Aires de Libertad

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    FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

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    Mensaje por Maria Lua Sáb 23 Ene 2021, 06:13

    30.



    Reconheço, não sei se com tristeza, a secura humana do meu coração. Vale
    mais para mim um adjetivo que um choro real da alma. O meu mestre Vieira.
    Mas às vezes sou diferente, e tenho lágrimas, lágrimas das quentes dos que
    não têm nem tiveram mãe; e os meus olhos que ardem dessas lágrimas mortas
    ardem dentro do meu coração.
    Não me lembro da minha mãe. Ela morreu tinha eu um ano. Tudo o que
    há de disperso e duro na minha sensibilidade vem da ausência desse calor e da
    saudade inútil dos beijos de que me não lembro. Sou postiço. Acordei sempre
    contra seios outros, acalentado por desvio.
    Ah, é a saudade do outro que eu poderia ter sido que me dispersa e
    sobressalta! Quem outro seria eu se me tivessem dado carinho do que vem
    desde o ventre até aos beijos na cara pequena?
    Talvez que a saudade de não ser filho tenha grande parte na minha
    indiferença sentimental. Quem, em criança, me apertou contra a cara não me
    podia apertar contra o coração. Essa estava longe, num jazigo – essa que me
    pertenceria, se o Destino houvesse querido que me pertencesse.
    Disseram-me, mais tarde, que a minha mãe era bonita, e dizem que, quando
    mo disseram, eu não disse nada. Era já apto de corpo e alma, desentendido de
    emoções, e o falarem ainda não era uma notícia de outras páginas difíceis de
    imaginar.
    O meu pai, que vivia longe, matou-se quando eu tinha três anos e nunca o
    conheci. Não sei ainda porque é que vivia longe. Nunca me importei de o
    saber. Lembro-me da notícia da sua morte como de uma grande seriedade às
    primeiras refeições depois de se saber. Olhavam, lembro-me, de vez em
    quando para mim. E eu olhava de troco, entendendo estupidamente. Depois
    comia com mais regra, pois talvez, sem eu ver, continuassem a olhar-me.
    Sou todas essas coisas, embora o não queira, no fundo confuso da minha
    sensibilidade fatal


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    Mensaje por Maria Lua Dom 24 Ene 2021, 04:51

    31.



    O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem,
    deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é
    noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a
    atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue,
    jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais
    desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho.
    Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não
    consigo ter.
    Tudo no meu torno é o universo nu, abstrato, feito de negações noturnas.
    Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo
    um conhecimento metafisico do mistério das coisas.
    Por vezes amolece-se-me a alma, e então os pormenores sem forma da vida
    quotidiana boiam-se-me à superfície da consciência, e estou lançamentos à
    tona de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em
    que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poético e involuntário, deixam
    escorrer pela minha desatenção o seu espetáculo sem ruídos. Não tenho os
    olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz que vem de
    longe; são os candeeiros públicos acesos lá em baixo, nos confins
    abandonados da rua.
    Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas
    melancólicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!... Cessar, passar
    fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar vasto, em costas visíveis na
    noite em que verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser incógnito e externo,
    movimento de ramos em áleas afastadas, ténue cair de folhas, conhecido no
    som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o
    indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos,
    labirintos naturais da treva!... Cessar, acabar finalmente, mas com uma
    sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo
    solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem
    importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que
    adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do
    caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento — tudo que não fosse a
    vida... E durmo, ao meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa
    da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma
    quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.
    Durmo e desdurmo.
    Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no
    infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair.
    Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo
    quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que
    a tenho vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na
    sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me
    matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas
    pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da
    almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece — não
    é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao
    fundo das coisas, soa a meia hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo,
    tudo é tão negro e tão frio!
    Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.
    Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da
    noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir,
    deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto.
    Posso deixar-me à vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, através do
    sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, de veras,
    que canta segunda vez.
    3


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    Mensaje por Maria Lua Lun 25 Ene 2021, 14:59

    32.

    Sinfonia de uma noite inquieta
    Dormia tudo como se o universo fosse um erro; e o vento, flutuando
    incerto, era uma bandeira sem forma desfraldada sobre um quartel sem ser.
    Esfarrapava-se coisa nenhuma no ar alto e forte, e os caixilhos das janelas
    sacudiam os vidros para que a extremidade se ouvisse. No fundo de tudo,
    calada, a noite era o túmulo de Deus (a alma sofria com pena de Deus).
    E, de repente — nova ordem das coisas universais agia sobre a cidade -, o
    vento assobiava no intervalo do vento, e havia uma noção dormida de muitas
    agitações na altura. Depois a noite fechava-se como um alçapão, e um grande
    sossego fazia vontade de ter estado a dormir.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 27 Ene 2021, 05:49

    33.


    Nos primeiros dias do outono subitamente entrado, quando o escurecer
    toma uma evidência de qualquer coisa prematura, e parece que tardámos
    muito no que fazemos de dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta
    antecipação de não trabalhar que a própria sombra traz consigo, por isso que
    é noite e a noite é sono, lares, livramento. Quando as luzes se acendem no
    escritório amplo que deixa de ser escuro, e fazemos serão sem que
    cessássemos de trabalhar de dia, sinto um conforto absurdo como uma
    lembrança de outrem, e estou sossegado com o que escrevo como se estivesse
    lendo até sentir que irei dormir.

    Somos todos escravos de circunstâncias externas: um dia de sol abre-nos
    campos largos no meio de um café de viela; uma sombra no campo encolhenos para dentro, e abrigamo-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um
    chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque que se abra
    lento, a consciência íntima de dever-se repousar.
    Mas com isso o trabalho não se atrasa: anima-se. Já não trabalhamos;
    recreamo-nos com o assunto a que estamos condenados.

    E, de repente, pela
    folha vasta e pautada do meu destino numerador, a casa velha das tias antigas
    alberga, fechada contra o mundo, o chá das dez horas sonolentas, e o
    candeeiro de petróleo da minha infância perdida brilhando somente sobre a
    mesa de linho obscurece-me, com a luz, a visão do Moreira, iluminado a uma
    eletricidade negra infinitos para além de mim. Trazem o chá — é a criada mais
    velha que as tias que o traz com os restos do sono e o mau humor paciente da
    ternura da velha vassalagem — e eu escrevo sem errar uma verba ou uma
    soma através de todo o meu passado morto. Reabsorvo-me, perco-me em
    mim, esqueço-me a noites longínquas, impolutas de dever e de mundo,
    virgens de mistério e de futuro.


    E tão suave é a sensação que me alheia do débito e do crédito que, se acaso
    uma pergunta me é feita, respondo suavemente, como se tivesse o meu ser
    oco, como se não fosse mais que a máquina de escrever que trago comigo,
    portátil de mim mesmo aberto. Não me choca a interrupção dos meus
    sonhos: de tão suaves que são, continuo sonhando-os por detrás de falar,
    escrever, responder, conversar até.

    E através de tudo o chá perdido finda, e o
    escritório vai fechar... Ergo do livro, que cerro lentamente, olhos cansados do
    choro que não tiveram, e, numa mistura de sensações, sofro que ao fechar o
    escritório se me feche o sonho também; que no gesto da mão com que cerro
    o livro encubra o passado irreparável; que vá para a cama da vida sem sono,
    sem companhia nem sossego, no fluxo e refluxo da minha consciência
    misturada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos da saudade e
    da desolação.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 28 Ene 2021, 08:31

    34.



    Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores. E isto escrito,
    então, parece-me a eternidade.
    Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a
    liberdade.
    Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão é somente ser
    mudado de cela. A arte, se nos liberta dos manipansos assentes e obsoletos,
    também nos liberta das ideias generosas e das preocupações sociais —
    manipansos também.
    Encontrar a personalidade na perda dela — a mesma fé abona esse sentido
    de destino


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 30 Ene 2021, 04:59

    35.


    ... E um profundo e tediento desdém por todos quantos trabalham para a
    humanidade, por todos quantos se batem pela pátria e dão a sua vida para que
    a civilização continue... Um desdém cheio de tédio por eles, que desconhecem
    que a única realidade para cada um é a sua própria alma, e o resto — o mundo
    exterior e os outros — um pesadelo inestético, como um resultado nos
    sonhos de uma indigestão de espírito.
    A minha aversão pelo esforço excita-se até ao horror quase gesticulante
    perante todas as formas de esforço violento. E a guerra, o trabalho produtivo
    e enérgico, o auxílio aos outros... Tudo isto não me parece mais que o produto
    de um impudor,
    E, perante a realidade suprema da minha alma, tudo o que é útil e exterior
    me sabe a frívolo e trivial ante a soberana e pura grandeza dos meus mais
    vivos e frequentes sonhos. Esses, para mim, são mais reais.


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 30 Ene 2021, 05:06

    36.


    Não são as paredes reles do meu quarto vulgar, nem as secretárias velhas do
    escritório alheio, nem a pobreza das ruas intermédias da Baixa usual, tantas
    vezes por mim percorridas que já me parecem ter usurpado a fixidez da
    irreparabilidade, que formam no meu espírito a náusea, que nele é frequente,
    da quotidianidade enxovalhante da vida. São as pessoas que habitualmente me
    cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem
    com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do
    desgosto físico. E a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da
    minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o
    traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo.
    Há momentos em que cada pormenor do vulgar me interessa na sua
    existência própria, e eu tenho por tudo a afeição de saber ler tudo claramente.
    Então vejo — como Vieira disse que Sousa descrevia – o comum com
    singularidade, e sou poeta com aquela alma com que a crítica dos gregos
    formou a idade intelectual da poesia. Mas também há momentos, e um é este
    que me oprime agora, em que me sinto mais a mim que às coisas externas, e
    tudo se me converte numa noite de chuva e lama, perdido na solidão de um
    apeadeiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe.
    Sim, a minha virtude íntima de ser frequentemente objetivo, e assim me
    extraviar de pensar-me, sofre, como todas as virtudes, e até como todos os
    vícios, decréscimos de afirmação. Então pergunto a mim mesmo como é que
    me sobrevivo, como é que ouso ter a cobardia de estar aqui, entre esta gente,
    com esta igualdade certeira com eles, com esta conformação verdadeira com a
    ilusão de lixo de eles todos? Ocorrem-me com um brilho de farol distante
    todas as soluções com que a imaginação é mulher – o suicídio, a fuga, a
    renúncia, os grandes gestos da aristocracia da individualidade, o capa e espada
    das existências sem balcão.
    Mas a Julieta ideal da realidade melhor fechou sobre o Romeu fictício do
    meu sangue a janela alta da entrevista literária. Ela obedece ao pai dela; ele
    obedece ao pai dele. Continua a rixa dos Montecchios e dos Capuletos; cai o
    pano sobre o que não se deu; e eu recolho a casa — àquele quarto onde é
    sórdida a dona de casa que não está lá, os filhos que raras vezes vejo, a gente
    do escritório que só verei amanhã — com a gola de um casaco de empregado
    do comércio erguida sem estranhezas sobre o pescoço de um poeta, com as
    botas compradas sempre na mesma casa evitando inconscientemente os
    charcos da chuva fria, e um pouco preocupado, misturadamente, de me ter
    esquecido sempre do guarda-chuva e da dignidade da alma.


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 30 Ene 2021, 05:07

    37.


    Intervalo doloroso
    Coisa arrojada a um canto, trapo caído na estrada, meu ser ignóbil ante a
    vida finge-se.


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    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
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    Mensaje por Maria Lua Sáb 30 Ene 2021, 06:55

    38.


    Invejo a todas as pessoas o não serem eu. Como de todos os impossíveis,
    esse sempre me pareceu o maior de todos, foi o que mais se constituiu minha
    ânsia quotidiana, o meu desespero de todas as horas tristes.
    Uma rajada baça de sol turvo queimou nos meus olhos a sensação física de
    olhar. Um amarelo de calor estagnou no verde preto das árvores. O torpor


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    Mensaje por Maria Lua Dom 31 Ene 2021, 08:56

    39.


    De repente, como se um destino médico’ me houvesse operado de uma
    cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida
    anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto
    tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma
    espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver.
    Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
    Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida
    passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais
    certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não
    foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande
    desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o
    ator, mas os gestos dele.
    Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou
    a um ente falso que julguei meu, porque agi dele para fora, ou de um peso de
    circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver,
    um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre
    cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.
    Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os
    limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho,
    que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e
    pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um
    sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz
    pouca do cárcere a que se habituara.
    Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção
    repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre
    viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.
    É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se
    existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras
    humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se
    deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um
    viajante que de repente se encontre numa vila estranha sem saber como ali
    chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros
    durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo — desde a nascença e a
    consciência -, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e
    sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me
    incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a
    ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente
    e natural.
    Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os
    desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a
    verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes
    homens são com a vida. Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não
    foram também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não
    saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como
    neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da
    palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixanos nus até de nós.
    Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E,
    por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Lun 01 Feb 2021, 10:35

    40.


    Sinto-me às vezes tocado, não sei porquê, de um prenúncio de morte... Ou
    seja, uma vaga doença, que se não materializa em dor e por isso tende a
    espiritualizar-se em fim, ou seja, um cansaço que quer um sono tão profundo
    que o dormir lhe não basta — o certo é que sinto como se, no fim de um
    piorar de doente, por fim largasse sem violência ou saudade as mãos débeis de
    sobre a colcha sentida.
    Considero então que coisa é esta a que chamamos morte. Não quero dizer
    o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver.
    A humanidade tem medo da morte, mas incertamente; o homem normal
    bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha
    com horror o abismo do nada que ele atribui a esse abismo. Tudo isso é falta
    de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um
    sono. Porque o há de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do
    sono é o acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se
    assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso,
    porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um
    sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se
    assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo; nem sei como pode
    alguém assemelhar a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência
    dela, ou coisa com que a comparar.
    A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver
    dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não
    precisou de levar aquele fato único que vestira.


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    Mensaje por Maria Lua Mar 02 Feb 2021, 08:13

    41.


    O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num crescendo de
    monotonia cinzenta, pela rua estreita que fito. Estou dormindo desperto, de
    pé contra a vidraça, a que me encosto como a tudo. Procuro em mim que
    sensações são as que tenho perante este cair esfiado de água sombriamente
    luminosa que se destaca das fachadas sujas e, ainda mais, das janelas abertas. E
    não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que
    sou.

    Toda a amargura retardada da minha vida despe, aos meus olhos sem
    sensação, o traje de alegria natural de que usa nos acasos prolongados de
    todos os dias. Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou
    sempre triste. E o que em mim verifica isto está por detrás de mim, como que
    se debruça sobre o meu encostado à janela, e, por sobre os meus ombros, ou
    até a minha cabeça, fita, com olhos mais íntimos que os meus, a chuva lenta,
    um pouco ondulada já, que filigrana de movimento o ar pardo e mau.

    Abandonar todos os deveres, ainda os que nos não exigem, repudiar todos
    os lares, ainda os que não foram nossos, viver do impreciso e do vestígio,
    entre grandes púrpuras de loucura, e rendas falsas de majestades sonhadas...
    Ser qualquer coisa que não sinta o pesar de chuva externa, nem a mágoa da
    vacuidade íntima... Errar sem alma nem pensamento, sensação sem si-mesma,
    por estrada contornando montanhas, por vales sumidos entre encostas
    íngremes, longínquo, imerso e fatal...

    Perder-se entre paisagens como quadros. Não-ser a longe e cores...
    Um sopro leve de vento, que por detrás da janela não sinto, rasga em
    desnivelamentos aéreos a queda rectilínea da chuva. Clareia qualquer parte do
    céu que não vejo. Noto-o porque, por detrás dos vidros meio-limpos da janela
    em frente, já vejo vagamente o calendário na parede lá dentro, que até agora
    não via.

    Esqueço. Não vejo, sem pensar.
    Cessa a chuva, e dela fica, um momento, uma poalha de diamantes
    mínimos, como se, no alto, qualquer coisa como uma grande toalha se
    sacudisse azulmente dessas migalhinhas. Sente-se que parte do céu está já
    aberta. Vê-se, através da janela em frente, o calendário mais nitidamente. Tem
    uma cara de mulher, e o resto é fácil porque o reconheço, e a pasta dentífrica é
    a mais conhecida de todas.

    Mas em que pensava eu antes de me perder a ver? Não sei. Vontade?
    Esforço? Vida? Com um grande avanço de luz sente-se que o céu é já quase
    todo azul. Mas não há sossego — ah, nem o haverá nunca! — no fundo do
    meu coração, poço velho ao fim da quinta vendida, memória de infância
    fechada a pó no sótão da casa alheia. Não há sossego — e, ai de mim!, nem
    sequer há desejo de o ter...


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    Mensaje por Maria Lua Miér 03 Feb 2021, 06:10

    42.



    Não compreendo senão como uma espécie de falta de asseio esta inerte
    permanência em que jazo da minha mesma e igual vida, ficada como pó ou
    porcaria na superfície de nunca mudar.

    Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida
    como mudamos de roupa — não para salvar a vida, como comemos e
    dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que
    propriamente chamamos asseio.

    Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um
    encolher de ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o
    mesmo da vida não é uma forma de a quererem, ou uma natural conformação
    com o não tê-la querido, mas um apagamento da inteligência de si mesmos,
    uma ironia automática do conhecimento.

    Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela,
    por aquele mesmo extremo de um sentimento, pelo qual o apavorado se não
    afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da
    banalidade quotidiana por essa mesma atração da própria impotência.
    São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos
    troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão.

    Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco
    de árvore do usual. Assim passeio o meu destino que anda, pois eu não ando;
    o meu tempo que segue, pois eu não sigo. Nem me salva da monotonia senão
    estes breves comentários que faço a propósito dela.

    Contento-me com a minha cela ter vidraças por dentro das grades, e
    escrevo nos vidros, no pó do necessário, o meu nome em letras grandes,
    assinatura quotidiana da minha escritura com a morte.
    Com a morte? Não, nem com a morte. Quem vive como eu não morre:
    acaba, murcha, desvegeta-se. O lugar onde esteve fica sem ele ali estar, a rua
    por onde andava fica sem ele lá ser visto, a casa onde morava é habitada por
    não-ele. É tudo, e chamamos-lhe o nada; mas nem essa tragédia da negação
    podemos representar com aplauso, pois nem ao certo sabemos se é nada,
    vegetais da verdade como da vida, pó que tanto está por dentro como por
    fora das vidraças, netos do Destino e enteados de Deus, que casou com a
    Noite Eterna quando ela enviuvou do Caos que nos procriou.
    Partir da Rua dos Douradores para o Impossível... Erguer-me da carteira
    para o Ignoto... Mas isto intersecionado com a Razão — o Grande Livro que
    diz que fomos.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 04 Feb 2021, 06:16

    43.


    Há um cansaço da inteligência abstrata, e é o mais horroroso dos cansaços.
    Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do
    conhecimento pela emoção. É um peso da consciência do mundo, um não
    poder respirar com a alma.

    Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as ideias em
    que temos sentido a vida, todas as ambições e desígnios em que temos
    fundado a esperança na continuação dela, se rasgam, se abrem, se afastam
    tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por
    detrás da derrota surge pura a solidão negra e implacável do céu deserto e
    estrelado.

    O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes
    vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos
    medos — a da encarnação disforme do não-ser. Outras vezes está atrás de
    nós, visível só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu
    horror profundíssimo de a desconhecermos.

    Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. E uma
    vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um
    desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. É o sentimento
    súbito de se estar enclausurado na cela infinita. Para onde pensar em fugir, se
    só a cela é tudo?

    E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de
    satanismo que precedeu Satã, de que um dia — um dia sem tempo nem
    substância — se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de
    nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não-ser.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 04 Feb 2021, 06:39

    44.

    Há um sono da atenção voluntária, que não sei explicar, e que
    frequentemente me ataca, se de coisa tão esbatida se pode dizer que ataca
    alguém. Sigo por uma rua como quem está sentado, e a minha atenção,
    desperta a tudo, tem todavia a inércia de um repouso do corpo inteiro. Não
    seria capaz de me desviar conscientemente de um transeunte oposto.

    Não
    seria capaz de responder com palavras, ou sequer, dentro em mim, com
    pensamentos, a uma pergunta de qualquer casual que fizesse escala pela minha
    casualidade coincidente. Não seria capaz de ter um desejo, uma esperança,
    uma coisa qualquer que representasse um movimento, não já da vontade do
    meu ser completo, mas até, se assim posso dizer, da vontade parcial e própria
    de cada elemento em que sou decomponível. Não seria capaz de pensar, de
    sentir, de querer.

    E ando, sigo, vagueio. Nada nos meus movimentos (reparo
    por o que os outros não reparam) transfere para o observável o estado de
    estagnação em que vou. E este estado de falta de alma, que seria cómodo,
    porque certo, num deitado ou num recumbente, é singularmente incómodo,
    doloroso até, num homem que vai andando pela rua.

    É a sensação de uma ebriedade de inércia, de uma bebedeira sem alegria,
    nem nela, nem na origem. É uma doença que não tem sonho de convalescer.
    É uma morte alacre.


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    Mensaje por Maria Lua Vie 05 Feb 2021, 06:23

    45.


    Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das ideias, lendo,
    sonhando, e pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta para estar
    sempre à beira do tédio, bastante meditada para se nunca encontrar nele.
    Viver essa vida longe das emoções e dos pensamentos, só no pensamento das
    emoções e na emoção dos pensamentos.

    Estagnar ao sol, douradamente,
    como um lago obscuro rodeado de flores. Ter, na sombra, aquela fidalguia da
    individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida. Ser no
    volteio dos mundos como uma poeira de flores, que um vento incógnito
    ergue pelo ar da tarde, e o torpor do anoitecer deixa baixar no lugar de acaso,
    indistinta entre coisas maiores.

    Ser isto com um conhecimento seguro, nem
    alegre nem triste, reconhecido ao sol do seu brilho e às estrelas do seu
    afastamento. Não ser mais, não ter mais, não querer mais... A música do
    faminto, a canção do cego, a relíquia do viandante incógnito, as passadas no
    deserto do camelo vazio sem destino...


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 06 Feb 2021, 05:31

    46.


    Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um
    livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural do que
    resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena,
    pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a
    cidade...
    "Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha
    altura."
    Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito,
    limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida.
    Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande
    céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me
    estremece no corpo todo.
    "Sou do tamanho do que vejo!" Cada vez que penso esta frase com toda a
    atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir
    consteladamente o universo. "Sou do tamanho do que vejo!" Que grande
    posse mental Vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas
    que se refletem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.
    E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objetiva dos
    céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando.
    "Sou do tamanho do que vejo!" E o vago luar, inteiramente meu, começa a
    estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.
    Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria
    ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova
    personalidade largal aos grandes espaços da matéria vazia.
    Mas recolho-me e abrando. "Sou do tamanho do que vejo!" E a frase ficame sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre
    mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar
    duro que começa largo com o anoitecer.


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    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Jue 11 Feb 2021, 04:53

    47.



    No desalinho triste das minhas emoções confusas...
    Uma tristeza de crepúsculo, feita de cansaços e de renúncias falsas, um
    tédio de sentir qualquer coisa, uma dor como de um soluço parado ou de uma
    verdade obtida. Desenrola-se-me na alma desatenta esta paisagem de
    abdicações — áleas de gestos abandonados, canteiros altos de sonhos nem
    sequer bem sonhados, inconsequências, como muros de buxo dividindo
    caminhos vazios, suposições, como velhos tanques sem repuxo vivo, tudo se
    emaranha e se visualiza pobre no desalinho triste das minhas sensações
    confusas.


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    y en ese vuelo y en ese sueño
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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Sáb 13 Feb 2021, 22:01

    48.

    Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada
    conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que aquele dito de
    Leonardo da Vinci de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois
    de compreendê-la.
    A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa
    descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distração
    especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 14 Feb 2021, 05:54

    49.



    O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra
    pessoa — de uma só pessoa que seja — atrasa-me imediatamente o
    pensamento, e, ao passo que no homem normal o contacto com outrem é um
    estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é um
    contraestímulo, se é que esta palavra composta é viável perante a linguagem.
    Sou capaz, a sós comigo, de idear quantos ditos de espírito, respostas rápidas
    ao que ninguém disse, fulgurações de uma sociabilidade inteligente com
    pessoa nenhuma; mas tudo isso se me some se estou perante um outrem
    físico, perco a inteligência, deixo de poder dizer, e, no fim de uns quartos de
    hora, sinto apenas sono. Sim, falar com gente dá-me vontade de dormir. Só os
    meus amigos espectrais e imaginados, só as minhas conversas decorrentes em
    sonho, têm uma verdadeira realidade e um justo relevo, e neles o espírito é
    presente como uma imagem num espelho.
    Pesa-me, aliás, toda a ideia de ser forçado a um contacto com outrem. Um
    simples convite para jantar com um amigo me produz uma angústia difícil de
    definir. A ideia de uma obrigação social qualquer — ir a um enterro, tratar
    junto de alguém de uma coisa do escritório, ir esperar à estação uma pessoa
    qualquer, conhecida ou desconhecida -, só essa ideia me estorva os
    pensamentos de um dia, e às vezes é desde a mesma véspera que me
    preocupo, e durmo mal, e o caso real, quando se dá, é absolutamente
    insignificante, não justifica nada; e o caso repete-se e eu não aprendo nunca a
    aprender.
    "Os meus hábitos são da solidão, que não dos homens"; não sei se foi
    Rousseau, se Senancour, o que disse isto. Mas foi qualquer espírito da minha
    espécie — não poderei talvez dizer da minha raça.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Dom 14 Feb 2021, 05:55

    50.


    Espaçado, um vaga-lume vai sucedendo-se a si mesmo. Em torno, obscuro,
    o campo é uma grande falta de ruído que cheira quase bem. A paz de tudo dói
    e pesa. Um tédio informe afoga-me.
    Poucas vezes vou ao campo, quase nenhumas ali passo um dia, ou de um
    dia para outro. Mas hoje, que este amigo, em cuja casa estou, me não deixou
    não aceitar o seu convite, vim para aqui cheio de constrangimento — como
    um tímido para uma festa grande -, cheguei aqui com alegria, gostei do ar e da
    paisagem ampla, almocei e jantei bem, e agora, noite funda, no meu quarto
    sem luz o lugar vago enche-me de angústia.
    A janela do quarto onde dormirei deita para o campo aberto, para um
    campo indefinido, que é todos os campos, para a grande noite vagamente
    constelada onde uma aragem que se não ouve se sente. Sentado à janela,
    contemplo com os sentidos esta coisa nenhuma da vida universal que está lá
    fora. A hora harmoniza-se numa sensação inquieta, desde a invisibilidade
    visível de tudo até à madeira vagamente rugosa de ter estalado a tinta velha do
    parapeito branquejante, onde está estendidamente apoiada de lado a minha
    mão esquerda.
    Quantas vezes, contudo, não anseio visualmente por esta paz de onde
    quase fugiria agora, se fosse fácil ou decente! Quantas vezes julgo crer — lá
    em baixo, entre as ruas estreitas de casas altas — que a paz, a prosa, o
    definitivo estariam antes aqui, entre as coisas naturais, que ali onde o pano de
    mesa da civilização faz esquecer o pinho já pintado em que assenta! E, agora,
    aqui, sentindo-me saudável, cansado a bem, estou intranquilo, estou preso,
    estou saudoso.
    Não sei se é a mim que acontece, se a todos os que a civilização fez nascer
    segunda vez. Mas parece-me que para mim, ou para os que sentem como eu, o
    artificial passou a ser o natural, e é o natural que é estranho. Não digo bem: o
    artificial não passou a ser o natural; o natural passou a ser diferente. Dispenso
    e detesto veículos, dispenso e detesto os produtos da ciência — telefones,
    telégrafos — que tornam a vida fácil, ou os subprodutos da fantasia —
    gramofonógrafos, recetores hertzianos — que, aos a quem divertem, a tornam
    divertida.
    Nada disso me interessa, nada disso desejo. Mas amo o Tejo porque há
    uma cidade grande à beira dele. Gozo o céu porque o vejo de um quarto
    andar de rua da Baixa. Nada o campo ou a natureza me pode dar que valha a
    majestade irregular da cidade tranquila, sob o luar, vista da Graça ou de São
    Pedro de Alcântara. Não há para mim flores como, sob o sol, o colorido
    variadíssimo de Lisboa.
    A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale
    sobretudo para a sensualidade como o obstáculo para a energia.
    A artificialidade é a maneira de gozar a naturalidade. O que gozei destes
    campos vastos, gozei-o porque aqui não vivo. Não sente a liberdade quem
    nunca viveu constrangido.
    A civilização é uma educação de natureza. O artificial é o caminho para
    uma apreciação do natural.
    O que é preciso, porém, é que nunca tomemos o artificial por natural.
    É na harmonia entre o natural e o artificial que consiste a naturalidade da
    alma humana superior.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Lun 15 Feb 2021, 15:23

    51.



    O céu negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente negro contra as
    asas, por contraste, vividamente brancas das gaivotas em voo inquieto. O dia,
    porém, não estava tempestuoso já. Toda a massa da ameaça da chuva passara
    para por sobre a outra margem, e a cidade baixa, húmida ainda do pouco que
    chovera, sorria do chão a um céu cujo Norte se azulava ainda um pouco
    brancamente. O fresco da Primavera era levemente frio.
    Numa hora como esta, vazia e imponderável, apraz-me conduzir
    voluntariamente o pensamento para uma meditação que nada seja, mas que
    retenha, na sua limpidez de nula, qualquer coisa da frieza erma do dia
    esclarecido, com o fundo negro ao longe, e certas intuições, como gaivotas,
    evocando por contraste o mistério de tudo em grande negrume.
    Mas, de repente, em contrário do meu propósito literário íntimo, o fundo
    negro do céu do Sul evoca-me, por lembrança verdadeira ou falsa, outro céu,
    talvez visto em outra vida, num Norte de rio menor, com juncais tristes e sem
    cidade nenhuma. Sem que eu saiba como, uma paisagem para patos bravos
    alastra-se-me pela imaginação e é com a nitidez de um sonho raro que me
    sinto próximo da extensão que imagino.
    Terra de juncais à beira de rios, terreno para caçadores e angústias, as
    margens irregulares entram, como pequenos cabos sujos, nas águas cor de
    chumbo amarelo, e reentram em baías limosas, para barcos de quase
    brinquedo, em ribeiras que têm água a luzir à tona de lama oculta entre as
    hastes verde-negras dos juncos, por onde se não pode andar.
    A desolação é de um céu cinzento morto, aqui e ali arrepanhando-se em
    nuvens mais negras que o tom do céu. Não sinto vento, mas há-o, e a outra
    margem, afinal, é uma ilha longa, por detrás da qual se divisa — grande e
    abandonado rio! — a outra margem verdadeira, deitada na distância sem
    relevo.
    Ninguém ali chega, nem chegará. Ainda que, por uma fuga contraditória do
    tempo e do espaço, eu pudesse evadir-me do mundo para essa paisagem,
    ninguém ali chegaria nunca. Esperaria em vão o que não saberia que esperava,
    nem haveria senão, no fim de tudo, um cair lento da noite, tornando-se todo o
    espaço, lentamente, da cor das nuvens mais negras, que pouco a pouco se
    emergiam ’ no conjunto abolido do céu.
    E, de repente, sinto aqui o frio de ali. Toca-me no corpo, vindo dos ossos.
    Respiro alto e desperto. O homem, que cruza comigo sob a Arcada ao pé da
    Bolsa, olha-me com uma desconfiança de quem não sabe explicar. O céu
    negro, apertando-se, desceu mais baixo sobre o Sul.


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    Mensaje por Maria Lua Vie 19 Feb 2021, 05:32

    52.


    O vento levantou-se... Primeiro era como a voz de um vácuo... Um soprar
    no espaço para dentro de um buraco, uma falta no silêncio do ar. Depois
    ergueu-se um soluço, um soluço do fundo do mundo, o sentir-se que tremiam
    vidraças e que era realmente vento. Depois soou mais alto, urro surdo, um
    chorar sem ser ante o aumentar noturno, um ranger de coisas, um cair de
    bocados, um átomo de fim do mundo.


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 20 Feb 2021, 05:22

    53.



    Quando, como uma noite de tempestade a que o dia se segue, o
    cristianismo passou de sobre as almas, viu-se o estrago que, invisivelmente,
    havia causado; a ruína, que causara, só se viu quando ele passara já. Julgaram
    uns que era pela sua falta que essa ruína viera; mas fora pela sua ida que a
    ruína se mostrara, não que se causara.
    Ficou, então, neste mundo de almas, a ruína visível, a desgraça patente, sem
    a treva que a cobrisse do seu carinho falso. As almas viram-se tais quais eram.
    Começou, então, nas almas recentes aquela doença a que se chamou
    romantismo, aquele cristianismo sem ilusões, aquele cristianismo sem mitos,
    que é a própria secura da sua essência doentia.
    O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que
    desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua
    conservação e ao seu continuamento; todos nós desejamos uma vida mais
    perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos nossos sonhos e É humano
    querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é
    para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é
    preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse
    por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse
    maneira de a obter.
    "Não se pode comer um bolo sem o perder."
    Na esfera baixa da política, como no íntimo recinto das almas — o mesmo
    mal.
    O pagão desconhecia, no mundo real, este sentido doente das coisas e de si
    mesmo. Como era homem, desejava também o impossível; mas não o queria.
    A sua religião era e só nos penetrais do mistério, aos iniciados apenas, longe
    do povo e dos eram ensinadas aquelas coisas transcendentes das religiões que
    enchem a alma do vácuo do mundo.


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 20 Feb 2021, 05:47

    54.


    A personagem individual e imponente, que os românticos figuravam em si
    mesmos, várias vezes, em sonho, a tentei viver, e, tantas vezes, quantas a
    tentei viver, me encontrei a rir alto, da minha ideia de vivê-la. O homem fatal,
    afinal, existe nos sonhos próprios de todos os homens vulgares, e o
    romantismo não é senão o virar do avesso do domínio quotidiano de nós
    mesmos. Quase todos os homens sonham, nos secretos do seu ser, um grande
    imperialismo próprio, a sujeição de todos os homens, a entrega de todas as
    mulheres, a adoração dos povos, e, nos mais nobres’, de todas as eras...
    Poucos como eu habituados ao sonho, são por isso lúcidos bastante para rir
    da possibilidade estética de se sonhar assim.

    A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa
    a verdade interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os
    seus poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração
    exterior do que há mais dentro na alma, mas concreto, visualizado, até
    possível, se o ser possível dependesse de outra coisa que não o Destino.
    Quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da distração, me
    encontro supondo que seria bom ser célebre, que seria agradável ser
    ameigado, que seria colorido ser triunfal! Mas não consigo visionar-me nesses
    papéis de píncaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sempre
    próximo como uma rua da Baixa.

    Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre
    como guarda-livros. Sinto-me alçado aos tronos do ser conhecido? Mas o caso
    passa-se no escritório da Rua dos Douradores e os rapazes são um obstáculo.
    Ouço-me aplaudido por multidões variegadas? O aplauso chega ao quarto
    andar onde moro e colide com a mobília tosca do meu quarto barato, com o
    reles que me rodeia, e me amesquinha desde a cozinha ao sonho. Não tive
    sequer castelos em Espanha, como os grandes espanhóis de todas as ilusões.
    Os meus foram de cartas de jogar, velhas, sujas, de um baralho incompleto
    com que se não poderia jogar nunca nem caíram, foi preciso destruí-los, com
    um gesto de mão, sob o impulso impaciente da criada velha, que queria
    recompor, sobre a mesa inteira, a toalha atirada sobre a metade de lá, porque a
    hora do chá soara como uma maldição do Destino.

    Mas até isto é uma visão
    improfícua, pois não tenho a casa de província, ou as tias velhas, a cuja mesa
    eu tome, no fim de uma noite de família, um chá que me saiba a repouso. O
    meu sonho falhou até nas metáforas e nas figurações. O meu império nem
    chegou às cartas velhas de jogar. A minha vitória falhou sem um bule sequer
    nem um gato antiquíssimo. Morrerei como tenho vivido, entre o bric-à-brac
    dos arredores, apreçado pelo peso entre os pós-escritos do perdido.
    Leve eu ao menos, para o imenso possível do abismo de tudo, a glória da
    minha desilusão como se fosse a de um grande sonho, o esplendor de não
    crer como um pendão de derrota — pendão contudo nas mãos débeis, mas
    pendão arrastado entre a lama e o sangue dos fracos, mas erguido ao alto, ao
    sumirmo-nos nas areias movediças, ninguém sabe se como protesto, se como
    desafio, se como gesto de desespero. Ninguém sabe, porque ninguém sabe
    nada, e as areias engolfam os que têm pendões como os que não têm. E as
    areias cobrem tudo, a minha vida, a minha prosa, a minha eternidade.
    Levo comigo a consciência da derrota como um pendão de vitória


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    Mensaje por Maria Lua Mar 23 Feb 2021, 05:20

    55.

    Por mais que pertença, por alma, à linhagem dos românticos, não encontro
    repouso senão na leitura dos clássicos. A sua mesma estreiteza, através da qual
    a clareza se exprime, me conforta não sei de quê. Colho neles uma impressão
    alacre de vida larga, que contempla amplos espaços sem os percorrer. Os
    mesmos deuses pagãos repousam do mistério.
    A análise sobre curiosa das sensações — por vezes das sensações que
    supomos ter -, a identificação do coração com a paisagem, a revelação
    anatómica dos nervos todos, o uso do desejo como vontade e da aspiração
    como pensamento — todas estas coisas me são demasiado familiares para que
    em outrem me tragam novidade, ou me deem sossego. Sempre que as sinto,
    desejaria, exatamente porque as sinto, estar sentindo outra coisa. E, quando
    leio um clássico, essa outra coisa é-me dada.
    Confesso-o sem rebuço nem vergonha... Não há trecho de Chateaubriand
    ou canto de Lamartine — trechos que tantas vezes parecem ser a voz do que
    eu penso, cantos que tanta vez parecem ser-me ditos para conhecer – que me
    enleve e me erga como um trecho de prosa de Vieira ou uma ou outra ode
    daqueles nossos poucos clássicos que seguiram deveras a Horácio.
    Leio e estou liberto. Adquiro objetividade. Deixei de ser eu e disperso. E o
    que leio, em vez de ser um trajo meu que mal vejo e por vezes me pesa, é a
    grande clareza do mundo externo, toda ela notável, o sol que vê todos, a lua
    que malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que acabam em mar, a
    solidez negra das árvores que acenam verdes em cima, a paz sólida dos
    tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas, nos declives breves
    das encostas.
    Leio como quem abdica. E, como a coroa e o manto régios nunca são tão
    grandes como quando o Rei que parte os deixa no chão, deponho sobre os
    mosaicos das antecâmaras todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e
    subo a escadaria com a única nobreza de ver.
    Leio como quem passa. E é nos clássicos, nos calmos, nos que, se sofrem,
    o não dizem, que me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino
    contemplador sem razão do mundo sem propósito, Príncipe do Grande
    Exílio, que deu, partindo-se, ao último mendigo, a esmola extrema da sua
    desolação.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Miér 24 Feb 2021, 07:11

    56.


    O sócio capitalista aqui da firma, sempre doente em parte incerta, quis, não
    sei porque capricho de que intervalo de doença, ter um retrato do conjunto do
    pessoal do escritório. E assim, anteontem, alinhámos todos, por indicação do
    fotógrafo alegre, contra a barreira branca suja que divide, com madeira frágil,
    o escritório geral do gabinete do patrão Vasques. Ao centro o mesmo
    Vasques; nas duas alas, numa distribuição primeiro definida, depois indefinida,
    de categorias, as outras almas humanas que aqui se reúnem em corpo todos os
    dias para pequenos fins cujo último intuito só o segredo dos Deuses conhece.
    Hoje quando cheguei ao escritório, um pouco tarde, e, em verdade,
    esquecido já do acontecimento estático da fotografia duas vezes tirada,
    encontrei o Moreira, inesperadamente matutino, e um dos caixeiros de praça
    debruçados rebuçadamente sobre umas coisas enegrecidas, que reconheci
    logo, em sobressalto, como as primeiras provas das fotografias. Eram, afinal,
    duas só de uma, daquela que ficara melhor.
    Sofri a verdade ao ver-me ali, porque, como é de supor, foi a mim mesmo
    que primeiro busquei. Nunca tive uma ideia nobre da minha presença física,
    mas nunca a senti tão nula como em comparação com as outras caras, tão
    minhas conhecidas, naquele alinhamento de quotidianos. Pareço um jesuíta
    fruste. A minha cara magra e inexpressiva nem tem inteligência, nem
    intensidade, nem qualquer coisa, seja o que for, que a alce da maré morta das
    outras caras. Da maré morta, não. Há ali rostos verdadeiramente expressivos.
    O patrão Vasques está tal qual é — o largo rosto prazenteiro e duro, o olhar
    firme, o bigode rígido completando. A energia, a esperteza do homem —
    afinal tão banais, e tantas vezes repetidas por tantos milhares de homens em
    todo o mundo — são todavia escritas naquela fotografia como num
    passaporte psicológico. Os dois caixeiros viajantes estão admiráveis; o caixeiro
    de praça está bem, mas ficou quase por trás de um ombro do Moreira. E o
    Moreira! O meu chefe Moreira, essência da monotonia e da continuidade, está
    muito mais gente do que eu! Até o moço — reparo sem poder reprimir um
    sentimento que busco supor que não é inveja tem uma certeza de cara, uma
    expressão direta que dista sorrisos do meu apagamento nulo de esfinge de
    papelaria.
    O que quer isto dizer? Que verdade é esta que uma película não erra? Que
    certeza é esta que uma lente fria documenta? Quem sou, para que seja assim?
    Contudo... E o insulto do conjunto?
    — "Você ficou muito bem", diz de repente o Moreira. E depois, virandose para o caixeiro de praça, "É mesmo a carinha dele, hein?" E o caixeiro de
    praça concordou com uma alegria amiga que atirou para o lixo.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Jue 25 Feb 2021, 08:47

    57.


    E, hoje, pensando no que tem sido a minha vida, sinto-me qualquer bicho
    vivo, transportado num cesto de encurvar o braço, entre duas estações
    suburbanas. A imagem é estúpida, porém a vida que define é mais estúpida
    ainda do que ela. Esses cestos costumam ter duas tampas, com meias ovais,
    que se levantam um pouco num ou outro dos extremos curvos se o bicho
    estrebucha. Mas o braço de quem transporta, apoiado um pouco ao longo dos
    dobramentos centrais, não deixa coisa tão débil erguer frustemente mais do
    que as extremidades inúteis, como asas de borboleta que enfraquecem.
    Esqueci-me que falava de mim com a descrição do cesto. Vejo-o
    nitidamente, e ao braço gordo e branco queimado da criada que o transporta.
    Não consigo ver a criada para além do braço e a sua penugem. Não consigo
    sentir-me bem senão — de repente — uma grande frescura daqueles varais
    brancos e nastros de com que se tecem os cestos e onde estrebucho, bicho,
    entre duas paragens que sinto. Entre elas repouso no que parece ser um banco
    e falam lá fora do meu cesto. Durmo porque sossego, até que me ergam de
    novo na paragem.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Jue 25 Feb 2021, 08:48

    58.



    O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e
    essa expressão vem-lhe de fora. Cada coisa é a intersecção de três linhas, e
    essas três linhas formam essa coisa: uma quantidade de matéria, o modo como
    interpretamos, e o ambiente em que está. Esta mesa, a que estou escrevendo,
    é um pedaço de madeira, é uma mesa, e é um móvel entre outros aqui neste
    quarto. A minha impressão desta mesa, se a quiser transcrever, terá que ser
    composta das noções de que ela é de madeira, de que eu chamo àquilo uma
    mesa e lhe atribuo certos usos e fins, e de que nela se refletem, nela se
    inserem, e a transformam, os objetos em cuja justaposição ela tem alma
    externa, o que lhe está posto em cima. E a própria cor que lhe foi dada, o
    desbotamento dessa cor, as nódoas e partidos que tem — tudo isso, repare-se,
    lhe veio de fora, e é isso que, mais que a sua essência de madeira, lhe dá a
    alma. E o íntimo dessa alma, que é o ser mesa, também lhe foi dado de fora,
    que é a personalidade.

    Acho, pois, que não há erro humano, nem literário, em atribuir alma às
    coisas que chamamos inanimadas. Ser uma coisa é ser objeto de uma
    atribuição. Pode ser falso dizer que uma árvore sente, que um rio "corre", que
    um poente é magoado ou o mar calmo (azul pelo céu que não tem) é
    sorridente (pelo sol que lhe está fora). Mas igual erro é atribuir beleza a
    qualquer coisa. Igual erro é atribuir cor, forma, porventura até ser, a qualquer
    coisa. Este mar é água salgada. Este poente é começar a faltar a luz do sol
    nesta latitude e longitude. Esta criança, que brinca diante de mim, é um
    amontoado intelectual de células — mais, é uma relojoaria de movimentos
    subatómicos, estranha conglomeração elétrica de milhões de sistemas solares
    em miniatura mínima.

    Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o
    raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o
    corpo.
    Nestas considerações está porventura toda uma filosofia, para quem
    pudesse ter a força de tirar conclusões. Não a tenho eu, surgem-me atentos
    pensamentos vagos, de possibilidades lógicas, e tudo se me esbate numa visão
    de um raio de sol dourando estrume como palha escura humidamente
    amachucada, no chão quase negro ao pé de um muro de pedregulhos.
    Assim sou. Quando quero pensar, vejo. Quando quero descer na minha
    alma, fico de repente parado, esquecido, no começo do espiral da escada
    profunda, vendo pela janela do andar alto o sol que molha de despedida fulva
    o aglomerado difuso dos telhados.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Pascual Lopez Sanchez Jue 25 Feb 2021, 09:12

    GENUINO E INIMITABLE PESSOA. SIN PARANGÓN

    Nunca conocí a nadie a quien le hubiesen roto la cara.
    Todos mis conocidos fueron campeones en todo.
    Y yo, que fui ordinario, inmundo, vil,
    un parásito descarado,
    un tipo imperdonablemente sucio
    al que tantas veces le faltó paciencia para bañarse;
    yo que fui ridículo, absurdo,
    que me llevé por delante las alfombras de la formalidad,
    que fui grotesco, mezquino, sumiso y arrogante,
    que recibí insultos sin abrir la boca
    y que cuando la abrí fui más ridículo todavía;
    yo que resulté cómico a las mucamas de hotel,
    yo que sentí los guiños de los changadores,
    yo que estafé, que pedí prestado y no devolví nunca,
    que aparté el cuerpo cuando hubo que enfrentarse a puñetazos,
    yo que sufrí la angustia de las pequeñas cosas ridículas,
    me doy cuenta que no hay en este mundo otro como yo.
    La gente que conozco y con quien hablo
    nunca cayó en ridículo, nunca sufrió un insulto,
    nunca fue sino príncipe -todos ellos príncipes- en la vida...
    ¡Ah, quién pudiera oír una voz humana
    que confiese no un pecado sino una infamia;
    que cuente no una violencia sino una cobardía!
    Pero no, son todos la Maravilla si los escucho.
    ¿Es que no hay nadie en este ancho mundo capaz de confesar que una vez
    fue vil?
    ¡Oh príncipes, mis hermanos!
    ¡Basta, estoy harto de semidioses!
    ¿Dónde está la gente de este mundo?
    ¿Así que en esta tierra sólo yo soy vil y me equivoco?
    Admitirán que las mujeres no los amaron,
    aceptarán que fueron traicionados -¡pero ridículos nunca!-
    Y yo que fui ridículo sin haber sido traicionado,
    ¿Cómo puedo dirigirme a mis superiores sin titubear?
    Yo que fuí ,literalmente vil,
    vil en el sentido mezquino e infame de la vileza.


    _________________
    "LOS DEMÁS TAMBIÉN EXISTIMOS" 


    NETANYAHU ASESINO


     ISRAEL: ¡GENOCIDA! LA HISTORIA HABRÁ DE LLEVARLOS ANTE LA CORTE PENAL INTERNACIONAL POR CONTINUADOS CRÍMMENES DE GUERRA

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