Aires de Libertad

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    Mensaje por Maria Lua 17.11.22 8:58

    296.


    A mania do absurdo e do paradoxo é a alegria animal dos tristes. Como o
    homem normal diz disparates por vitalidade, e por sangue dá palmadas nas
    costas de outros, os incapazes de entusiasmo e de alegria dão cambalhotas na
    inteligência e, ao seu modo, fazem os gestos da vida.


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    siendo guardián en tu cielo
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    Mensaje por Maria Lua 17.11.22 8:59

    297.


    A reductio ad absurdum é uma das minhas bebidas prediletas.






    365


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    Mensaje por Maria Lua 17.11.22 21:07

    298.


    Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e
    nem tem filhos a quem o deixe nem esperança que um céu lhe reserve uma
    transcendência desse dinheiro. Aquele empenha o esforço em ganhar fama,
    para depois de morto, e não crê naquela sobrevivência que lhe dê o
    conhecimento da fama. Esse outro gasta-se na procura de coisas de que
    realmente não gosta. Mais adiante, há um que lê para saber, inutilmente.
    Outro goza para viver, inutilmente.
    Vou num carro elétrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu
    costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para
    mim os pormenores são coisas, vozes, letras’. Neste vestido da rapariga que
    vai na minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o
    trabalho com que o fizeram — pois que o vejo vestido e não estofo — e o
    bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-se-me em retrós
    de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar.


    E imediatamente, como num livro primário de economia política, desdobram-se
    diante de mim as fábricas e os trabalhos – a fábrica onde se fez o tecido; a
    fábrica onde se fez o retrós, de um tom mais escuro, com que se orla de
    coisinhas retorcidas o seu lugar junto do pescoço; e vejo as secções das
    fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos virados para
    dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes procurar estar sossegados,
    sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto: vejo, para além, as
    vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses
    escritórios... Todo o mundo se me desenrola aos olhos só porque tenho diante
    de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que
    cara, um orlar irregular regular verde escuro sobre um verde claro de vestido.
    Toda a vida social jaz aos meus olhos.

    Para além disto pressinto os amores, as secrecias a alma, de todos quantos
    trabalharam para que esta mulher que está diante de mim no elétrico use, em
    torno do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde
    escura fazenda verde menos escura.
    Entonteço. Os bancos do elétrico, de um entretecido de palha forte e
    pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias,
    operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo.
    Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira


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    Mensaje por Maria Lua 19.11.22 10:29

    299.


    Cada vez que viajo, viajo imenso’. O cansaço que trago comigo de uma
    viagem de comboio até Cascais é como se fosse o de ter, nesse pouco tempo,
    percorrido as paisagens de campo e cidade de quatro ou cinco países.
    Cada casa porque passo, cada chalé, cada casita isolada caiada de branco e
    de silêncio — em cada uma delas num momento me concebo vivendo,
    primeiro feliz, depois tediento, cansado depois; e sinto que tendo-a
    abandonado, trago comigo uma saudade enorme do tempo em que lá vivi. De
    modo que todas as minhas viagens são uma colheita dolorosa e feliz de
    grandes alegrias, de tédios enormes, de inúmeras falsas saudades.

    Depois, ao passar diante de casas, de vilas, de chalés, vou vivendo em mim
    todas as vidas das criaturas que ali estão. Vivo todas aquelas vidas domésticas
    ao mesmo tempo. Sou o pai, a mãe, os filhos, os primos, a criada e o primo da
    criada, ao mesmo tempo e tudo junto, pela arte especial que tenho de sentir ao
    mesmo tempo várias sensações diversas, de viver ao mesmo tempo — e ao
    mesmo tempo por fora, vendo-as, e por dentro sentindo-as — as vidas de
    várias criaturas.
    Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente.
    Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado
    numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.
    Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de
    mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários
    atores representando várias peças.


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    Mensaje por Maria Lua 19.11.22 10:30

    300.

    Sonho triangular

    No meu sonho no convés estremeci — é que pela minha alma de Príncipe
    Longínquo passou um arrepio de presságio.
    Um silêncio ruidoso a ameaças invadia como uma brisa lívida a atmosfera
    visível da saleta.
    Tudo isto é haver um brilho excessivo a inquietá-lo no luar sobre o oceano
    que não embala já mas estremece; tornou-se evidente — e eu ainda os não
    ouvi — que há ciprestes ao pé do palácio do Príncipe.
    O gládio do primeiro relâmpago volteou vagamente no além... E cor de
    relâmpago o luar sobre o mar alto e tudo isto é ser ruínas já e passado
    afastado o meu palácio do príncipe que nunca fui...
    Com um ruído soturno e aproximando-se o navio entre as águas, a saleta
    escurece lividamente, e não morreu, não está preso algures, não sei o que é
    feito dele — do príncipe — que gélida coisa desconhecida lhe é o destino
    agora?...



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    Mensaje por Maria Lua 19.11.22 10:31

    301.



    A única maneira de teres sensações novas é construíres-te uma alma nova.
    Baldado esforço o teu se queres sentir outras coisas sem sentires de outra
    maneira, e sentires de outra maneira sem mudares de alma. Porque as coisas
    são como nós as sentimos — há quanto tempo sabes tu isto sem o saberes’?
    — e o único modo de haver coisas novas, de sentir coisas novas é haver
    novidade no senti-las.
    Muda de alma. Como? Descobre-o tu.
    Desde que nascemos até que morremos mudamos de alma lentamente,
    como do corpo. Arranja meio de tornar rápida essa mudança, como com
    certas doenças, ou certas convalescenças, rapidamente o corpo se nos muda.
    Não descer nunca a fazer conferências, para que não se julgue que temos
    opiniões, ou que descemos ao público para falar com ele. Se ele quiser, que
    nos leia.
    De mais a mais o conferenciador semelha ator — criatura que o bom artista
    despreza, moço de esquina da Arte


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    Mensaje por Maria Lua 19.11.22 10:32

    302.

    Descobri que penso sempre, e atendo sempre, a duas coisas no mesmo
    tempo. Todos, suponho, serão um pouco assim. Há certas impressões tão
    vagas que só depois, porque nos lembramos delas, sabemos que as tivemos;
    dessas impressões, creio, se formará uma parte — a parte interna, talvez — da
    dupla atenção de todos os homens. Sucede comigo que têm igual relevo as
    duas realidades a que atendo. Nisto consiste a minha originalidade. Nisto,
    talvez, consiste a minha tragédia, e a comédia dela.

    Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço a lançamentos a
    história inútil de uma firma obscura; e ao mesmo tempo o meu pensamento
    segue, com igual atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um
    oriente que não há. As duas coisas estão igualmente nítidas, igualmente
    visíveis perante mim: a folha onde escrevo com cuidado, nas linhas pautadas,
    os versos da epopeia comercial de Vasques e Cia, e o convés onde vejo com
    cuidado, um pouco ao lado da pauta alcatroada dos interstícios das tábuas, as
    cadeiras longas alinhadas, e as pernas saídas dos que sossegam na viagem.
    (Se eu for atropelado por uma bicicleta de criança, essa bicicleta de criança
    torna-se parte da minha história.)

    Intervém a saliência da casa de fumo; por isso só as pernas se veem.
    Avanço a pena para o tinteiro e da porta da casa de fumo — quase mesmo
    ao pé de onde sinto que estou — sai o vulto do desconhecido. Vira-me as
    costas e avança para os outros. O seu modo de andar é lento e as ancas não
    dizem muito. É inglês. Começo um outro lançamento. Tento ver porque ia
    enganado. É a débito e não a crédito da conta do Marques. (Vejo-o gordo,
    amável, piadista e, num momento, o navio desaparece.)


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    Mensaje por Maria Lua 19.11.22 10:33

    303.


    O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um
    homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática
    da vida é aquela qualidade que conduz à ação, isto é, a vontade. Ora há duas
    coisas que estorvam a ação — a sensibilidade e o pensamento analítico, que
    não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a ação é, pela
    sua natureza, a projeção da personalidade sobre o mundo externo, e como o
    mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos,
    segue que essa projeção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos
    no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso
    modo de agir.

    Para agir é, pois, preciso que nos não figuremos com facilidade as
    personalidades alheias, as suas dores e alegrias. Quem simpatiza pára. O
    homem de ação considera o mundo externo como composto exclusivamente
    de matéria inerte — ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa
    ou que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que, porque não
    lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, pois, como à pedra,
    ou se afastou ou se passou por cima.

    O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a extrema
    concentração da ação com a sua extrema importância, é a do estratégico. Toda
    a vida é guerra, e a batalha é, pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é um
    homem que joga com vidas como o jogador de xadrez com peças do jogo.
    Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em
    mil lares e mágoa em três mil corações? Que seria do mundo se fôssemos
    humanos? Se o homem sentisse deveras, não haveria civilização. A arte serve
    de fuga para a sensibilidade que a ação teve que esquecer. A arte é a Gata
    Borralheira, que ficou em casa porque teve que ser.

    Todo o homem de ação é essencialmente animado e otimista porque quem
    não sente é feliz. Conhece-se um homem de ação por nunca estar mal
    disposto. Quem trabalha embora esteja mal disposto é um subsidiário da ação;
    pode ser na vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros, como eu
    sou na particularidade dela. O que não pode ser é um regente de coisas ou de
    homens. À regência pertence a insensibilidade. Governa quem é alegre porque
    para ser triste é preciso sentir.

    O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um indivíduo
    doente e a família. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse
    indivíduo existia, exceto como parte contrária comercial. Feito o negócio,
    veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negócio
    nunca se faria. "Tenho pena do tipo", disse-me ele. "Vai ficar na miséria."
    Depois, acendendo o charuto, acrescentou: "Em todo o caso, se ele precisar
    qualquer coisa de mim" — entendendo-se qualquer esmola — "eu não
    esqueço que lhe devo um bom negócio e umas dezenas de contos."
    O patrão Vasques não é um bandido: é um homem de ação. O que perdeu
    o lance neste jogo pode, de facto, pois o patrão Vasques é um homem
    generoso, contar com a esmola dele no futuro.

    Como o patrão Vasques são todos os homens de ação — chefes industriais
    e comerciais, políticos, homens de guerra, idealistas religiosos e sociais,
    grandes poetas e grandes artistas, mulheres formosas, crianças que fazem o
    que querem. Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para
    vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral, amorfa, sensível, imaginativa
    e frágil, e não mais que o pano de fundo contra o qual se destacam estas
    figuras da cena até que a peça de fantoches acabe, o fundo-chato de
    quadrados sobre o qual se erguem as peças de xadrez até que as guarde o
    Grande Jogador que, iludindo a reportagem com uma dupla personalidade,
    joga, entretendo-se sempre contra si mesmo.


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    Mensaje por Maria Lua 19.11.22 10:33

    304.



    A fé é o instinto da ação


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    Mensaje por Maria Lua 19.11.22 10:35

    305.



    O meu hábito vital de descrença em tudo, especialmente no instintivo, e a
    minha atitude natural de insinceridade, são a negação de obstáculos a que eu
    faça isto constantemente.
    No fundo o que acontece é que faço dos outros o meu sonho,
    dobrandome às opiniões deles para, expandindo-as pelo meu raciocínio e a minha
    intuição, as tornar minhas e (eu, não tendo opinião, posso ter as deles como
    quaisquer outras) para as dobrar ao meu gosto e fazer das suas personalidades
    coisas aparentadas com os meus sonhos.

    De tal modo anteponho o sonho à vida que consigo, no trato verbal (outro
    não tenho), continuar sonhando, e persistir, através das opiniões alheias e dos
    sentimentos dos outros, na linha fluida da minha individualidade amorfa.
    Cada outro é um canal ou uma calha por onde a água do mar só corre a
    gosto deles, marcando, com as cintilações da água ao sol, o curso curvo da sua
    orientação mais realmente do que a secura deles o poderia fazer.

    Parecendo às vezes, à minha análise rápida, parasitar os outros, na realidade
    o que acontece é que os obrigo a ser parasitas da minha posterior emoção.
    Habita o meu viver as cascas das suas individualidades. Decalco as suas
    passadas em argila do meu espírito e assim mais do que eles, tomando-as para
    dentro da minha consciência, eu tenho dado os seus passos e andado nos seus
    caminhos.

    Em geral, pelo hábito que tenho de, desdobrando-me, seguir ao mesmo
    tempo duas, diversas operações mentais eu, ao passo que me vou adaptando
    em excesso e lucidez ao sentir deles, vou analisando em mim o desconhecido
    estado da alma deles, a análise puramente objetiva do que eles são e pensam.
    Assim, entre sonhos, e sem largar o meu devaneio ininterrupto, vou, só
    vivendo-lhes a essência requintada das suas emoções às vezes mortas, mas
    compreendendo e classificando as lógicas interconexas das várias forças do
    seu espírito que jaziam às vezes num estado simples da sua alma.

    E no meio disto tudo a sua fisionomia, o seu traje, os seus gestos, não me
    escapam. Vivo ao mesmo tempo os seus sonhos, a alma do instinto e o corpo
    e atitudes deles. Numa grande dispersão unificada, ubiquito-me neles e eu crio
    e sou, a cada momento da conversa, uma multidão de seres, conscientes e
    inconscientes, analisados e analíticos, que se reúnem em l
    eque aberto.


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    Mensaje por Maria Lua 19.11.22 10:36

    306.


    Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em
    si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o
    impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão.
    Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados sé da
    beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que,
    mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas
    religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente
    viver.

    Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos.
    Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar
    para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.
    Nós perdemos essa, e às outras também.
    Ficámos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir
    viver. Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é
    navegar, senão chegar a um porto. Nós encontrámo-nos navegando, sem a
    ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie
    dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é
    preciso.

    Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode
    ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos, porque o homem
    completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem
    esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro,
    também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de ação,
    não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta
    connosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.
    Uns de nós estagnaram na conquista alvar do quotidiano, reles e baixos
    buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o trabalho sentido, sem a
    consciência do esforço, sem a nobreza do conseguimento.

    Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da coisa pública, nada querendo
    e nada desejando, e tentando levar até ao calvário do esquecimento a cruz de
    simplesmente existirmos. Impossível esforço, em quem não tem, como o
    portador da Cruz, uma origem divina na consciência.
    Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da confusão e
    do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar quando chocavam
    contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que
    estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção
    normal da morte.

    Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a
    coragem da negação e do asilo em si próprios. O que viveram foi em negação,
    em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos,
    fechados sempre, pelo menos no género de vida, entre as quatro paredes do
    quarto e os quatro muros de não saber agir.




    378


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    Mensaje por Maria Lua 20.11.22 8:02

    307.


    Estética do desalento


    Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair
    beleza de não poder extrair beleza da vida. Façamos da nossa falência uma
    vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiescência
    espiritual.
    Se a vida não nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por
    ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras dos nossos sonhos,
    desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada
    exterioridade dos muros.
    Como todo o sonhador, senti sempre que o meu mister era criar. Como
    nunca soube fazer um esforço ou ativar uma intenção, criar coincidiu-me
    sempre com sonhar, querer ou desejar, e fazer gestos com sonhar os gestos
    que desejaria poder fazer


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    Mensaje por Maria Lua 20.11.22 8:02

    308.


    À minha incapacidade de viver crismei de génio, à minha cobardia cobri-a
    de lhe chamar requinte. Pus-me a mim, Deus dourado com ouro falso, num
    altar de papelão pintado para parecer mármore.
    Mas a mim não enganei nem a consciência do meu enganar-me.


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    Mensaje por Maria Lua 20.11.22 8:03

    309.

    O prazer de nos elogiarmos a nós próprios...

    Paisagem de chuva

    Cheira-me a frio, a mágoa, a serem impossíveis todos os caminhos, a ideia
    de todos os ideais.
    As mulheres contemporâneas tais arranjos do seu porte e do seu vulto
    talham, que dão uma dolorosa impressão de efémeras e de insubstituíveis...
    Os seus e adereços tais as pintam e cobram, que mais decorativas se tornam
    do que carnalmente viventes. Frisas, painéis, quadros — não são, na realidade
    da vista, mais do que tanto...
    O mero voltear de um xaile para cima dos ombros usa hoje mais
    consciência à visão do gesto em quem o faz do que antigamente. Dantes o
    xaile era parte do traje; hoje é um detalhe resultante de intuições de puro gozo
    estético.
    Assim, nestes nossos dias, tão vívidos através de fazerem tudo arte, tudo
    arranca pétalas ao consciente e se integra em volubilidades de extático.
    Trânsfugas de quadros não feitos essas figuras femininas todas... Há por
    vezes detalhes a mais nelas... Certos perfis existem com exagerada nitidez.
    Brincam a irreais pelo excesso com que se separam, linhas puras, do ambiente
    fundo.


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    Mensaje por Maria Lua 20.11.22 8:04

    310.

    A minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e
    rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço
    como sinfonia.
    Todo o esforço é um crime porque todo o gesto é um sonho morto.
    As tuas mãos são rolas presas. Os teus lábios são rolas mudas (que aos
    meus olhos vêm arrulhar).
    Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no
    olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente. É toda ranger de
    asas, como dos a lagoa de eu te ver.

    Tu és toda alada, toda
    Chove, chove, chove...
    Chove constantemente,
    gemedoramente
    O meu corpo treme-me a alma de frio...
    Não um frio que há no espaço,
    mas um frio que há em ver a chuva ...

    Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na
    vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz.


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    Mensaje por Maria Lua 20.11.22 8:05

    311.


    Às vezes, sem que o espere ou deva esperá-lo, a sufocação do vulgar me
    toma a garganta e tenho a náusea física da voz e do gesto do chamado
    semelhante. A náusea física direta, sentida diretamente no estômago e na
    cabeça, maravilha estúpida da sensibilidade desperta... Cada indivíduo que me
    fala, cada cara cujos olhos me fitam, afeta-me como um insulto ou como uma
    porcaria. Extravaso horror de tudo. Entonteço de me sentir senti-los.

    E acontece, quase sempre, nestes momentos de desolação estomacal, que
    há um homem, uma mulher, uma criança até, que se ergue diante de mim
    como um representante real da banalidade que me agonia. Não representante
    por uma emoção minha, subjetiva e pensada, mas por uma verdade objetiva,
    realmente conforme de fora com o que sinto de dentro que surge por magia
    analógica e me traz o exemplo para a regra que penso.


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    Mensaje por Maria Lua 20.11.22 8:06

    312.


    Há dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais, as pessoas
    habituais do meu convívio forçado e quotidiano, assumem aspetos de
    símbolos, e, ou isolados ou ligando-se, formam uma escrita poética ou oculta,
    descritiva em sombras da minha vida. O escritório torna-se-me uma página
    com palavras de gente; a rua é um livro; as palavras trocadas com os usuais,
    os desabituais que encontro, são dizeres para que me falta o dicionário mas
    não de todo o entendimento. Falam, exprimem, porém não é de si que falam,
    nem a si que exprimem; são palavras, disse, e não mostram, deixam
    transparecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que
    essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior
    que velam e revelam. Entendo sem conhecimento, como um cego a quem
    falem de cores.

    Passando às vezes na rua, oiço trechos de conversas íntimas, e quase todas
    são da outra mulher, do outro homem, do rapaz da terceira ou da amante
    daquele. Levo comigo, só de ouvir estas sombras de discurso humano que é
    afinal o tudo em que se ocupam a maioria das vidas conscientes, um tédio de
    nojo, uma angústia de exílio entre aranhas e a consciência súbita do meu
    amarfanhamento entre gente real; a condenação de ser vizinho igual, perante
    o senhorio e o sítio, dos outros inquilinos do aglomerado, espreitando com
    nojo, por entre as grades traseiras do armazém da loja, o lixo alheio que se
    entulha à chuva no saguão que é a minha vida



    382


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    Mensaje por Maria Lua 21.11.22 8:38

    313.


    Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são
    infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de
    angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida
    é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma
    vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que
    tivesse recebido uma fortuna — a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar
    por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser
    semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor .
    Por isto, contudo, os amo a todos. Os meus queridos vegetais!


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    Mensaje por Maria Lua 21.11.22 8:39

    314.


    Desejaria construir um código de inércia para os superiores nas sociedades
    modernas. A sociedade governar-se-ia espontaneamente e a si própria, se não
    contivesse gente de sensibilidade e de inteligência. Acreditem que é a única
    coisa que a prejudica. As sociedades primitivas tinham uma feliz existência
    mais ou menos assim. Pena é que a expulsão dos superiores da sociedade
    resultaria em eles morrerem, porque não sabem trabalhar. E talvez morressem
    de tédio, por não haver espaços de estupidez entre eles. Mas eu falo do ponto
    de vista da felicidade humana. Cada superior que se manifestasse na sociedade
    seria expulso para a Ilha’ dos superiores. Os superiores seriam alimentados,
    como animais em jaula, pela sociedade normal. Acreditem: se não houvesse
    gente inteligente que apontasse os vários mal- estares humanos, a humanidade
    não dava por eles.


    E as criaturas de sensibilidade fazem sofrer os outros por
    simpatia. Por enquanto, visto que vivemos em sociedade, o único dever dos
    superiores é reduzirem ao mínimo a sua participação na vida da tribo. Não ler
    jornais, ou lê-los só para saber o que de pouco importante e curioso se passa .
    Ninguém imagina a volúpia que arranco ao noticiário sucinto das províncias.
    Os meros nomes abrem-me portas sobre o vago. O supremo estado honroso
    para um homem superior é não saber quem é o chefe de Estado do seu país,
    ou se vive sob monarquia ou sob república. Toda a sua atitude deve ser
    colocar-se a alma de modo que a passagem das coisas, dos acontecimentos
    não o incomode. Se o não fizer terá que se interessar pelos outros, para cuidar
    de si próprio.


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    Mensaje por Maria Lua 21.11.22 8:41

    315.


    Perder tempo comporta uma estética. Há, para os subtis nas sensações, um
    formulário da inércia que inclui receitas para todas as formas de lucidez.
    A estratégia com que se luta com a noção das conveniências sociais, com os
    impulsos dos instintos, com as solicitações do sentimento exige um estudo
    que qualquer mero esteta não suporta fazer. A uma acurada etiologia dos
    escrúpulos deve seguir-se uma diagnose irónica das subserviências à
    normalidade. Há a cultivar, também, a agilidade contra as intrusões da vida;
    um cuidado deve couraçar-nos contra sentir as opiniões alheias, e uma mole
    indiferença encamar-nos a alma contra os golpes surdos da coexistência com
    os outros.


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    Mensaje por Maria Lua 21.11.22 8:42

    316.



    Um quietismo estético da vida, pelo qual consigamos que os insultos e as
    humilhações, que a vida e os viventes nos infligem, não cheguem a mais que a
    uma periferia desprezível da sensibilidade, ao recinto externo da alma
    consciente.
    Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo
    um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 21.11.22 8:43

    317.

    Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que
    outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências
    estranhas à minha consciência que, por ser consciência, me parece ser a única.
    Compreendo bem que o homem que está diante de mim, e me fala com
    palavras iguais às minhas, e me faz gestos que são como eu faço ou poderia
    fazer, seja de algum modo meu semelhante. O mesmo, porém, me sucede
    com as gravuras que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo dos
    romances, com as pessoas dramáticas que no palco passam’ através dos atores
    que as figuram.

    Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existência real de outra
    pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense como ele;
    mas haverá sempre um elemento anónimo de diferença, uma desvantagem
    materializada. Há figuras de tempos idos, imagens espíritos em livros, que são
    para nós realidades maiores que aquelas indiferenças encarnadas que falam
    connosco por cima dos balcões, ou nos olham por acaso nos elétricos, ou nos
    roçam, transeuntes, no acaso morto das ruas. Os outros não são para nós mais
    que paisagem, e, quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida.
    Tenho por mais minhas, com maior parentesco e intimidade, certas figuras
    que estão escritas em livros, certas imagens que conheci de estampas, do que
    muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica
    chamada carne e osso. E «carne e OSSO», de facto, as descreve bem: parecem
    coisas cortadas postas no exterior marmóreo de um talho, mortes sangrando
    como vidas, pernas e costeletas do Destino.

    Não me envergonho de sentir assim porque já vi que todos sentem assim.
    O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que
    permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os
    assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados,
    é que ninguém presta a devida atenção ao facto, parece que abstruso, de que
    os outros são almas também.
    Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por não sei que brisa,
    abertas a mim por o abrir de não sei que porta, sinto de repente que o
    merceeiro da esquina é um ente espiritual, que o marçano, que neste momento
    se debruça à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma
    capaz de sofrer.

    Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha
    suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos
    esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que
    todos que o não conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos melhor. Mas que
    havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida... Mas
    a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por
    cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros. É quanto me resta,
    a mim, de quem tanto sentiu que se matou de sentir, porque, enfim, de outra
    coisa se não deve matar alguém... Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros,
    que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. E uma das
    memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal,
    não é dele mas de um pensamento meu?

    Tenho subitamente a visão do cadáver, do caixão em que o meteram, da
    cova, inteiramente alheia, a que o tinham de ter levado. E vejo, de repente,
    que o caixeiro da tabacaria era, em certo modo, casaco torto e tudo, a
    humanidade inteira.
    Foi só um momento. Hoje, agora, claramente, como homem que sou, ele
    morreu. Mais nada.
    Sim, os outros não existem... É para mim que este poente estagna,
    pesadamente alado, as suas cores nevoentas e duras. Para mim, sob o poente,
    treme, sem que eu veja que corre, o grande rio. Foi feito para mim este largo
    aberto sobre o rio cuja maré chega. Foi enterrado hoje na vala comum o
    caixeiro da tabacaria? Não é para ele o poente de hoje. Mas, de o pensar, e
    sem que eu queira, também deixou de ser para mim...


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    Mensaje por Maria Lua 21.11.22 8:44

    318.


    Barcos que passam na noite e se nem saúdam nem conhecem.





    390


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    Mensaje por Maria Lua 21.11.22 20:11

    319.


    Reconheço hoje que falhei; só pasmo, às vezes, de não ter previsto que
    falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a
    força cega dos vencedores ou a visão certa dos loucos... Era lúcido e triste
    como um dia frio.
    As coisas nítidas confortam, e as coisas ao sol confortam. Ver passar a vida
    sob um dia azul compensa-me de muito. Esqueço indefinidamente, esqueço
    mais do que podia lembrar. O meu coração translúcido e aéreo penetra-se da
    suficiência das coisas, e olhar basta-me carinhosamente. Nunca eu fui outra
    coisa que uma visão incorpórea, despida de toda a alma salvo um vago ar que
    passou e que via.

    Tenho elementos espirituais de boémio, desses que deixam a vida ir como
    uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter
    dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do
    espírito boémio — o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas.
    Nunca fui mais que um boémio isolado, o que é um absurdo; ou um boémio
    místico, o que é uma coisa impossível.

    Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a Natureza,
    esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas.
    Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas
    direções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança
    espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca,
    talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de
    desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria
    vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais;
    mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente
    os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixava de ser, no
    mistério confuso do meu ser, um lado de cá esbatido na minha sonolência de
    viver.

    Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar
    sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a
    coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida
    foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles como um
    Narciso cego, que gozasse a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado
    nela, por uma visão anterior e noturna, segredada às emoções abstratas, vivida
    nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.
    Os teus colares de pérolas fingidas amaram comigo as minhas horas
    melhores. Eram cravos as flores preferidas, talvez porque não significavam
    requintes. Os teus lábios festejavam sobriamente a ironia do seu próprio
    sorriso.

    Compreendias bem o teu destino? Era por o conheceres sem que o
    compreendesses que o mistério escrito na tristeza dos teus olhos sombreara
    tanto os teus lábios desistidos. A nossa Pátria estava demasiado longe para
    rosas. Nas cascatas dos nossos jardins a água era pelúcida de silêncios. Nas
    pequenas cavidades rugosas das pedras, por onde a água escolhia, havia
    segredos que tivéramos quando crianças, sonhos do tamanho parado dos
    nossos soldados de chumbo, que podiam ser postos nas pedras da cascata, na
    execução estática de uma grande ação militar, sem que faltasse nada aos
    nossos sonhos, nem nada tardasse às nossas suposições.

    Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um
    apreço exausto a uma febre que o enclausura.
    Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer porque
    eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos
    meus sonhos. Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei
    por mim.


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    Mensaje por Maria Lua 21.11.22 20:12

    320.


    Depois que os últimos calores do estio deixavam de ser duros no sol baço,
    começava o outono antes que viesse, numa leve tristeza, prolixamente
    indefinida, que parecia uma vontade de não sorrir do céu. Era um azul umas
    vezes mais claro, outras mais verde, da própria ausência de substância da cor
    alta; era uma espécie de esquecimento nas nuvens, púrpuras diferentes e
    esbatidas; era, não já um torpor, mas um tédio, em toda a solidão quieta por
    onde nuvens atravessam .


    A entrada do verdadeiro outono era depois anunciada por um frio dentro
    do não-frio do ar, por um esbater-se das cores que ainda se não tinham
    esbatido, por qualquer coisa de penumbra e de afastamento no que havia sido
    o tom das paisagens e o aspeto disperso das coisas. Nada ia ainda morrer, mas
    tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se virava em saudade para a
    vida .

    Vinha, por fim, o outono certo: o ar tornava-se frio de vento; soavam
    folhas num tom seco, ainda que não fossem folhas secas; toda a terra tomava
    a cor e a forma impalpável de um paul incerto. Descobria-se o que fora
    sorriso último, num cansaço de pálpebras, numa indiferença de gestos. E
    assim tudo quanto sente, ou supomos que sente, apertava, íntima, ao peito a
    sua própria despedida. Um som de redemoinho num átrio flutuava através da
    nossa consciência de outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir
    verdadeiramente a vida.

    Mas as primeiras chuvas de inverno, vindas ainda no outono já duro
    lavavam estas meias tintas como sem respeito. Ventos altos chiando em coisas
    paradas, barulhando coisas presas, arrastando coisas móveis, erguiam, entre os
    brados irregulares da chuva, palavras ausentes de protesto anónimo, sons
    tristes e quase raivosos de desespero sem alma.

    E por fim o outono cessava a frio e cinzento. Era um outono de inverno o
    que vinha agora, um pó tornado lama de tudo, mas, ao mesmo tempo,
    qualquer coisa do que o frio do inverno traz de bom — verão duro findo,
    primavera por chegar, outono definindo-se em inverno enfim. E no ar alto,
    por onde os tons baços já não lembravam nem calor nem tristeza, tudo era
    propício à noite e à meditação indefinida.
    Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje, se o escrevo, e
    porque o lembro. O outono que tenho é o que perdi.


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    Mensaje por Maria Lua 21.11.22 20:13

    321.


    A oportunidade é como o dinheiro, que, aliás, não é mais que uma
    oportunidade. Para quem age, a oportunidade é um episódio da vontade, e a
    vontade não me interessa. Para quem, como eu, não age, a oportunidade é o
    canto da falta de sereias. Tem que ser desprezado com volúpia, arrumado alto
    para nenhum uso.
    Ter ocasião de... Nesse campo se disporá a estátua da renúncia.
    Ó largos campos ao sol, o espectador, por quem só sois vivos, contemplavos da sombra.
    O álcool das grandes palavras e das largas frases que como ondas erguem a
    respiração do seu ritmo e se desfazem sorrindo, na ironia das cobras da
    espuma, na magnificência triste das penumbras


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    Mensaje por Maria Lua 21.11.22 20:14

    322.

    Por fácil que seja, todo o gesto representa a violação de um segredo
    espiritual. Todo o gesto é um acto revolucionário; um exílio, talvez, da
    verdadeira dos nossos propósitos.
    A ação é uma doença do pensamento, um cancro da imaginação. Agir é
    exilar-se. Toda a ação é incompleta e imperfeita. O poema que eu sonho não
    tem falhas senão quando tento realizá-lo. No mito de Jesus está escrito isto;
    Deus, ao tornar-se homem, não pode acabar senão pelo martírio. O supremo
    sonhador tem por filho o martírio supremo.
    As sombras rotas das folhagens, o canto trémulo das aves, os braços
    estendidos dos rios, trepidando ao sol o seu luzir fresco, as verduras, as
    papoilas, e a simplicidade das sensações — ao sentir isto, sinto dele saudades,
    como se ao senti-lo o não sentisse.

    As horas, como um carro ao entardecer, regressam chiando pelas sombras
    dos meus pensamentos. Se ergo os olhos de sobre o meu pensamento, elas
    ardem-me do espetáculo do mundo.
    Para realizar um sonho é preciso esquecê-lo, distrair dele a atenção. Por isso
    realizar é não realizar. A vida está cheia de paradoxos como as rosas de
    espinhos.
    Eu desejaria fazer a apoteose de uma incoerência nova, que ficasse sendo
    como que a constituição negativa da nova anarquia das almas. Compilar um
    digesto dos meus sonhos pareceu-me sempre que seria útil à humanidade. Por
    isso mesmo me abstive de o tentar. A ideia de que o que eu fazia pudesse ser
    aproveitável magoou-me, secou-me para mim.

    Tenho quintas nos arredores da vida. Passo ausências de cidade da minha
    Ação entre as árvores e as flores do meu devaneio. Ao meu retiro verde nem
    chegam os ecos da vida dos meus gestos. Durmo a minha memória como
    procissões infinitas. Nos cálices da minha meditação só bebo o sorriso do
    vinho louro; só o bebo com os olhos, fechando-os, e a Vida passa como uma
    vela longínqua.
    Os dias de sol sabem-me ao que eu não tenho. O céu azul, e as nuvens
    brancas, as árvores, a flauta que ali falta — éclogas incompletas pelo
    estremecimento dos ramos... Tudo isto é a harpa muda por onde eu roço a
    leveza dos meus dedos.

    A academia vegetal dos silêncios... O teu nome soando como as papoilas...
    Os tanques... O meu regresso... O padre louco que endoideceu na missa. Estas
    recordações são dos meus sonhos... Não fecho os olhos mas não vejo nada...
    Não estão aqui as coisas que vejo... Águas ...
    Numa confusão de emaranhamentos, o verdor das árvores é parte do meu
    sangue. Bate-me a vida no coração distante. Eu não fui destinado à realidade,
    e a vida quis vir ter comigo.
    A tortura do destino! Quem sabe se morrerei amanhã! Quem sabe se não
    vai acontecer-me hoje qualquer coisa de terrível para a minha alma!... As
    vezes, quando penso nestas coisas, apavora-me a tirania suprema que nos faz
    ter de olhar puros não sabendo de que acontecimento a incerteza de mim vai
    ao encontro.


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    Mensaje por Maria Lua 21.11.22 20:15

    323.



    ... A chuva caía ainda triste, mas mais branda, como num cansaço universal;
    não havia relâmpagos, e apenas, de vez em quando, com o som de já longe,
    um trovão curto resmungava duro, e às vezes como que se interrompia,
    cansado também. Como que subitamente, a chuva abrandou mais ainda. Um
    dos empregados abriu as janelas para a Rua dos Douradores. Um ar fresco,
    com restos mortos de quente, insinuou-se na sala grande. A voz do patrão
    Vasques soou alta no telefone do gabinete: "Então, ainda está a falar?" E
    houve um som de fala seca e à parte — comentário, obsceno (adivinha-se), à
    menina longínqua.






    397


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    Mensaje por Maria Lua 22.11.22 9:01

    324.



    Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos.
    Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde
    os sentilos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se entrepenetram.
    Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores,
    e as coisas concretas a abstratas, e as abstratas a concretas. Quebram-se os
    laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada
    elemento. Tudo se funde e confunde.


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    Mensaje por Maria Lua 22.11.22 9:02

    325.



    Ficções do interlúdio, cobrindo coloridamente o marasmo e a desídia da
    nossa íntima descrença.


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