Aires de Libertad

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    Mensaje por Maria Lua Jue 20 Oct 2022, 15:57

    228.



    Tudo se penetra. A leitura dos clássicos, que não falam de poentes, tem-me
    tornado inteligíveis muitos poentes, em todas as suas cores. Há uma relação
    entre a competência sintática, pela qual se distingue a valia dos seres, dos sons,
    e das formas, e a capacidade de compreender quando o azul do céu é
    realmente verde, e que parte de amarelo existe no verde azul do céu.
    No fundo é a mesma coisa — a capacidade de distinguir e de subtilizar.
    Sem sintaxe não há emoção duradoura. A imortalidade é uma função dos
    gramáticos.



    287


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    y en ese vuelo y en ese sueño
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    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
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    Mensaje por Maria Lua Miér 26 Oct 2022, 10:05

    229.


    Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da
    mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler
    bem e ser profundo.
    Que coisa tão reles e baixa que é a vida! Repara que para ser baixa e reles
    basta não a quereres, ser-te dada, nada depender da tua vontade, nem mesmo
    da tua ilusão da tua vontade.
    Morrer é sermos outros totalmente. Por isso o suicídio é a cobardia; é
    entregarmo-nos totalmente à vida


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    Mensaje por Maria Lua Miér 26 Oct 2022, 10:06

    230.


    A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da
    emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não
    temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho,
    e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é a tal ponto
    forte que, embora reduzida à ação, a ação, a que se reduziu, não a satisfaz;
    com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de
    arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que
    exprime o que sobrou do que teve.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 26 Oct 2022, 10:06

    231.



    Fazer uma obra e reconhecê-la má depois de feita é uma das tragédias da
    alma. Sobretudo é grande quando se reconhece que essa obra é a melhor que
    se podia fazer. Mas ao ir escrever uma obra, saber de antemão que ela tem de
    ser imperfeita e falhada; ao está-la escrevendo estar vendo que ela é imperfeita
    e falhada — isto é o máximo da tortura e da humilhação do espírito. Não sé
    os versos que escrevo sinto que me não satisfazem, mas sei que os versos que
    estou para escrever me não satisfarão, também. Sei-o tanto filosoficamente,
    como carnalmente, por uma entrevisão obscura e gladiolada.
    Por que escrevo então? Porque, pregador que sou da renúncia, não aprendi
    ainda a executá-la plenamente. Não aprendi a abdicar da tendência para o
    verso e a prosa. Tenho de escrever como cumprindo um castigo. E o maior
    castigo é o de saber que o que escrevo resulta inteiramente fútil, falhado e
    incerto.
    Em criança escrevia já versos. Então escrevia versos muito maus, mas
    julgava-os perfeitos. Nunca mais tornarei a ter o prazer falso de produzir obra
    perfeita. O que escrevo hoje é muito melhor. É melhor, mesmo, do que o que
    poderiam escrever os melhores. Mas está infinitamente abaixo daquilo que eu,
    não sei porquê, sinto que podia — ou talvez seja, que devia — escrever.
    Choro sobre os meus versos maus da infância como sobre uma criança morta,
    um filho morto, uma última esperança que se fosse.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 26 Oct 2022, 10:07

    232.



    Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades
    que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida,
    soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer
    mais nobre que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos
    sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam formas que na vida se
    não encontram; são contudo sonhos, de que se acorda, que não constituem
    memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.
    A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida
    por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos
    os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode
    ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total.
    Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as
    querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá
    contudo que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas,
    erguendo-se acima de si mesmo num nirvana próprio.
    Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá,
    guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando
    não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua
    personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias,
    vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as
    impressões alheias. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque
    abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
    O campónio, o leitor de novelas, o puro asceta — estes três são os felizes
    da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade – um porque vive
    do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação, que é
    esquecimento, o terceiro porque não vive, e, não tendo morrido, dorme.
    Nada me satisfaz, nada me consola, tudo — quer haja sido, quer não – me
    sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo
    e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de
    passagem entre o que não tenho e o que não quero.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 26 Oct 2022, 10:08

    233.



    ... A tristeza solene que habita em todas as coisas grandes – nos píncaros
    como nas grandes vidas, nas noites profundas como nos poemas eternos.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 26 Oct 2022, 10:08

    234.



    Podemos morrer se apenas amámos.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 26 Oct 2022, 10:10

    235.


    Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-as sempre, e de
    todos. Nem ao mais casual tem sido fácil ser grosseiro, ou ser brusco, ou ser
    até frio para comigo. Algumas simpatias tive que, com auxílio meu, poderia —
    pelo menos talvez — ter convertido em amor ou afeto. Nunca tive paciência
    ou atenção do espírito para sequer desejar empregar esse esforço.

    A princípio de observar isto em mim, julguei — tanto nos desconhecemos
    — que havia neste caso da minha alma uma razão de timidez. Mas depois
    descobri que não havia; havia um tédio das emoções, diferente do tédio da
    vida, uma impaciência de me ligar a qualquer sentimento contínuo, sobretudo
    quando houvesse de se lhe atrelar um esforço prosseguido. Para quê? Pensava
    em mim o que não pensa. Tenho a subtileza bastante, o tato psicológico
    suficiente para saber o "como"; o "como do como" sempre me escapou. A
    minha fraqueza de vontade começou sempre por ser uma fraqueza da vontade
    de ter vontade. Assim me sucedeu nas emoções como me sucede na
    inteligência, e na vontade mesma, e em tudo quanto é vida.

    Mas daquela vez em que uma malícia da oportunidade me fez julgar que
    amava, e verificar deveras que era amado, fiquei, primeiro, estonteado e
    confuso, como se me saíra uma sorte grande em moeda inconvertível. Fiquei,
    depois, porque ninguém é humano sem o ser, levemente envaidecido; esta
    emoção, porém, que pareceria a mais natural, passou rapidamente. Sucedeu-se
    um sentimento difícil de definir, mas em que se salientavam incomodamente
    as sensações de tédio, de humilhação e de fadiga.

    De tédio, como se o Destino me houvesse imposto uma tarefa em serões
    desconhecidos. De tédio, como se um novo dever — o de uma horrorosa
    reciprocidade — me fosse dado com a ironia de um privilégio, que eu me teria
    ainda que maçar, agradecendo-o ao Destino. De tédio, como se me não
    bastasse a monotonia inconsistente da vida, para agora se lhe sobrepor a
    monotonia obrigatória de um sentimento definido.

    E de humilhação, sim, de humilhação. Tardei em perceber a que vinha um
    sentimento aparentemente tão pouco justificado pela sua causa. O amor a ser
    amado deveria ter-me aparecido. Deveria ter-me envaidecido de alguém
    reparar atentamente para a minha existência como ser-amável. Mas, à parte o
    breve momento de real envaidecimento, em que todavia não sei se o pasmo
    teve mais parte que a própria vaidade, a humilhação foi a sensação que recebi
    de mim. Senti que me era dada uma espécie de prémio destinado a outrem —
    prémio, sim, de valia para quem naturalmente o merecesse.

    Mas fadiga, sobretudo fadiga — a fadiga que passa o tédio. Compreendi
    então uma frase de Chateaubriand que sempre me enganara por falta de
    experiência de mim mesmo. Diz Chateaubriand, figurando-se em René,
    "amarem-no cansava-o" — on le fatigait en l'aimant. Conheci, com pasmo,
    que isto representava uma experiência idêntica à minha, e cuja verdade
    portanto eu não tinha o direito de negar.

    A fadiga de ser amado, de ser amado deveras! A fadiga de sermos o objeto
    do fardo das emoções alheias! Converter quem quisera ver-se livre, sempre
    livre, no moço de fretes da responsabilidade de corresponder, da decência de
    se não afastar, para que se não suponha que se é príncipe nas emoções e se
    renega o máximo que uma alma humana pode dar. A fadiga de se nos tornar a
    existência uma coisa dependente em absoluto de uma relação com um
    sentimento de outrem! A fadiga de, em todo o caso, ter forçosamente que
    sentir, ter forçosamente, ainda que sem reciprocidade, que amar um pouco
    também!
    Passou de mim, como até mim veio, esse episódio na sombra. Hoje não
    resta dele nada, nem na minha inteligência, nem na minha emoção. Não me
    trouxe experiência alguma que eu não pudesse ter deduzido das leis da vida
    humana cujo conhecimento instintivo albergo em mim porque sou humano.
    Não me deu nem prazer que eu recorde com tristeza, ou pesar que eu lembre
    com tristeza também. Tenho a impressão de que foi uma coisa que li algures,
    um incidente sucedido a outrem, novela de que li metade, e de que a outra
    metade faltou, sem que me importasse que faltasse, pois até onde a li estava
    certa, e, embora não tivesse sentido, tal era já que lhe não poderia dar sentido
    a parte faltante, qualquer que fosse o seu enredo.

    Resta-me apenas uma gratidão a quem me amou. Mas é uma gratidão
    abstrata, pasmada, mais da inteligência do que de qualquer emoção. Tenho
    pena que alguém tivesse tido pena pela minha causa; é disso que tenho pena, e
    não tenho pena de mais nada.

    Não é natural que a vida me traga outro encontro com as emoções naturais.
    Quase desejo que apareça para ver como sinto dessa segunda vez, depois de
    ter atravessado toda uma extensa análise da primeira experiência. É possível
    que sinta menos; é também possível que sinta mais. Se o Destino o der, que o
    dê. Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os factos, quaisquer que
    venham a ser, não tenho curiosidade alguma.




    294


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    Mensaje por Maria Lua Jue 27 Oct 2022, 07:37

    236.


    Não se subordinar a nada — nem a um homem, nem a um amor, nem a
    uma ideia, ter aquela independência longínqua que consiste em não crer na
    verdade, nem, se a houvesse, na utilidade do conhecimento dela — tal é o
    estado em que, parece-me, deve decorrer, para consigo mesma, a vida íntima
    intelectual dos que não vivem sem pensar. Pertencer — eis a banalidade.

    Credo, ideal, mulher ou profissão — tudo isso é a cela e as algemas. Ser é
    estar livre. A mesma ambição, se vão orgulho e paixão, é um fardo, não nos
    orgulharíamos se compreendêssemos que é um cordel pelo qual nos puxam.
    Não: nem ligações connosco! Livres de nós como dos outros, contemplativos
    sem êxtase, pensadores sem conclusão, viveremos, libertos de Deus, o
    pequeno intervalo que a distração dos algozes concede ao nosso êxtase na
    parada. Temos amanhã a guilhotina. Se a não tivéssemos amanhã tê-la-íamos
    depois de amanhã. Passeemos ao sol o repouso antes do fim, ignorantes
    voluntariamente dos propósitos e dos perseguimentos. O sol dourará nossas
    caras sem rugas e a brisa terá frescura para quem deixar de esperar’.

    Atiro a caneta pela secretária fora e ela rola, regressando, sem que eu a
    apanhe, pelo declive onde trabalho. Senti tudo de repente. E a minha alegria
    manifesta-se por este gesto da raiva que não sinto.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Jue 27 Oct 2022, 07:38

    237.



    Notas para uma regra de vida
    Precisar de dominar os outros é precisar dos outros. O chefe é um
    dependente.
    Aumentar a personalidade sem incluir nela nada alheio — nem pedindo aos
    outros, nem mandando nos outros, mas sendo outros quando outros são
    precisos.
    Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de
    outrem.
    É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível
    relativamente.
    Consideremos um dono de escritório. Ele tem obrigação de poder
    dispensar toda a gente; tem a obrigação de saber escrever à máquina, de saber
    contabilidade, de saber varrer o escritório. Que a sua dependência dos outros
    seja, portanto, só uma necessidade de não perder tempo, e não uma
    necessidade da incompetência própria. Que diga ao praticante, "Vá deitar esta
    carta no correio" porque não quer perder o tempo que levaria o deitá-la no
    correio, mas não porque não saiba onde é o correio. Que diga ao empregado,
    "Vá tratar deste assunto ali", porque não quer perder o tempo de o tratar, mas
    não porque não saiba tratá-lo.
    2


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    Mensaje por Maria Lua Jue 27 Oct 2022, 07:39

    238.



    Nenhum prémio certo tem a virtude, nenhum castigo certo o pecado. Nem
    seria justo que houvesse tal prémio ou tal castigo. Virtude ou pecado são
    manifestações inevitáveis de organismos condenados a um ou a outro,
    servindo a pena de serem bons ou a pena de serem maus. Por isso todas as
    religiões colocam as recompensas e os castigos, merecidos por quem, nada
    sendo nem podendo, nada pôde merecer, em outros mundos, de que
    nenhuma ciência pode dar notícia, de que nenhuma fé pode transmitir a visão.
    Abdiquemos, pois, de toda a crença sincera, como de toda a preocupação
    de influir em outrem.
    A vida, disse Tarde’, é a busca do impossível através do inútil.
    Busquemos sempre o impossível, porque tal é o nosso fado; busquemo-lo
    através do inútil, porque não passa caminho por outro ponto; ascendamos,
    porém, à consciência de que nada buscamos que possa obter-se, de que por
    nada passamos que mereça um carinho ou uma saudade.
    Cansamo-nos de tudo, exceto de compreender, disse o escoliasta.
    Compreendamos, compreendamos sempre, e façamos por tecer
    astuciosamente capelas ou grinaldas que hão de murchar também, as flores
    espectrais dessa compreensão.



    298


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    Mensaje por Maria Lua Vie 28 Oct 2022, 08:06

    239.


    Cansamo-nos de tudo, exceto de compreender. O sentido da frase é por
    vezes difícil de atingir.
    Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque quanto mais
    se pensa, mais se analisa, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão.
    Caímos então naquele estado de inércia em que o mais que queremos é
    compreender bem o que é exposto — uma atitude estética, pois que queremos
    compreender sem nos interessar, sem que nos importe que o compreendido
    seja ou não verdadeiro, sem que vejamos mais no que compreendemos senão
    a forma exata como foi exposto, a posição de beleza racional que tem para
    nós.
    Cansamo-nos de pensar, de ter opiniões nossas, de querer pensar para agir.
    Não nos cansamos, porém, de ter, ainda que transitoriamente, as opiniões
    alheias, para o único fim de sentir o seu influxo e não seguir o seu impulso.


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    Mensaje por Maria Lua Vie 28 Oct 2022, 08:07

    240.


    Paisagem da chuva



    Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva baixou. Toda a noite,
    comigo entredesperto, a sua monotonia fria me insistiu nos vidros. Ora um
    rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava
    mãos rápidas pela vidraça; ora um som surdo só fazia sono no exterior
    morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençóis como entre gente,
    dobrosamente consciente do mundo. Tardava o dia como a felicidade e àquela
    hora parecia que tardava indefinidamente.
    Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao menos, pudesse nem
    sequer ter a desilusão de conseguir.
    O som casual de um carro tardo, áspero a saltar nas pedras, crescia do
    fundo da rua, estralejava por baixo da vidraça, apagava-se para o fundo da rua
    para o fundo do vago sono que eu não conseguia de todo. Batia, de vez em
    quando, uma porta de escada. Às vezes havia um chapinhar líquido de passos,
    um roçar por si mesmas de vestes molhadas. Uma ou outra vez, quando os
    passos eram mais, soava alto e atacava. Depois o silêncio volvia, com os
    passos que se apagavam, e a chuva continuava, inumeravelmente.
    Nas paredes escuramente visíveis do meu quarto, se eu abria os olhos do
    sono falso, boiavam fragmentos de sonhos por fazer, vagas luzes, riscos
    pretos, coisas de nada que trepavam e desciam. Os móveis, maiores do que de
    dia, manchavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada por
    qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que a noite, mas
    diferente. Quanto à janela, eu só a ouvia.
    Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tardavam ao som dela.
    A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que
    eu queria, o que eu ia a sonhar. Os objetos vagos, participantes, na sombra, da
    minha insónia, passavam a ter lugar e dor na minha desolação.


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    Mensaje por Maria Lua Vie 28 Oct 2022, 08:08

    241.


    Sonho triangular


    A luz tornara-se de um amarelo exageradamente lento, de um amarelo sujo
    de lividez. Tinham crescido os intervalos entre as coisas, e os sons, mais
    espaçados de uma maneira nova, davam-se desligadamente. Quando se
    ouviam acabavam de repente, como que cortados. O calor, que parecia ter
    aumentado, parecia estar, ele calor, frio. Pela leve frincha das portas
    encostadas da janela via-se a atitude de exagerada expectativa da única árvore
    visível. O seu verde era outro. O silêncio entrara-lhe com a cor. Na atmosfera
    tinham-se fechado pétalas. E na própria composição do espaço uma interrelação diferente de qualquer coisa como planos havia alterado e quebrado o
    modo dos sons, das luzes e das cores usarem a extensão.



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    Mensaje por Maria Lua Vie 28 Oct 2022, 08:09

    242.


    À parte aqueles sonhos vulgares, que são as vergonhas correntes das
    alfurjas da alma, que ninguém ousará confessar, e oprimem as vigílias como
    fantasmas sujos, viscosidades e borbulhas sebentas da sensibilidade reprimida,
    o que de ridículo, o que de apavorador, e indizível, a alma pode, ainda que
    com esforço, reconhecer nos seus recantos!
    A alma humana é um manicómio de caricaturas. Se uma alma pudesse
    revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as
    vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem da verdade, um poço,
    mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis,
    viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho da subjetividade.





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    Mensaje por Maria Lua Lun 31 Oct 2022, 07:53

    244.



    Ser major reformado parece-me uma coisa ideal. É pena não se poder ter
    sido eternamente apenas major reformado.
    A sede de ser completo deixou-me neste estado de mágoa inútil.
    A futilidade trágica da vida.
    A minha curiosidade irmã das cotovias.
    A angústia pérfida dos poentes, tímida enxárcia nas auroras.
    Sentemo-nos aqui. De aqui vê-se mais céu. E consoladora a expansão
    enorme desta altura estrelada. Dói a vida menos ao vê-la; passa por nossa face
    quente da vida o aceno pequeno de um leque leve.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 31 Oct 2022, 07:54

    245.



    A alma humana é vítima tão inevitável da dor que sofre a dor da surpresa
    dolorosa mesmo com o que devia esperar. Tal homem, que toda a vida falou
    da inconstância e da volubilidade feminina como de coisas naturais e típicas,
    terá toda a angústia da surpresa triste quando se encontre traído em amor —
    tal qual, não outro, como se tivesse sempre tido por dogma ou esperança a
    fidelidade e a firmeza da mulher. Tal outro, que tem tudo por oco e vazio,
    sentirá como um raio súbito a descoberta de que têm por nada o que escreve,
    ou que é estéril o seu esforço por ensinar, ou que é falsa a comunicabilidade
    da sua emoção.
    Não há que crer que os homens, a quem estes desastres acontecem, e
    outros desastres como estes, houvessem sido pouco sinceros nas coisas que
    disseram, ou que escreveram, e em cuja substância esses desastres eram
    previsíveis ou certos. Nada tem a sinceridade da afirmação inteligente com a
    naturalidade da emoção espontânea. E isto parece poder ser assim, a alma
    parece poder assim ter surpresas, só para que a dor lhe não falte, o opróbrio
    não deixe de lhe caber, a mágoa não lhe escasseie como quinhão igualitário na
    vida. Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento. Só
    não passa quem não sente; e os mais altos, os mais nobres, os mais
    previdentes, são os que vêm a passar e a sofrer do que previam e do que
    desdenhavam. E a isto que se chama a Vida.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 31 Oct 2022, 07:55

    246.


    Considerar todas as coisas que nos sucedem’ como acidentes ou episódios
    de um romance, a que assistimos não com a atenção senão com a vida. Só
    com essa atitude poderemos vencer a malícia dos dias e os caprichos dos
    sucessos.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 31 Oct 2022, 07:56

    247.


    A vida prática sempre me pareceu o menos cómodo dos suicídios. Agir foi
    sempre para mim a condenação violenta do sonho injustamente condenado.
    Ter influência no mundo exterior, alterar coisas, transpor entes, influir em
    gente — tudo isto pareceu-me sempre de uma substância mais nebulosa que a
    dos meus devaneios. A futilidade imanente de todas as formas da ação foi,
    desde a minha infância, uma das medidas mais queridas do meu desapego até
    de mim.
    Agir é reagir contra si próprio. Influenciar é sair de casa.
    Sempre meditei como era absurdo que, onde a realidade substancial é uma
    série de sensações, houvesse coisas tão complicadamente simples como
    comércios, indústrias, relações sociais e familiares, tão desoladoramente
    incompreensíveis perante a atitude interior da alma para com a ideia de
    verdade.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 31 Oct 2022, 07:56

    248.


    Da minha abstenção de colaborar na existência do mundo exterior advém,
    entre outras coisas, um fenómeno psíquico curioso.
    Abstendo-me inteiramente da ação, desinteressando-me das Coisas, consigo
    ver o mundo exterior quando atento nele com uma objetividade perfeita.
    Como nada interessa ou leva a ter razão para alterá-lo, não o altero.
    É assim consigo


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    Mensaje por Maria Lua Lun 31 Oct 2022, 07:58

    249.



    Desde o meio do século dezoito que uma doença terrível baixou
    progressivamente sobre a civilização. Dezassete séculos de aspiração cristã
    constantemente iludida, cinco séculos de aspiração pagã perenemente
    postergada – o catolicismo que falira como cristismo, a renascença que falira
    como paganismo, a reforma que falira como fenómeno universal. O desastre
    de tudo quanto se sonhara, a vergonha de tudo quanto se conseguira, a
    miséria de viver sem vida digna que os outros pudessem ter connosco, e sem
    vida dos outros que pudéssemos dignamente ter.

    Isto caiu nas almas e envenenou-as. O horror à ação, por ter de ser vil
    numa sociedade vil, inundou os espíritos. A atividade superior da alma
    adoeceu; só a atividade inferior, porque mais vitalizada, não decaiu; inerte a
    outra, assumiu a regência do mundo.
    Assim nasceu uma literatura e uma arte feitas dos elementos secundários do
    pensamento — o romantismo; e uma vida social feita dos elementos
    secundários da atividade — a democracia moderna.

    As almas nascidas para mandar só tinham o remédio de abster-se. As almas
    nascidas para criar, numa sociedade onde as forças criadoras faliam, tinham
    por único mundo plástico à sua vontade o mundo social dos seus sonhos, a
    esterilidade introspetiva da própria alma.

    Chamamos "românticos", por igual, aos grandes que faliram e aos
    pequenos que se revelaram. Mas não há semelhança senão na
    sentimentalidade evidente; mas nuns a sentimentalidade mostra a
    impossibilidade do uso ativo da inteligência; em outros mostra a ausência da
    própria inteligência. São fruto da mesma época um Chateaubriand e um
    Hugo, um Vigny e um Michelet. Mas um Chateaubriand é uma alma grande
    que diminui; um Hugo é uma alma pequena que se distende com o vento do
    tempo; um Vigny é um génio que teve de fugir; um Michelet uma mulher que
    teve de ser homem de génio. No pai de todos, Jean-Jacques Rousseau, as duas
    tendências estão juntas. A inteligência nele era de criador, a sensibilidade de
    escravo. Afirma ambas por igual.

    Mas a sensibilidade social, que tinha, envenenou as suas teorias, que a
    inteligência apenas dispôs claramente. A inteligência que tinha só serviu para
    gemer a miséria de coexistir com tal sensibilidade.

    J. J. Rousseau é o homem moderno, mas mais completo que qualquer
    homem moderno. Das fraquezas que o fizeram falir tirou — ai dele e de nós!
    — as forças que o fizeram triunfar. O que partiu dele venceu, mas nos lábaros
    da sua vitória, quando entrou na cidade, viu-se que estava escrita, em baixo, a
    palavra "Derrota". No que dele ficou para trás, incapaz do esforço de vencer,
    foram as coroas e os cetros, a majestade de mandar e a glória de vencer por
    destino interno.
    ***
    O mundo, no qual nascemos, sofre de século e meio de renúncia e de
    violência — da renúncia dos superiores e da violência dos inferiores, que é a
    sua vitória. Nenhuma qualidade superior pode afirmar-se modernamente,
    tanto na ação, como no pensamento, na esfera política, como na especulativa.
    A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera de brutalidade e de
    indiferença pelas artes, onde uma sensibilidade fina não tem refúgio. Dói mais,
    cada vez mais, o contacto da alma com a vida. O esforço é cada vez mais
    doloroso, porque são cada vez mais odiosas as condições exteriores do
    esforço.

    A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus
    artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância
    cuidada de regras — poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses
    são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para
    passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista,
    porque todos têm sentimentos.




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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Mar 01 Nov 2022, 07:51

    250.


    Mesmo que eu quisesse criar, a única arte verdadeira é a da construção. Mas
    o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de
    construção no espírito.
    Por isso se desenvolveu a ciência. A única coisa em que há construção,
    hoje, é uma máquina; o único argumento em que há encadeamento o de uma
    demonstração matemática.

    O poder de criar precisa de ponto de apoio, da muleta da realidade.
    A arte é uma ciência...
    Sofre ritmicamente.
    Não posso ler, porque a minha crítica hiper acesa não descortina senão
    defeitos, imperfeições, possibilidades de melhor. Não posso sonhar, porque
    sinto o sonho tão vivamente que o comparo com a realidade, de modo que
    sinto logo que ele não é real; e assim o seu valor desaparece. Não posso
    entreter-me na contemplação inocente das coisas e dos homens, porque a
    ânsia de aprofundar é inevitável, e, desde que o meu interesse não pode existir
    sem ela, ou há de morrer às mãos dela ou secar .

    Não posso entreter-me com a especulação metafísica porque sei de sobra, e
    por mim, que todos os sistemas são defensáveis e intelectualmente possíveis;
    e, para gozar a arte intelectual de construir sistemas, falta-me o poder esquecer
    que o fim da especulação metafísica é a procura da verdade.
    Um passado feliz em cuja lembrança torne a ser feliz; sem nada no presente
    que me alegre ou me interesse, em sonho ou hipótese de futuro que seja
    diferente deste presente ou possa ter outro passado que esse passado, jazo a
    minha vida, consciente espectro de um paraíso em que nunca estive, cadávernado das minhas esperanças por haver.
    Felizes os que sofrem com unidade! Aqueles a quem a angústia altera mas
    não divide, que creem, ainda que na descrença, e podem sentar-se ao sol sem
    pensamento reservado.


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    Mensaje por Maria Lua Mar 01 Nov 2022, 07:52

    251.


    Fragmentos de uma autobiografia
    Primeiro entretiveram-me as especulações metafísicas, as ideias científicas
    depois. Atraíram-me finalmente as sociológicas. Mas em nenhum destes
    estádios da minha busca da verdade encontrei segurança e alívio.
    Pouco lia, em qualquer das preocupações. Mas no pouco que lia, tantas
    teorias me cansava de ver, contraditórias, igualmente assentes em razões
    desenvolvidas, todas elas igualmente prováveis e de acordo com uma certa
    escolha de factos que tinha sempre o ar de ser os factos todos. Se erguia dos
    livros os meus olhos cansados, ou se dos meus pensamentos desviava para o
    mundo exterior a minha perturbada atenção, só uma coisa eu via,

    desmentindo-me toda a utilidade de ler e pensar, arrancando-me uma a uma
    todas as pétalas da ideia do esforço: a infinita complexidade das coisas, a
    imensa soma a prolixa inatingibilidade dos próprios poucos factos que se
    poderiam conceber precisos para o levantamento de uma ciência.
    ***
    O desgosto de não encontrar nada encontrei comigo pouco a pouco. Não
    achei razão nem lógica senão a um ceticismo que nem sequer buscava uma
    lógica para se defender. Em curar-me disto não pensei — porque me havia eu
    de curar disso? E o que era ser são? Que certeza tinha eu que esse estado de
    alma deva pertencer à doença? Quem nos afirma que, a ser doença, a doença
    não era mais desejável, ou mais lógica, ou mais, do que a saúde? A ser a saúde
    preferível, porque era eu doente se não por naturalmente o ser, e se
    naturalmente o era, porque ir contra a Natureza, que para algum fim, se fim
    ela tem, me quereria decerto doente?

    Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia mais e mais se
    infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador.
    Procurar modos de inércia, apostar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim,
    a toda a responsabilidade social — talhei nessa matéria de a estátua pensada
    da minha existência.
    Deixei leituras, abandonei casuais caprichos deste ou aquele modo estético
    da vida. Do pouco que lia aprendi a extrair só elementos para o sonho. Do
    pouco que presenciava, apliquei-me a tirar apenas o que se podia, em reflexo
    distante e errado, prolongar mais dentro de mim.
    Esforcei-me porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos

    quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à
    minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente
    individual. Fi-la minha apenas.
    Apliquei-me depois, no decurso procurado do meu hedonismo interior, a
    furtar-me às sensibilidades sociais. Lentamente me couracei contra o
    sentimento do ridículo. Ensinei-me a ser insensível quer para os apelos dos
    instintos quer para as solicitações.

    Reduzi ao mínimo o meu contacto com os outros. Fiz o que pude para
    perder toda a afeição à vida. Do próprio desejo da glória lentamente me despi,
    como quem cheio de cansaço se despe para repousar.
    Do estudo da metafísica, das ciências, passei a ocupações de espírito mais
    violentas para o equilíbrio dos meus nervos. Gastei apavoradas noites
    debruçado sobre volumes de místicos e de cabalistas, que nunca tinha
    paciência para ler de todo, de outra maneira que não intermitentemente,
    trémulo e os ritos e as razões dos Rosa-Cruz, a simbólica da Cabala e dos
    Templários, — sofri durante tempos a opressão de tudo isso. E encheram a
    febre dos meus dias especulações venenosas, da razão demoníaca da
    metafísica — a magia, a alquimia — extraindo um falso estímulo vital de
    sensação dolorosa e presciente de estar como que sempre à beira de saber um
    mistério supremo. Perdi-me pelos sistemas secundários, excitados, da
    metafísica, sistemas cheios de analogias perturbantes, de alçapões para a
    lucidez, grandes paisagens misteriosas onde reflexos de sobrenatural acordam
    mistérios nos contornos.

    Envelheci pelas sensações... Gastei-me gerando os pensamentos... E a
    minha vida passou a ser uma febre metafísica, sempre descobrindo sentidos
    ocultos nas coisas, brincando com o fogo das analogias misteriosas,
    procrastinando a lucidez integral, a síntese normal para se denegrir?.
    Caí numa complexa indisciplina cerebral, cheia de indiferenças. Onde me
    refugiei? Tenho a impressão de que não me refugiei em parte nenhuma.
    Abandonei-me, mas não sei a quê.
    Concentrei e limitei os meus desejos, para os poder requintar melhor.
    Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos
    um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido.
    Hoje sou ascético na minha religião de mim. Uma chávena de café, um
    cigarro e os meus sonhos substituem bem o universo e as suas estrelas, o
    trabalho, o amor, até a beleza e a glória. Não tenho quase necessidade de
    estímulos. Ópio tenho-o eu na alma.

    Que sonhos tenho? Não sei. Forcei-me por chegar a um ponto onde nem
    saiba já em que penso, com que sonho, o que visiono. Parece-me que sonho
    cada vez de mais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o
    invisionável.
    Não faço teorias a respeito da vida. Se ela é boa ou má não sei, não penso.
    Para os meus olhos é dura e triste, com sonhos deliciosos de permeio. Que
    me importa o que ela é para os outros!
    A vida dos outros só me serve para eu lhes viver, a cada um a vida que me
    parece que lhes convém no meu sonho


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    Mensaje por Maria Lua Mar 01 Nov 2022, 07:53

    252.


    Pensar, ainda assim, é agir. Só no devaneio absoluto, onde nada de ativo
    intervém, onde por fim até a nossa consciência de nós mesmos se atola num
    lodo — só aí, nesse morno e húmido não-ser, a abdicação da ação
    competentemente se atinge.
    Não querer compreender, não analisar... Ver-se como à natureza; olhar para
    as suas impressões como para um campo — a sabedoria é isto.


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    Mensaje por Maria Lua Mar 01 Nov 2022, 07:54

    253.

    O sagrado instinto de não ter teorias...


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    Mensaje por Maria Lua Mar 01 Nov 2022, 07:55

    254.


    Mais que uma vez, ao passear lentamente pelas ruas da tarde, me tem
    batido na alma, com uma violência súbita e estonteante, a estranhíssima
    presença da organização das coisas. Não são bem as coisas naturais que tanto
    me afetam, que tão poderosamente me trazem esta sensação: são antes os
    arruamentos, os letreiros, as pessoas vestidas e falando, os empregos, os
    jornais, a inteligência de tudo. Ou, antes, é o facto de que existem
    arruamentos, letreiros, empregos, homens, sociedade, tudo a entender-se e a
    seguir e a abrir caminhos.

    Reparo no homem diretamente, e vejo que é tão inconsciente como um cão
    ou um gato; fala por uma inconsciência de outra ordem; organiza-se em
    sociedade por uma inconsciência de outra ordem, absolutamente inferior à
    que empregam as formigas e as abelhas na sua vida social. E então, tanto ou
    mais que da existência de organismos, tanto ou mais que da existência de leis
    físicas rígidas e intelectuais, se me revela por uma luz evidente a inteligência
    que cria e impregna o mundo.

    Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha frase de não sei que
    escolástico: Deus est anima brutorum, Deus é a alma dos brutos. Assim
    entendeu o autor da frase, que é maravilhosa, explicar a certeza com que o
    instinto guia os animais inferiores, em que se não divisa inteligência, ou mais
    que um esboço dela. Mas todos somos animais inferiores — falar e pensar são
    apenas novos instintos, menos seguros que os outros porque novos. E a frase
    do escolástico, tão justa na sua beleza, alarga-se, e digo, Deus é a alma de
    tudo.

    Nunca compreendi que quem uma vez considerou este grande facto da
    relojoaria universal pudesse negar o relojoeiro em que o mesmo Voltaire não
    descreu. Compreendo que, atendendo a certos factos aparentemente
    desviados de um plano (e era preciso saber o plano para saber se são
    desviados), se atribua a essa inteligência suprema algum elemento de
    imperfeição. Isso compreendo, se bem que o não aceite. Compreendo ainda
    que, atendendo ao mal que há no mundo, se não possa aceitar a bondade
    infinita dessa inteligência criadora. Isso compreendo, se bem que o não aceite
    também. Mas que se negue a existência dessa inteligência, ou seja, de Deus, é
    coisa que me parece uma daquelas estupidezes que tantas vezes afligem, num
    ponto da inteligência, homens que, em todos os outros pontos dela, podem
    ser superiores; como os que erram sempre as somas, ou, ainda, e pondo já no
    jogo a inteligência da sensibilidade, os que não sentem a música, ou a pintura,
    ou a poesia.

    Não aceito, disse, nem o critério do relojoeiro imperfeito nem o do
    relojoeiro sem benevolência. Não aceito o critério do relojoeiro imperfeito
    porque aqueles pormenores do governo e ajustamento do mundo, que nos
    parecem lapsos ou sem-razões, não podem, como tal, ser verdadeiramente
    dados sem que saibamos o plano. Vemos claramente um plano em tudo;
    vemos certas coisas que nos parecem sem razão, mas é de ponderar que, se há
    em tudo uma razão, haverá nisso também a mesma razão que há em tudo.
    Vemos a razão, porém não o plano; como diremos, então, que certas coisas
    estão fora do plano que não sabemos o que é? Assim como um poeta de
    ritmos subtis pode intercalar um verso arrítmico para fins rítmicos, isto é, para
    o próprio fim de que parece afastar-se, e um crítico mais purista do retilíneo
    que do ritmo chamará errado esse verso, assim o Criador pode intercalar o
    que a nossa estreita ilógica?

    Considera arritmias no decurso majestoso do seu
    ritmo metafísico. Nem aceito, disse, o critério do relojoeiro sem benevolência.
    Concordo que é um argumento de mais difícil resposta, mas é-o só
    aparentemente. Podemos dizer que não sabemos bem o que é o mal, não
    podendo por isso afirmar se uma coisa é má ou boa. O certo, porém, é que
    uma dor, ainda que para nosso bem, é em si mesma um mal, e basta isso para
    que haja mal no mundo. Basta uma dor de dentes para fazer descrer na
    bondade do Criador. Ora o erro essencial deste argumento parece residir no
    nosso completo desconhecimento do plano de Deus, e o nosso igual
    desconhecimento do que possa ser, como pessoa inteligente, o Infinito
    Intelectual.

    Uma coisa é a existência do mal, outra a razão dessa existência. A
    distinção é talvez subtil ao ponto de parecer sofística, mas o certo é que é
    justa. A existência do mal não pode ser negada, mas a maldade da existência
    do mal pode não ser aceite. Confesso que o problema subsiste, mas subsiste
    porque subsiste a nossa imperfeição.


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    Mensaje por Maria Lua Mar 01 Nov 2022, 07:56

    255.


    Se alguma coisa há que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida,
    tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos
    desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros. A
    alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na
    superfície do mundo. Ninguém se amaria a si mesmo se deveras se conhecesse
    e assim, não havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual,
    morreríamos na alma de anemia . Ninguém conhece outro, e ainda bem que o
    não conhece, e, se o conhecesse, conheceria nele, ainda que mãe, mulher ou
    filho, o íntimo, metafísico inimigo. Entendemo-nos porque nos ignoramos.

    Que seria de tantos cônjuges felizes se pudessem ver um na alma do outro, se
    pudessem compreender-se, como dizem os românticos, que não sabem o
    perigo — se bem que o perigo fútil — do que dizem. Todos os casados do
    mundo são mal casados, porque cada um guarda consigo, nos secretos onde a
    alma é do Diabo, a imagem subtil do homem desejado que não é aquele, a
    figura volúvel da mulher sublime que aquela não realizou.

    Os mais felizes
    ignoram em si mesmos estas suas disposições frustradas; os menos felizes não
    as ignoram, mas não as conhecem, e só um ou outro arranco fruste, uma ou
    outra aspereza no trato, evoca, na superfície casual dos gestos e das palavras, o
    Demónio oculto, a Eva antiga, o Cavaleiro e a Sílfide. A vida que se vive é um
    desentendimento fluido, uma média alegre entre a grandeza que não há e a
    felicidade que não pode haver. Somos contentes porque, até ao pensar e ao
    sentir, somos capazes de não acreditar na existência da alma. No baile de
    máscaras que vivemos, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo.
    Somos servos das luzes e das cores, vamos na dança como na verdade, nem
    há para nós — salvo se, desertos, não dançamos — conhecimento do grande
    frio do alto da noite externa, do corpo mortal por baixo dos trapos que lhe
    sobrevivem, de tudo quanto, a sós, julgamos que é essencialmente nós, mas
    afinal não é senão a paródia íntima da verdade do que nos supomos. Tudo
    quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a
    mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos,
    nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenómeno da alma e não de tirar
    fato. Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos múltiplos trajes tão
    pegados a nós como as penas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou nem
    até sabendo o que somos, o breve espaço que nos dão os deuses para os
    divertirmos, como crianças que brincam a jogos sérios .

    Um ou outro de nós, liberto ou maldito, vê de repente — mas até esse raras
    vezes vê — que tudo quanto somos é o que não somos, que nos enganamos
    no que está certo e não temos razão no que concluímos justo. E esse, que,
    num breve momento, vê o universo despido, cria uma filosofia, ou sonha
    uma religião; e a filosofia espalha-se e a religião propaga-se e os que creem na
    filosofia passam a usá-la como veste que não veem, e os que creem na religião
    passam a pô-la como máscara de que se esquecem.
    E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e por isso
    entendendonos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do
    descanso, humanos, fiteis, a sério, ao som da grande orquestra dos astros, sob
    os olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espetáculo.

    Só eles sabem que nós somos presas da ilusão que nos criaram. Mas qual é
    a razão dessa ilusão, e porque é que há essa, ou qualquer, ilusão, ou porque e
    que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram —
    isso, por certo, eles mesmos não sabem


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    Mensaje por Maria Lua Mar 01 Nov 2022, 07:58

    256.


    Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas — intrigas,
    diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram
    sempre estas duas últimas coisas- a pretensão, que têm certos homens, de que,
    por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem — lá entre
    eles, exclusos todos nós outros – os grandes segredos que são os caboucos do
    mundo.
    Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim.
    Porque não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há
    alucinações coletivas.


    O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível, é
    que, quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem
    todos mal. Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar
    o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Porque há o
    comércio com os demónios ser mais fácil que o comércio com a gramática?

    Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue,
    conforme diz, ter visões astrais, porque não pode, com menor dispêndio de
    uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta
    Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser
    que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez,
    pois no próprio abstruso as pode haver? Porque há de gastar-se toda a energia
    da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há de sobrar um reles
    bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?


    Desconfio dos mestres que o não podem ser primários. São para mim
    como aqueles poetas estranhos que são incapazes de escrever como os outros.
    Aceito que sejam estranhos; gostara, porém, que me provassem que o são por
    superioridade ao normal e não por impotência dele.
    Dizem que há grandes matemáticos que erram adições simples; mas aqui a
    comparação não é com errar, mas com desconhecer. Aceito que um grande
    matemático some dois e dois para dar cinco: é um acto de distração, e a todos
    nós pode suceder. O que não aceito é que não saiba o que é somar, ou como
    se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua formidável maioria.


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    Mensaje por Maria Lua Mar 01 Nov 2022, 07:58

    257.


    O pensamento pode ter elevação sem ter elegância, e, na proporção em que
    não tiver elegância, perderá a ação sobre os outros. A força sem a destreza é
    uma simples massa.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Mar 01 Nov 2022, 07:59

    258.


    O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação’.
    Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se.
    E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu
    fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que
    escrever vivem sem enquanto.




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    "Ser como un verso volando
    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
    (Hánjel)





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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

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