254.
Mais que uma vez, ao passear lentamente pelas ruas da tarde, me tem
batido na alma, com uma violência súbita e estonteante, a estranhíssima
presença da organização das coisas. Não são bem as coisas naturais que tanto
me afetam, que tão poderosamente me trazem esta sensação: são antes os
arruamentos, os letreiros, as pessoas vestidas e falando, os empregos, os
jornais, a inteligência de tudo. Ou, antes, é o facto de que existem
arruamentos, letreiros, empregos, homens, sociedade, tudo a entender-se e a
seguir e a abrir caminhos.
Reparo no homem diretamente, e vejo que é tão inconsciente como um cão
ou um gato; fala por uma inconsciência de outra ordem; organiza-se em
sociedade por uma inconsciência de outra ordem, absolutamente inferior à
que empregam as formigas e as abelhas na sua vida social. E então, tanto ou
mais que da existência de organismos, tanto ou mais que da existência de leis
físicas rígidas e intelectuais, se me revela por uma luz evidente a inteligência
que cria e impregna o mundo.
Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha frase de não sei que
escolástico: Deus est anima brutorum, Deus é a alma dos brutos. Assim
entendeu o autor da frase, que é maravilhosa, explicar a certeza com que o
instinto guia os animais inferiores, em que se não divisa inteligência, ou mais
que um esboço dela. Mas todos somos animais inferiores — falar e pensar são
apenas novos instintos, menos seguros que os outros porque novos. E a frase
do escolástico, tão justa na sua beleza, alarga-se, e digo, Deus é a alma de
tudo.
Nunca compreendi que quem uma vez considerou este grande facto da
relojoaria universal pudesse negar o relojoeiro em que o mesmo Voltaire não
descreu. Compreendo que, atendendo a certos factos aparentemente
desviados de um plano (e era preciso saber o plano para saber se são
desviados), se atribua a essa inteligência suprema algum elemento de
imperfeição. Isso compreendo, se bem que o não aceite. Compreendo ainda
que, atendendo ao mal que há no mundo, se não possa aceitar a bondade
infinita dessa inteligência criadora. Isso compreendo, se bem que o não aceite
também. Mas que se negue a existência dessa inteligência, ou seja, de Deus, é
coisa que me parece uma daquelas estupidezes que tantas vezes afligem, num
ponto da inteligência, homens que, em todos os outros pontos dela, podem
ser superiores; como os que erram sempre as somas, ou, ainda, e pondo já no
jogo a inteligência da sensibilidade, os que não sentem a música, ou a pintura,
ou a poesia.
Não aceito, disse, nem o critério do relojoeiro imperfeito nem o do
relojoeiro sem benevolência. Não aceito o critério do relojoeiro imperfeito
porque aqueles pormenores do governo e ajustamento do mundo, que nos
parecem lapsos ou sem-razões, não podem, como tal, ser verdadeiramente
dados sem que saibamos o plano. Vemos claramente um plano em tudo;
vemos certas coisas que nos parecem sem razão, mas é de ponderar que, se há
em tudo uma razão, haverá nisso também a mesma razão que há em tudo.
Vemos a razão, porém não o plano; como diremos, então, que certas coisas
estão fora do plano que não sabemos o que é? Assim como um poeta de
ritmos subtis pode intercalar um verso arrítmico para fins rítmicos, isto é, para
o próprio fim de que parece afastar-se, e um crítico mais purista do retilíneo
que do ritmo chamará errado esse verso, assim o Criador pode intercalar o
que a nossa estreita ilógica?
Considera arritmias no decurso majestoso do seu
ritmo metafísico. Nem aceito, disse, o critério do relojoeiro sem benevolência.
Concordo que é um argumento de mais difícil resposta, mas é-o só
aparentemente. Podemos dizer que não sabemos bem o que é o mal, não
podendo por isso afirmar se uma coisa é má ou boa. O certo, porém, é que
uma dor, ainda que para nosso bem, é em si mesma um mal, e basta isso para
que haja mal no mundo. Basta uma dor de dentes para fazer descrer na
bondade do Criador. Ora o erro essencial deste argumento parece residir no
nosso completo desconhecimento do plano de Deus, e o nosso igual
desconhecimento do que possa ser, como pessoa inteligente, o Infinito
Intelectual.
Uma coisa é a existência do mal, outra a razão dessa existência. A
distinção é talvez subtil ao ponto de parecer sofística, mas o certo é que é
justa. A existência do mal não pode ser negada, mas a maldade da existência
do mal pode não ser aceite. Confesso que o problema subsiste, mas subsiste
porque subsiste a nossa imperfeição.
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