Aires de Libertad

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    FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

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    Mensaje por Maria Lua 03.11.22 8:05

    259.


    Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim
    corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a
    sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie — nem
    sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em
    mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal
    página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha
    vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer
    inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de
    engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio
    passivo de coisa movida.

    Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em
    que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo
    sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam
    festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo
    mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as
    ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si
    mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim
    em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia,
    malhado e confuso.

    Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa
    que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em
    que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta o passo célebre de Vieira
    sobre o Rei Salomão. "Fabricou Salomão um palácio..." E fui lendo, até ao
    fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma
    felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar.
    Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir
    das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele
    assombro vocálico em que os sons são cores ideais — tudo isso me toldou de
    instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje,
    relembrando, ainda choro. Não é — não — a saudade da infância de que não
    tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não
    poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

    Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num
    sentido, um alto sentimento patriótico. A minha pátria é a língua portuguesa.
    Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me
    incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único
    ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe,
    não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como
    pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem
    ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o
    cuspisse.
    Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e
    ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu veto manto
    régio, pelo qual é senhora e rainha.


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    Mensaje por Maria Lua 03.11.22 8:07

    260.



    A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar
    deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação.
    O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente
    incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais
    incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto,
    tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer
    tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o
    que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela
    pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as
    pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num
    sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza
    daquilo que senti.

    Tudo quanto é abstrato é difícil de compreender, porque é difícil de
    conseguir para ele a atenção de quem o leia. Darei, por isso, um exemplo
    simples, em que as abstrações que formei se concretizarão. Suponha-se que,
    por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio
    de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de
    mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que
    de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como
    propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há
    comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem a escrever.

    Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte,
    a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles; sem e
    nem há comunicação nem necessidade de a fazer. Procuro qual será a emoção
    humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou
    agora, pelas razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado
    ou um lisboeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que
    produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infância perdida.
    Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância
    perdida; demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e
    mobília da velha casa na província; evoco a felicidade de não ter direitos nem
    deveres, de ser livre por não saber pensar nem sentir — e esta evocação, se
    for bem feita como prosa e visões, vai despertar no meu leitor exatamente a
    emoção que eu senti, e que nada tinha com infância.

    Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e
    espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da
    existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a
    nossa, que se conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da
    alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de
    uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e
    subtis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras
    forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da
    ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e
    intransmissível, se nunca poderia fazer.

    A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte – uma
    que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa alma atenta.
    A primeira é a poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na
    própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma
    pretende dar-nos a verdade por meio de linhas variadamente regradas, que
    mentem à inerência da fala; outra pretende dar-nos a verdade por uma
    realidade que todos sabemos bem que nunca houve.

    Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um olhar significativo
    que não medite, de repente, e seja de quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no
    fundo da alma em cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer
    comprar ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o estadista que nos
    compra amou, ao menos, o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos,
    amou, ao menos, o comprarmo-la. Não fugimos, por mais que queiramos, à
    fraternidade universal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo
    que trocamos.


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    Mensaje por Maria Lua 03.11.22 8:08

    261.



    Em mim todas as afeições se passam à superfície, mas sinceramente. Tenho
    sido ator sempre, e a valer. Sempre que amei, fingi que amei, e para mim
    mesmo o finjo.


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    Mensaje por Maria Lua 03.11.22 8:09

    262.


    Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num
    relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém.
    Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino
    deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele.
    Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reencarnar,
    reencarnei sem mim, sem ter eu reencarnado.

    Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro
    que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei
    pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando
    aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube
    completar .

    Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém
    raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do
    alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direção,
    infinitupla e vazia. A minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à
    roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em
    nada, e nas águas que são mais giro que águas boiam todas as imagens do que
    vi e ouvi no mundo — vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e
    sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.

    E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma
    geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só
    para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem.
    Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos
    muros, o centro de tudo com o nada à roda.

    E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a
    humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada do universo morto, o
    cadáver rodante do espaço físico, o fim de todos os mundos flutuando negro
    ao vento, disforme, anacrónico, sem Deus que o houvesse criado, sem ele
    mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo.
    Poder saber pensar! Poder saber sentir!
    A minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer...


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    Mensaje por Maria Lua 03.11.22 8:11

    263.



    Tão dado como sou ao tédio, é curioso’ que nunca, até hoje, me lembrou
    de meditar em que consiste. Estou hoje, deveras, nesse estado intermédio da
    alma em que nem apetece a vida nem outra coisa. E emprego a súbita
    lembrança de que nunca pensei em o que fosse, em sonhar, ao longo de
    pensamentos meio impressões, a análise, sempre um pouco factícia, do que ele
    seja.
    Não o sei, realmente, se o tédio é somente a correspondência desperta da
    sonolência do vadio, se é coisa, na verdade, mais nobre que esse
    entorpecimento. Em mim, o tédio é frequente, mas, que eu saiba, porque
    reparasse, não obedece a regras de aparecimento. Posso passar sem tédio um
    domingo inerte; posso sofrê-lo, repentinamente, como uma nuvem externa,
    em pleno trabalho atento. Não consigo relacioná-lo com um estado da saúde
    ou da falta dela; não alcanço conhecê-lo como produto de causas que estejam
    na parte evidente de mim.

    Dizer que é uma angústia metafísica disfarçada, que é uma grande desilusão
    incógnita, que é uma poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que
    dá para a vida — dizer isto, ou o que seja irmão disto, pode colorir o tédio,
    como uma criança ao desenho cujos contornos transborde e apague, mas não
    me traz mais que um som de palavras a fazer eco nas caves do pensamento.

    O tédio... Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem
    que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com
    a náusea de não querer — tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele
    mais que uma paráfrase ou uma translação. E, na sensação direta, como se de
    sobre o fosso do castelo da alma se erguesse a ponte levadiça, nem restasse,
    entre o castelo e as terras, mais que o poder olhá-las sem as poder percorrer.
    Há um isolamento de nós em nós mesmos, mas um isolamento onde o que
    separa está estagnado como nós, água suja cercando o nosso
    desentendimento.

    O tédio... Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem
    raciocínio... É como a possessão por um demónio negativo, um
    embruxamento por coisa nenhuma. Dizem que os bruxos, ou os pequenos
    magos, conseguem, de nós imagens, e a elas infligindo maus tratos, que esses
    maus tratos, por uma transferência astral, se reflitam em nós.

    O tédio surgeme, na sensação transposta desta imagem, como o reflexo maligno de
    bruxedos de um demónio das fadas, exercidas, não sobre uma imagem minha,
    senão sobre a sua sombra. E na sombra íntima de mim, no exterior do interior
    da minha alma, que se colam papéis ou se espetam alfinetes. Sou como o
    homem que vendeu a sombra, ou, antes, como a sombra do homem que a
    vendeu.

    O tédio... Trabalho bastante. Cumpro o que os moralistas da ação
    chamariam o meu dever social. Cumpro esse dever, ou essa sorte, sem grande
    esforço nem notável desinteligência. Mas, umas vezes em pleno trabalho,
    outras vezes no pleno descanso que, segundo os mesmos moralistas, mereço e
    me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um fel de inércia, e estou
    cansado, não da obra ou do repouso, mas de mim.

    De mim porquê, se não pensava em mim? De que outra coisa, se não
    pensava nela? O mistério do universo, que baixa às minhas contas ou ao meu
    reclínio? A dor universal de viver que se particulariza subitamente na minha
    alma mediúnica? Para quê enobrecer tanto quem não se sabe quem é? É uma
    sensação de vácuo, uma fome sem vontade de comer, tão nobre como estas
    sensações do simples cérebro, do simples estômago, vindas de fumar de mais
    ou de não digerir bem.

    O tédio... E talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe
    termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente
    somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a
    insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro
    da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a
    estrada sem nada de não saber sentir...

    O tédio... Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma
    mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o ceticismo
    não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua
    capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde
    ele sobe sólido à verdade.
    26


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    Mensaje por Maria Lua 03.11.22 8:12

    264.


    Conheço, translata, a sensação de ter comido de mais. Conheço-a com a
    sensação, não com o estômago. Há dias em que em mim se comeu de mais.
    Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali
    de maneira nenhuma.

    Mas nessas ocasiões, como facto impropício, sói surgir, do meu modorrar
    indemne, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do
    desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há de
    acontecer tem para mim um grande brilho.

    Nessas horas estranhas não é só a minha vida material, mas a minha própria
    vida moral, que me são só apensos — desleixo a ideia do dever mas também a
    ideia de ser, e tenho sono físico do universo inteiro. Durmo o que conheço e
    o que sonho com uma igualdade que me pesa nos olhos. Sim, nessas horas sei
    mais de mim do que nunca soube, e todo eu sou todas as sestas de mendigos
    entre as árvores da quinta de Ninguém





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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 05.11.22 14:38

    265.



    A ideia de viajar seduz-me por translação, como se fosse a ideia própria
    para seduzir alguém que eu não fosse. Toda a vasta visibilidade do mundo me
    percorre, num movimento de tédio colorido, a imaginação acordada; esboço
    um desejo como quem já não quer fazer gestos, e o cansaço antecipado das
    paisagens possíveis aflige-me, como um vento torpe, a flor do coração que
    estagnou.
    E como as viagens as leituras, e como as leituras tudo... Sonho uma vida
    erudita, entre o convívio mudo dos antigos e dos modernos, renovando as
    emoções pelas emoções alheias, enchendo-me de pensamentos contraditórios
    na contradição dos meditadores e dos que quase pensaram, que são a maioria
    dos que escreveram. Mas só a ideia de ler se me desvanece se tomo de cima da
    mesa um livro qualquer, o facto físico de ter que ler anula-me a leitura... Do
    mesmo modo se me estiola a ideia de viajar se acaso me aproximo de onde
    possa haver embarque. E regresso às duas coisas nulas em que estou certo, de
    nulo também que sou — à minha vida quotidiana de transeunte incógnito, e
    aos meus sonhos como insónias de acordado.
    E como as leituras tudo... Desde que qualquer coisa se possa sonhar como
    interrompendo deveras o decurso mudo dos meus dias, ergo olhos de
    protesto pesado para a sílfide que me é própria, aquela coitada que seria talvez
    sereia se tivesse aprendido a cantar.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 05.11.22 14:40

    266.



    Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde
    morávamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da
    menina que nunca vi. Descubro hoje que, por processos de infiltração que
    desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a porta lá de
    baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e
    fechada num lugar branco’ onde verdejam negros os ciprestes.

    Eu era criança, e hoje não o sou; o som, porém, é igual na recordação ao
    que era na verdade, e tem, perenemente presente, se se ergue de onde finge
    que dorme, a mesma lenta teclagem, a mesma rítmica monotonia. Invade-me,
    de o considerar ou sentir, uma tristeza difusa, angustiosa, minha.
    Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha)
    infância, se perca. É a fuga abstrata do tempo, não a fuga concreta do tempo
    que é meu, que me dói no cérebro físico pela recorrência repetida,
    involuntária, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anónimo e
    longínquo. É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente
    coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da
    minha recordação.

    Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta que nunca vi, onde a
    aprendiz a que não conheci está ainda hoje relatando, dedo a dedo cuidadosos,
    as escalas sempre iguais do que já está morto. Vejo, vou vendo mais,
    reconstruo vendo. E todo o lar lá do andar de cima, saudoso hoje mas não
    ontem, vem erguendo-se fictício da minha contemplação desentendida.
    Suponho, porém, que nisto tudo sou translato, que a saudade que sinto não
    é bem minha, nem bem abstrata, mas a emoção intercetada de não sei que
    terceiro, a quem estas emoções, que em mim são literárias, fossem — di-lo-ia
    Vieira — literais. E na minha suposição de sentir que me magoo e angustio, e
    as saudades, a cuja sensação se me mareiam os olhos próprios, é por
    imaginação e outridade que as penso e sinto.

    E sempre, com uma constância que vem do fundo do mundo, com uma
    persistência que estuda metafisicamente, soam, soam, soam, as escalas de
    quem aprende piano, pela espinha dorsal física da minha recordação. São as
    ruas antigas com outra gente, hoje as mesmas ruas diversas; são pessoas
    mortas que me estão falando, através da transparência da falta delas hoje; são
    remorsos do que fiz ou não fiz, sons de regatos na noite, ruídos lá em baixo
    na casa queda.

    Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar, partir esse
    impossível disco gramofónico que soa dentro de mim em casa alheia,
    torturador intangível. Quero mandar parar a alma, para que ela, como veículo
    que me ocupassem, siga para diante só e me deixe. Endoideço de ter que
    ouvir. E por fim sou eu, no meu cérebro odientamente sensível, na minha pele
    pelicular, nos meus nervos postos à superfície, as teclas tecladas em escalas, ó
    piano horroroso e pessoal da nossa recordação.
    E sempre, sempre, como que numa parte do cérebro que se tornasse
    independente, soam, soam, soam escalas lá em baixo, lá em cima, da primeira
    casa de Lisboa onde vim habitar





    338


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    Mensaje por Maria Lua 08.11.22 14:22

    267.



    É a ultima morte do Capitão Nemo. Em breve morrerei também.
    Foi toda a minha infância passada que nesse momento ficou privada de
    poder durar.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 08.11.22 14:23

    268.


    O olfato é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um
    desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes. Passo
    numa rua. Não vejo nada, ou antes, olhando tudo, vejo como toda a gente vê.
    Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com lados feitos de casas
    diferentes e construídas por gente humana. Passo numa rua. De uma padaria
    sai um cheiro a pão que nauseia por doce no cheiro dele: e a minha infância
    ergue-se de determinado bairro distante, e outra padaria me surge daquele
    reino das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de
    repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja estreita; e a minha breve vida
    de campo, não sei já quando nem onde, tem árvores ao fim e sossego no meu
    coração, indiscutivelmente menino. Passo uma rua. Transtorna-me, sem que
    eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesário, apareces-me e
    eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que é a
    literatura.



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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 08.11.22 14:23

    269.



    Ter já lido os Pickwick Papers é uma das grandes tragédias da minha vida.
    (Não posso tornar a relê-los.)


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 08.11.22 14:24

    270.

    A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos
    os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os
    nossos — vis porque são nossos e vis porque são vis.
    O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte,
    ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono e drogas tem
    cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e,
    quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele
    mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque
    a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela
    não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que
    paguemos por ter gozado dela.

    O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos
    nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.
    Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso — o rasto da
    passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo.
    Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma
    coisa a sua essência.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 08.11.22 14:24

    271.


    Não o amor, mas os arredores é que vale a pena...
    A repressão do amor ilumina os fenómenos dele com muito mais clareza
    que a mesma experiência. Há virgindades de grande entendimento. Agir
    compensa mas confunde. Possuir é ser possuído, e portanto perder-se. Só a
    ideia atinge, sem se estragar, o conhecimento da realidade








    240


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 11.11.22 20:56

    272.



    Cristo’ é uma forma da emoção.
    No panteão há lugar para os deuses que se excluem uns aos outros, e todos
    têm assento e regência. Cada um pode ser tudo, porque aqui não há limites,
    nem até lógicos, e gozamos, no convívio de vários eternos da coexistência de
    diferentes infinitos e de diversas eternidades.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 11.11.22 20:57

    273.



    A história nega as coisas certas. Há períodos de ordem em que tudo é vil e
    períodos de desordem em que tudo é alto. As decadências são férteis em
    virilidade mental; as épocas de força em fraqueza do espírito. Tudo se mistura
    e se cruza, e não há verdade senão no supô-la.
    Tantos nobres ideais caídos entre o estrume, tantas ânsias verdadeiras
    extraviadas entre o enxurro!
    Para mim são iguais, deuses ou homens, na confusão prolixa do destino
    incerto. Desfilam-me, neste quarto andar incógnito, em sucessões de sonhos,
    e não são mais para mim do que foram para os que acreditaram neles.
    Manipansos dos negros de olhos incertos e espantados, deuses-bichos dos
    selvagens de sertões emaranhados, símbolos figurados de egípcios, claras
    divindades gregas, hirtos deuses romanos, Mitra senhor do Sol e da emoção,
    Jesus senhor da consequência e da caridade, critérios vários do mesmo Cristo,
    santos novos deuses das novas vilas, todos desfilam, todos, na marcha fúnebre
    (romaria ou enterro) do erro e da ilusão. Marcham todos, e atrás deles
    marcham, sombras vazias, os sonhos que, por serem sombras no chão, os
    piores sonhadores julgam que estão assentes sobre a terra — pobres conceitos
    sem alma nem figura, Liberdade, Humanidade, Felicidade, o Futuro Melhor, a
    Ciência Social, e arrastam-se na solidão da treva como folhas movidas um
    pouco para a frente por uma cauda de manto régio que houvesse sido
    roubado por mendigos .


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    Mensaje por Maria Lua 11.11.22 20:59

    274.


    Ah, é um erro doloroso e crasso aquela distinção que os revolucionários
    estabelecem entre burgueses e povo, ou fidalgos e povo, ou governantes e
    governados. A distinção é entre adaptados e inadaptados: o mais é literatura, e
    má literatura. O mendigo, se é adaptado, pode amanhã ser rei, porém perdeu
    com isso a virtude de ser mendigo. Passou a fronteira e perdeu a
    nacionalidade.

    Isto me consola neste escritório estreito, cujas janelas mal lavadas dão sobre
    uma rua sem alegria. Isto me consola, em o qual tenho por irmãos os
    criadores da consciência do mundo — o dramaturgo atabalhoado William
    Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, e até, se a
    citação se permite, aquele Jesus Cristo que não foi nada no mundo, tanto que
    se duvida dele pela história. Os outros são de outra espécie — o conselheiro
    de estado Johann Wolfgang von Goethe, o senador Victor Hugo, o chefe
    Lenine, o chefe Mussolini.

    Nós na sombra, entre os moços de fretes e os barbeiros, constituímos a
    humanidade de um lado estão os reis, com o seu prestígio, os imperadores,
    com a sua glória, os génios, com a sua aura, os santos, com a sua auréola, os
    chefes do povo, com o seu domínio, as prostitutas, os profetas e os ricos... Do
    outro estamos nós — o moço de fretes da esquina, o dramaturgo atabalhoado
    William Shakespeare, o barbeiro das anedotas, o mestre-escola John Milton, o
    marçano da tenda, o vadio Dante Alighieri, os que a morte esquece ou
    consagra, e a vida esqueceu sem consagrar.






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    Mensaje por Maria Lua 12.11.22 8:06

    275.



    O governo do mundo começa em nós mesmos. Não são os sinceros que
    governam o mundo, mas também não são os insinceros. São os que fabricam
    em si uma sinceridade real por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade
    constitui a sua força, e é ela que irradia para a sinceridade menos falsa dos
    outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista. Só aos poetas e
    aos filósofos compete a visão prática do mundo, porque só a esses é dado não
    ter ilusões. Ver claro é não agir.


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    Mensaje por Maria Lua 12.11.22 8:06

    276.


    Uma opinião é uma grosseria, mesmo quando não é sincera.
    Toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto,
    não há liberais.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 12.11.22 8:08

    277.


    Tudo ali é quebrado, anónimo e impertencente. Vi ali grandes movimentos
    de ternura, que me pareceram revelar o fundo de pobres almas tristes;
    descobri que esses movimentos não duravam mais que a hora em que eram
    palavras, e que tinham raiz — quantas vezes o notei com a sagacidade dos
    silenciosos — na analogia de qualquer coisa com o piedoso, perdida com a
    rapidez da novidade da notação, e, outras vezes, no vinho do jantar do
    enternecido. Havia sempre uma relação sistematizada entre os
    humanitarismos e a aguardente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos
    que sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.

    Essas criaturas tinham todas vendido a alma a um diabo da plebe infernal,
    avarento de sordidezas e de relaxamentos. Viviam a intoxicação da vaidade e
    do ócio, e morriam molemente, entre coxins de palavras, num
    amarfanhamento de lacraus de cuspo.
    O mais extraordinário de toda essa gente era a nenhuma importância, em
    nenhum sentido, de toda ela. Uns eram redatores dos principais jornais, e
    conseguiam não existir; outros tinham lugares públicos em vista no anuário e
    conseguiam não figurar em nada da vida; outros eram poetas até consagrados,
    mas uma mesma poeira de cinza lhes tornava lívidas as faces parvas, e tudo
    era um túmulo de embalsamados hirtos, postos com a mão nas costas em
    posturas de vidas.

    Guardo do pouco tempo que me estagnei nesse exílio da esperteza mental
    uma recordação de bons momentos de graça franca, de muitos momentos
    monótonos e tristes, de alguns perfis recortados no nada, de alguns gestos
    dados às serventes do acaso, e, em resumo, um tédio de náusea física e a
    memória de algumas anedotas com espírito.
    Neles se intercalavam, como espaços, uns homens de mais idade, alguns
    com ditos de espírito pregresso, que diziam mal como os outros, e das
    mesmas pessoas.

    Nunca senti tanta simpatia pelos inferiores da glória pública como quando
    os vi malsinar por estes inferiores sem querer essa pobre glória. Reconheci a
    razão do triunfo porque os párias do Grande triunfavam em relação a estes, e
    não em relação à humanidade.
    Pobres diabos sempre com fome — ou com fome de almoço, ou com
    fome de celebridade, ou com fome das sobremesas da vida. Quem os ouve, e
    os não conhece, julga estar escutando os mestres de Napoleão e os instrutores
    de Shakespeare.

    Há os que vencem no amor, há os que vencem na política, há os que
    vencem na arte. Os primeiros têm a vantagem da narrativa, pois se pode
    vencer largamente no amor sem haver conhecimento célebre do que sucedeu.
    E certo que, ao ouvir contar a qualquer desses indivíduos as suas Maratonas
    sexuais, uma vaga suspeita nos invade, pela altura do sétimo desfloramento.
    Os que são amantes de senhoras de título, ou muito conhecidas (são, aliás,
    quase todos), fazem um tal gasto de condessas que uma estatística das suas
    conquistas não deixaria sérias e comedidas nem as bisavós dos títulos
    presentes.

    Outros especializam no conflito físico, e mataram os campeões de boxe da
    Europa numa noite de pândega, à esquina do Chiado. Uns são influentes
    junto de todos os ministros de todos os ministérios, e estes são aqueles de que
    menos há que duvidar, pois não repugna.
    Uns são grandes sádicos, outros são grandes pederastas, outros confessam,
    com uma tristeza de voz alta, que são brutais com mulheres. Trouxeram-nas
    ali, a chicote, pelos caminhos da vida. No fim ficam a dever o café.
    Há os poetas, há-os.

    Não conheço melhor cura para toda esta enxurrada de sombras que o
    conhecimento direito da vida humana corrente, na sua realidade comercial,
    por exemplo, como a que surge no escritório da Rua dos Douradores. Com
    que alívio eu volvia daquele manicómio de títeres para a presença real do
    Moreira, meu chefe, guarda-livros autêntico e sabedor, mal vestido e mal
    tratado, mas, o que nenhum dos outros conseguia ser, o que se chama um
    homem...


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 12.11.22 8:09

    278.



    A maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia e alheia.
    A maioria da gente é outra gente, disse Óscar Wilde, e disse bem. Uns
    gastam a vida na busca de qualquer coisa que não querem;
    outros empregamse na busca do que querem e lhes não serve; outros, ainda, se perdem.
    Mas a maioria é feliz e goza a vida sem isso valer. Em geral, o homem
    chora pouco, e, quando se queixa, é a sua literatura. O pessimismo tem pouca
    viabilidade como fórmula democrática. Os que choram o mal do mundo são
    isolados — não choram senão o próprio. Um Leopardi, um Antero não têm
    amado ou amante? O universo é um mal. Um Vigny é mal ou pouco amado?
    O mundo é um cárcere. Um Chateaubriand sonha mais que o possível? A vida
    humana é tédio. Um Job é coberto de bolhas? A terra está coberta de bolhas.
    Pisam os calos do triste? Ai dos pés dos sóis e das estrelas.

    Alheia a isto, e chorando só o preciso e no menos tempo que pode —
    quando lhe morre o filho que esquecerá pelos anos fora, salvo nos
    aniversários; quando perde dinheiro e chora enquanto não arranja outro, ou se
    não adapta ao estado de perda — a humanidade continua digerindo e amando.
    A vitalidade recupera e reanima. Os mortos ficam enterrados. As perdas
    ficam perdidas.





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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 13.11.22 12:44

    256.



    Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas — intrigas,
    diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram
    sempre estas duas últimas coisas- a pretensão, que têm certos homens, de que,
    por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem — lá entre
    eles, exclusos todos nós outros – os grandes segredos que são os caboucos do
    mundo.

    Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim.
    Porque não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há
    alucinações coletivas.
    O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível, é
    que, quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem
    todos mal. Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar
    o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Porque há o
    comércio com os demónios ser mais fácil que o comércio com a gramática?

    Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue,
    conforme diz, ter visões astrais, porque não pode, com menor dispêndio de
    uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta
    Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser
    que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez,
    pois no próprio abstruso as pode haver? Porque há de gastar-se toda a energia
    da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há de sobrar um reles
    bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?

    Desconfio dos mestres que o não podem ser primários. São para mim
    como aqueles poetas estranhos que são incapazes de escrever como os outros.
    Aceito que sejam estranhos; gostara, porém, que me provassem que o são por
    superioridade ao normal e não por impotência dele.

    Dizem que há grandes matemáticos que erram adições simples; mas aqui a
    comparação não é com errar, mas com desconhecer. Aceito que um grande
    matemático some dois e dois para dar cinco: é um acto de distração, e a todos
    nós pode suceder. O que não aceito é que não saiba o que é somar, ou como
    se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua formidá
    vel maioria


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 13.11.22 12:44

    257.


    O pensamento pode ter elevação sem ter elegância, e, na proporção em que
    não tiver elegância, perderá a ação sobre os outros. A força sem a destreza é
    uma simples massa.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 13.11.22 12:46

    258.


    O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação’.
    Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se.
    E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu
    fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que
    escrever vivem sem enquanto.




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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 14.11.22 8:29

    259.



    Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim
    corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a
    sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie — nem
    sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em
    mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal
    página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha
    vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer
    inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de
    engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio
    passivo de coisa movida.

    Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em
    que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo
    sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam
    festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo
    mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as
    ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si
    mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim
    em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia,
    malhado e confuso.

    Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa
    que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em
    que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta o passo célebre de Vieira
    sobre o Rei Salomão. "Fabricou Salomão um palácio..." E fui lendo, até ao
    fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma
    felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar.

    Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir
    das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele
    assombro vocálico em que os sons são cores ideais — tudo isso me toldou de
    instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje,
    relembrando, ainda choro. Não é — não — a saudade da infância de que não
    tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não
    poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

    Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num
    sentido, um alto sentimento patriótico. A minha pátria é a língua portuguesa.
    Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me
    incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único
    ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe,
    não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como
    pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem
    ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o
    cuspisse.
    Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e
    ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu veto manto
    régio, pelo qual é senhora e rainha.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 14.11.22 8:31

    260.

    A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar
    deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação.
    O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente
    incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais
    incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto,
    tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer
    tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o
    que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela
    pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as
    pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num
    sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza
    daquilo que senti.

    Tudo quanto é abstrato é difícil de compreender, porque é difícil de
    conseguir para ele a atenção de quem o leia. Darei, por isso, um exemplo
    simples, em que as abstrações que formei se concretizarão. Suponha-se que,
    por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio
    de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de
    mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que
    de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como
    propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há
    comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem a escrever.

    Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte,
    a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles; sem e
    nem há comunicação nem necessidade de a fazer. Procuro qual será a emoção
    humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou
    agora, pelas razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado
    ou um lisboeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que
    produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infância perdida.

    Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância
    perdida; demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e
    mobília da velha casa na província; evoco a felicidade de não ter direitos nem
    deveres, de ser livre por não saber pensar nem sentir — e esta evocação, se
    for bem feita como prosa e visões, vai despertar no meu leitor exatamente a
    emoção que eu senti, e que nada tinha com infância.

    Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e
    espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da
    existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a
    nossa, que se conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da
    alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de
    uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e
    subtis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras
    forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da
    ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e
    intransmissível, se nunca poderia fazer.

    A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte – uma
    que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa alma atenta.
    A primeira é a poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na
    própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma
    pretende dar-nos a verdade por meio de linhas variadamente regradas, que
    mentem à inerência da fala; outra pretende dar-nos a verdade por uma
    realidade que todos sabemos bem que nunca houve.

    Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um olhar significativo
    que não medite, de repente, e seja de quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no
    fundo da alma em cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer
    comprar ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o estadista que nos
    compra amou, ao menos, o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos,
    amou, ao menos, o comprarmo-la. Não fugimos, por mais que queiramos, à
    fraternidade universal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo
    que trocamos.
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    Mensaje por Maria Lua 14.11.22 8:31

    261.


    Em mim todas as afeições se passam à superfície, mas sinceramente. Tenho
    sido ator sempre, e a valer. Sempre que amei, fingi que amei, e para mim
    mesmo o finjo.


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    Mensaje por Maria Lua 14.11.22 8:33

    262.

    Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num
    relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém.
    Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino
    deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele.
    Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reencarnar,
    reencarnei sem mim, sem ter eu reencarnado.

    Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro
    que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei
    pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando
    aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube
    completar
    .
    Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém
    raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do
    alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direção,
    infinitupla e vazia. A minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à
    roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em
    nada, e nas águas que são mais giro que águas boiam todas as imagens do que
    vi e ouvi no mundo — vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e
    sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.

    E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma
    geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só
    para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem.
    Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos
    muros, o centro de tudo com o nada à roda.

    E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a
    humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada do universo morto, o
    cadáver rodante do espaço físico, o fim de todos os mundos flutuando negro
    ao vento, disforme, anacrónico, sem Deus que o houvesse criado, sem ele
    mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo.
    Poder saber pensar! Poder saber sentir!
    A minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer...


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    Mensaje por Maria Lua 14.11.22 8:34

    263.

    Tão dado como sou ao tédio, é curioso’ que nunca, até hoje, me lembrou
    de meditar em que consiste. Estou hoje, deveras, nesse estado intermédio da
    alma em que nem apetece a vida nem outra coisa. E emprego a súbita
    lembrança de que nunca pensei em o que fosse, em sonhar, ao longo de
    pensamentos meio impressões, a análise, sempre um pouco factícia, do que ele
    seja.

    Não o sei, realmente, se o tédio é somente a correspondência desperta da
    sonolência do vadio, se é coisa, na verdade, mais nobre que esse
    entorpecimento. Em mim, o tédio é frequente, mas, que eu saiba, porque
    reparasse, não obedece a regras de aparecimento. Posso passar sem tédio um
    domingo inerte; posso sofrê-lo, repentinamente, como uma nuvem externa,
    em pleno trabalho atento. Não consigo relacioná-lo com um estado da saúde
    ou da falta dela; não alcanço conhecê-lo como produto de causas que estejam
    na parte evidente de mim.
    Dizer que é uma angústia m
    etafísica disfarçada, que é uma grande desilusão
    incógnita, que é uma poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que
    dá para a vida — dizer isto, ou o que seja irmão disto, pode colorir o tédio,
    como uma criança ao desenho cujos contornos transborde e apague, mas não
    me traz mais que um som de palavras a fazer eco nas caves do pensamento.
    O tédio... Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem
    que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com
    a náusea de não querer — tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele
    mais que uma paráfrase ou uma translação. E, na sensação direta, como se de
    sobre o fosso do castelo da alma se erguesse a ponte levadiça, nem restasse,
    entre o castelo e as terras, mais que o poder olhá-las sem as poder percorrer.
    Há um isolamento de nós em nós mesmos, mas um isolamento onde o que
    separa está estagnado como nós, água suja cercando o nosso
    desentendimento.

    O tédio... Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem
    raciocínio... É como a possessão por um demónio negativo, um
    embruxamento por coisa nenhuma. Dizem que os bruxos, ou os pequenos
    magos, conseguem, de nós imagens, e a elas infligindo maus tratos, que esses
    maus tratos, por uma transferência astral, se reflitam em nós.
    O tédio surgeme, na sensação transposta desta imagem, como o reflexo maligno de
    bruxedos de um demónio das fadas, exercidas, não sobre uma imagem minha,
    senão sobre a sua sombra. E na sombra íntima de mim, no exterior do interior
    da minha alma, que se colam papéis ou se espetam alfinetes. Sou como o
    homem que vendeu a sombra, ou, antes, como a sombra do homem que a
    vendeu.

    O tédio... Trabalho bastante. Cumpro o que os moralistas da ação
    chamariam o meu dever social. Cumpro esse dever, ou essa sorte, sem grande
    esforço nem notável desinteligência. Mas, umas vezes em pleno trabalho,
    outras vezes no pleno descanso que, segundo os mesmos moralistas, mereço e
    me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um fel de inércia, e estou
    cansado, não da obra ou do repouso, mas de mim.

    De mim porquê, se não pensava em mim? De que outra coisa, se não
    pensava nela? O mistério do universo, que baixa às minhas contas ou ao meu
    reclínio? A dor universal de viver que se particulariza subitamente na minha
    alma mediúnica? Para quê enobrecer tanto quem não se sabe quem é? É uma
    sensação de vácuo, uma fome sem vontade de comer, tão nobre como estas
    sensações do simples cérebro, do simples estômago, vindas de fumar de mais
    ou de não digerir bem.

    O tédio... E talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe
    termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente
    somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a
    insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro
    da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a
    estrada sem nada de não saber sentir...
    O tédio... Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma
    mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o ceticismo
    não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua
    capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde
    ele sobe sólido à verdade.
    26


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 14.11.22 8:35

    264.

    Conheço, translata, a sensação de ter comido de mais. Conheço-a com a
    sensação, não com o estômago. Há dias em que em mim se comeu de mais.
    Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali
    de maneira nenhuma.

    Mas nessas ocasiões, como facto impropício, sói surgir, do meu modorrar
    indemne, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do
    desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há de
    acontecer tem para mim um grande brilho.

    Nessas horas estranhas não é só a minha vida material, mas a minha própria
    vida moral, que me são só apensos — desleixo a ideia do dever mas também a
    ideia de ser, e tenho sono físico do universo inteiro. Durmo o que conheço e
    o que sonho com uma igualdade que me pesa nos olhos. Sim, nessas horas sei
    mais de mim do que nunca soube, e todo eu sou todas as sestas de mendigos
    entre as árvores da quinta de Ninguém.







    333
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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 15.11.22 7:51

    265.


    A ideia de viajar seduz-me por translação, como se fosse a ideia própria
    para seduzir alguém que eu não fosse. Toda a vasta visibilidade do mundo me
    percorre, num movimento de tédio colorido, a imaginação acordada; esboço
    um desejo como quem já não quer fazer gestos, e o cansaço antecipado das
    paisagens possíveis aflige-me, como um vento torpe, a flor do coração que
    estagnou.

    E como as viagens as leituras, e como as leituras tudo... Sonho uma vida
    erudita, entre o convívio mudo dos antigos e dos modernos, renovando as
    emoções pelas emoções alheias, enchendo-me de pensamentos contraditórios
    na contradição dos meditadores e dos que quase pensaram, que são a maioria
    dos que escreveram. Mas só a ideia de ler se me desvanece se tomo de cima da
    mesa um livro qualquer, o facto físico de ter que ler anula-me a leitura... Do
    mesmo modo se me estiola a ideia de viajar se acaso me aproximo de onde
    possa haver embarque. E regresso às duas coisas nulas em que estou certo, de
    nulo também que sou — à minha vida quotidiana de transeunte incógnito, e
    aos meus sonhos como insónias de acordado.

    E como as leituras tudo... Desde que qualquer coisa se possa sonhar como
    interrompendo deveras o decurso mudo dos meus dias, ergo olhos de
    protesto pesado para a sílfide que me é própria, aquela coitada que seria talvez
    sereia se tivesse aprendido a cantar.


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