92.
(a child hand's playing with cotton-reels, etc.)
Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da
minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida
interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a
janela para dentro de mim, pude esquecer-me na visão do seu movimento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca
prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca
pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para
mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem
podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a
sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho
longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi
sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumavam —
quase na distância das minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de
sonho em relação às outras partes da paisagem — uma doçura que fazia com
que eu as pudesse amar.
A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na
minha morte me abandonará. Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de
linha e peões de xadrez — com um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo –
mas tenho pena de o não fazer.., e alinho na minha imaginação,
confortavelmente, como quem no inverno se aquece a uma lareira, figuras que
habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo
de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.
Alguns passam dificuldades, outros têm uma vida boémia, pitoresca e
humilde. Há outros que são caixeiros-viajantes. (Poder sonhar-me caixeiroviajante foi sempre uma das minhas grandes ambições – irrealizável
infelizmente!) Outros moram em aldeias e vilas lá para as vizinhanças de um
Portugal dentro de mim; vêm à cidade, onde por acaso os encontro e
reconheço, abrindo-lhes os braços, numa atração ... E quando sonho isto,
passeando no meu quarto, falando alto, gesticulando.., quando sonho isto, e
me visiono encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo, brilhamme os olhos, abro os braços e tenho uma felicidade enorme, real.
Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!
O que eu sinto quando penso no passado que tive no tempo real, quando
choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida,... Isso mesmo não atinge
o fervor doloroso e trémulo com que choro sobre não serem reais as figuras
humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secundárias que me recordo de
ter visto uma só vez, por acaso, na minha pseudovida, ao virar uma esquina da
minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri por
esse sonho fora.
A raiva de a saudade não poder reavivar e reerguer nunca é tão lacrimosa
contra Deus, que criou impossibilidades, do que quando medito que os meus
amigos de sonho, com quem passei tantos detalhes de uma vida suposta, com
quem tantas conversas iluminadas, em cafés imaginários, tenho tido, não
pertenceram, afinal, a nenhum espaço onde pudessem ser, realmente,
independentes da minha consciência deles!
Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo!
As flores do jardim da pequena casa de campo e que não existiu senão em
mim. As hortas, os pomares, o pinhal, da quinta que foi só um meu sonho! As
minhas vilegiaturas supostas, os meus passeios por um campo que nunca
existiu! As árvores de à beira da estrada, os atalhos, as pedras, os camponeses
que passam... Tudo isto, que nunca passou de um sonho, está guardado na
minha memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los, passo horas
depois a recordar tê-los sonhado e é, na verdade, saudade que eu tenho, um
passado que eu choro, uma vida-real morta que fito, solene no seu caixão.
Há também as paisagens e as vidas que não foram inteiramente interiores.
Certos quadros, sem subido relevo artístico, certas oleogravuras que havia em
paredes com que convivi muitas horas — passam a realidade dentro de mim.
Aqui a sensação era outra, mais pungente e triste. Ardia-me não poder estar
ali, quer eles fossem reais ou não. Não ser eu, ao menos, uma figura a mais
desenhada ao pé daquele bosque ao luar que havia numa pequena gravura de
um quarto onde dormi já não em pequeno!
Não poder eu pensar que estava ali oculto, no bosque à beira do rio, por
aquele luar eterno (embora mal desenhado), vendo o homem que passa num
barco por baixo do debruçar-se de um salgueiro! Aqui o não poder sonhar
inteiramente doía-me. As feições da minha saudade eram outras. Os gestos do
meu desespero eram diferentes. A impossibilidade que me torturava era de
outra ordem de angústia. Ah, não ter tudo isto um sentido em Deus, uma
realização conforme o espírito dos nossos desejos, não sei onde, por um
tempo vertical, consubstanciado com a direção das minhas saudades e dos
meus devaneios! Não haver, pelo menos só para mim, um paraíso feito disto!
Não poder eu encontrar os amigos que sonhei, passear pelas ruas que criei,
acordar, entre o ruído dos galos e das galinhas e o rumorejar matutino da casa,
na casa de campo em que eu me supus... E tudo isto mais perfeitamente
arranjado por Deus, posto naquela perfeita ordem para existir, na precisa
forma para eu o ter que nem os meus próprios sonhos atingem senão na falta
de uma dimensão do espaço intimo que entretém essas pobres realidades...
Ergo a cabeça de sobre o papel em que escrevo... E cedo ainda. Mal passa o
meio-dia e é domingo. O mal da vida, a doença de ser consciente, entra com o
meu próprio corpo e perturba-me. Não haver ilhas para os inconfortáveis,
alamedas vetustas, inencontráveis de antes, para os isolados no sonhar! Ter de
viver e, por pouco que seja, de agir; ter de roçar pelo facto de haver outra
gente, real também, na vida! Ter de estar aqui escrevendo isto, por me ser
preciso à alma fazê-lo, e, mesmo isto, não poder sonhá-lo apenas, exprimi-Lo
sem palavras, sem consciência mesmo, por uma construção de mim próprio
em música e esbatimento, de modo que me subissem as lágrimas aos olhos só
de me sentir expressar-me, e eu fluísse, como um rio encantado, por lentos
declives de mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e o Distante, sem
sentido nenhum exceto Deus.
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