31.
O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem,
deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é
noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a
atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue,
jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais
desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho.
Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não
consigo ter.
Tudo no meu torno é o universo nu, abstrato, feito de negações noturnas.
Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo
um conhecimento metafisico do mistério das coisas.
Por vezes amolece-se-me a alma, e então os pormenores sem forma da vida
quotidiana boiam-se-me à superfície da consciência, e estou lançamentos à
tona de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em
que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poético e involuntário, deixam
escorrer pela minha desatenção o seu espetáculo sem ruídos. Não tenho os
olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz que vem de
longe; são os candeeiros públicos acesos lá em baixo, nos confins
abandonados da rua.
Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas
melancólicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!... Cessar, passar
fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar vasto, em costas visíveis na
noite em que verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser incógnito e externo,
movimento de ramos em áleas afastadas, ténue cair de folhas, conhecido no
som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o
indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos,
labirintos naturais da treva!... Cessar, acabar finalmente, mas com uma
sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo
solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem
importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que
adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do
caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento — tudo que não fosse a
vida... E durmo, ao meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa
da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma
quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.
Durmo e desdurmo.
Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no
infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair.
Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo
quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que
a tenho vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na
sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me
matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas
pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da
almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece — não
é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao
fundo das coisas, soa a meia hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo,
tudo é tão negro e tão frio!
Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.
Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da
noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir,
deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto.
Posso deixar-me à vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, através do
sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, de veras,
que canta segunda vez.
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