde a verdadeira oleografia está. Levo constantemente a erguer
para lá os olhos.
É uma oleografia sem remédio. Fito-a sem saber se vejo. Na montra há
outras e aquela. Está ao centro da montra do vão de escada.
Ela aperta a primavera contra o seio e os olhos com que me fita são tristes.
Sorri com brilho do papel e as cores da sua face são encarnado, O céu por trás
dela é azul de fazenda clara. Tem uma boca recortada e quase pequena por
sobre cuja expressão postal os olhos me fitam sempre com uma grande pena.
O braço que segura as flores lembra-me o de alguém. O vestido ou blusa é
aberto num decote ladeado. Os olhos são realmente tristes: fitam-me do
fundo da realidade litográfica com uma verdade qualquer. Ela veio com a
primavera. Os seus olhos tristes são grandes, mas nem é por isso. Separo-me
de em frente da montra com uma grande violência sobre os pés. Atravesso a
rua e volto-me com uma revolta impotente. Ela segura ainda a primavera que
lhe deram e os seus olhos são tristes como o que eu não tenho na vida. Vista à
distância, a oleografia tem afinal mais cores. A figura tem uma fita de cor de
mais rosa contornando o alto do cabelo; não tinha reparado. Há em olhos
humanos, ainda que litográficos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da
consciência, o grito clandestino de haver alma. Com um grande esforço ergome do sono em que me molho e sacudo, como um cão, os húmidos da treva
de bruma. E por cima do meu desertar, numa despedida de outra coisa
qualquer, os olhos tristes da vida toda, desta oleografia metafísica que
contemplamos à distância, fitam-me como se eu soubesse de Deus. A gravura
tem um calendário na base. É emoldurada em cima e em baixo por duas
réguas pretas de um convexo chato mal pintado. Entre o alto e o baixo do seu
definitivo, por sobre 1929 com vinheta obsoletamente caligráfica cobrindo o
inevitável primeiro de Janeiro, os olhos tristes sorriem-me ironicamente.
É curioso de onde, afinal, eu conhecia a figura. No escritório há, no canto
do fundo, um calendário idêntico, que tenho visto muitas vezes.
Mas, por um mistério, ou oleográfico ou meu, a idêntica do escritório não
tem olhos com pena. É só uma oleografia. (É de papel que brilha e dorme por
cima da cabeça do Alves canhoto o seu viver de esbatimento.)
Quero sorrir de tudo isto, mas sinto um grande mal-estar. Sinto um frio de
doença súbita na alma. Não tenho força para me revoltar contra esse absurdo.
A que janela para que segredo de Deus me abeiraria eu sem querer? Para onde
dá a montra do vão de escada? Que olhos me fitavam na oleografia? Estou
quase a tremer. Ergo involuntariamente os olhos para o canto distante do
escritório onde a verdadeira oleografia está. Levo constantemente a erguer
para lá os olhos.
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"Ser como un verso volando
o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
compartir contigo sol y luna,
siendo guardián en tu cielo
y tren de tus ilusiones."
(Hánjel)
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y en ese vuelo y en ese sueño
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26.
Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma.
Dobraram a curva do caminho e eram muitas raparigas. Vinham cantando
pela estrada, e o som das suas vozes era felizes . Elas não sei o que seriam.
Escutei-as um tempo de longe, sem sentimento próprio. Uma amargura por
elas sentiu-me no coração.
Pelo futuro delas? Pela inconsciência delas? Não diretamente por elas —
ou, quem sabe? Talvez apenas por mim.
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y en ese vuelo y en ese sueño
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27.
A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a
mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o
esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade
do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o
terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As
flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação,
terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.
Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o
não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar
que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia
está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo,
passa. Temos pois que conservar o dia bom num a memória florida e prolixa,
e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da
exterioridade vazia e passageira.
Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade
do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o
houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não
creio que a história seja mais, no seu grande panorama desbotado, que um
decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos.
O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é
complexo como tudo.
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas
verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não
escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e
eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia
ter dito.
A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a
mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o
esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade
do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o
terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As
flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação,
terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.
Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o
não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar
que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia
está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo,
passa. Temos pois que conservar o dia bom num a memória florida e prolixa,
e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da
exterioridade vazia e passageira.
Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade
do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o
houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não
creio que a história seja mais, no seu grande panorama desbotado, que um
decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos.
O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é
complexo como tudo.
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas
verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não
escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e
eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia
ter dito.
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o un ciego soñando
y en ese vuelo y en ese sueño
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compartir contigo sol y luna,
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28.
Um hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir,
qualquer coisa que faça não pensar.
Um hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir,
qualquer coisa que faça não pensar.
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29.
Depois que os últimos pingos da chuva começaram a tardar na queda dos
telhados, e pelo centro pedrado da rua o azul do céu começou a espelhar-se
lentamente, o som dos veículos tomou outro canto, mais alto e alegre, e
ouviu-se o abrir de janelas contra o desesquecimento do sol. Então, pela rua
estreita do fundo da esquina próxima, rompeu o convite alto do primeiro
cauteleiro, e os pregos pregados nos caixotes da loja da esquina reverberaram
pelo espaço claro.
Era um feriado incerto, legal e que se não mantinha. Havia sossego e
trabalho conjuntos, e eu não tinha que fazer. Tinha-me levantado cedo e
tardava em preparar-me para existir. Passeava de um lado ao outro do quarto
e sonhava alto coisas sem nexo nem possibilidade — gestos que me esquecera
de fazer, ambições impossíveis realizadas sem rumo, conversas firmes e
contínuas que, se fossem, teriam sido. E neste devaneio sem grandeza nem
calma, neste atardar sem esperança nem fim, gastavam meus passos a manhã
livre e as minhas palavras altas, ditas baixo, soavam múltiplas no claustro do
meu simples isolamento.
A minha figura humana, se a considerava com uma atenção externa, era do
ridículo que tudo quanto é humano assume sempre que é íntimo. Vestira,
sobre os trajes simples do sono abandonado, um sobretudo velho, que me
serve para estas vigílias matutinas. Os meus chinelos velhos estavam rotos,
principalmente o do pé esquerdo. E, com as mãos nos bolsos do casaco
póstumo, eu fazia a avenida do meu quarto curto em passos largos e
decididos, cumprindo com o devaneio inútil um sonho igual aos de toda a
gente.
Ainda, pela frescura aberta da minha janela única, se ouviam cair dos
telhados os pingos grossos da acumulação da chuva ida. Ainda, vagos, havia
frescores de haver chovido. O céu, porém, era de um azul conquistador, e as
nuvens que restavam da chuva derrotada ou cansada cediam, retirando para
sobre os lados do Castelo, os caminhos legítimos do céu todo.
Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia
desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a
sensação de estar vivo. E quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua
para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos
de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem,
enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.
Depois que os últimos pingos da chuva começaram a tardar na queda dos
telhados, e pelo centro pedrado da rua o azul do céu começou a espelhar-se
lentamente, o som dos veículos tomou outro canto, mais alto e alegre, e
ouviu-se o abrir de janelas contra o desesquecimento do sol. Então, pela rua
estreita do fundo da esquina próxima, rompeu o convite alto do primeiro
cauteleiro, e os pregos pregados nos caixotes da loja da esquina reverberaram
pelo espaço claro.
Era um feriado incerto, legal e que se não mantinha. Havia sossego e
trabalho conjuntos, e eu não tinha que fazer. Tinha-me levantado cedo e
tardava em preparar-me para existir. Passeava de um lado ao outro do quarto
e sonhava alto coisas sem nexo nem possibilidade — gestos que me esquecera
de fazer, ambições impossíveis realizadas sem rumo, conversas firmes e
contínuas que, se fossem, teriam sido. E neste devaneio sem grandeza nem
calma, neste atardar sem esperança nem fim, gastavam meus passos a manhã
livre e as minhas palavras altas, ditas baixo, soavam múltiplas no claustro do
meu simples isolamento.
A minha figura humana, se a considerava com uma atenção externa, era do
ridículo que tudo quanto é humano assume sempre que é íntimo. Vestira,
sobre os trajes simples do sono abandonado, um sobretudo velho, que me
serve para estas vigílias matutinas. Os meus chinelos velhos estavam rotos,
principalmente o do pé esquerdo. E, com as mãos nos bolsos do casaco
póstumo, eu fazia a avenida do meu quarto curto em passos largos e
decididos, cumprindo com o devaneio inútil um sonho igual aos de toda a
gente.
Ainda, pela frescura aberta da minha janela única, se ouviam cair dos
telhados os pingos grossos da acumulação da chuva ida. Ainda, vagos, havia
frescores de haver chovido. O céu, porém, era de um azul conquistador, e as
nuvens que restavam da chuva derrotada ou cansada cediam, retirando para
sobre os lados do Castelo, os caminhos legítimos do céu todo.
Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia
desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a
sensação de estar vivo. E quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua
para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos
de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem,
enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.
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