Não venderei a minha casa
Tenho 76 anos, moro sozinha,
mas não sou inválida,
sei me defender com a ironia.
Comigo pedra não é pedra,
pedra é cada uma de minhas perdas,
pedra é a lembrança ainda intacta.
Eis comigo nas paredes
o meu casamento,
o nascimento das crias,
três gerações, o divórcio.
Vocês não enxergam
os meus fantasmas?
Sequer condeno, fantasmas são pessoais e intransferíveis.
Não despejarei as minhas assombrações de amor,
elas não têm onde dormir.
Não venha pedir que me desapegue,
não venha sugerir que vire a página
e comece nova história.
Só saio daqui morta.
Familiares desejam me convencer
da seriedade dos próprios problemas,
como se eu não me conhecesse o suficiente.
Que o custo de manutenção da casa é caro,
que é uma demência estar desacompanhada,
que é uma residência enorme para limpar,
que posso cair e me machucar sem socorro,
que não tenho idade para consertar
a bomba d'água que enche o porão,
que não tenho idade para lacrar de noite o portão.
Desde quando a o excesso de idade é acusação?
O que ficarei fazendo em um apartamento?
Assistindo novela?
Pelo menos, estou no chão,
presa ao chão,
enraizada no chão.
A terra é o meu espelho de nuvens.
Só é possível tocar o céu
com o pé descalço.
Não dependo de eletricidade
para abrir e fechar a porta.
Não há escadas entre a rua e a minha cama.
Não me tornarei refém de síndico e zelador,
Não seguirei regras de condomínio,
Não pedirei que ninguém baixe a música
e me deixe dormir em paz.
Não é não, não venderei a casa,
conversa encerrada.
Não adesivarei as janelas com telefones desconhecidos.
Não desistirei de mim.
Não aguentarei até onde deu, como a maioria faz.
Onde mexerei na terra?
Onde estenderei as roupas?
Onde a rede de pescar livros?
Onde colocarei a biblioteca?
Onde cumprimentarei os vizinhos
que passam pela minha varanda?
Onde a liberdade de passear de pijama pelas árvores?
Onde?
Num cubículo aéreo?
Não fui criada para morar em cabines
de helicóptero e aviões de concreto.
Minha vista é de mim mesma.
Não invento segredos para ser importante.
Sou rasa, rasteira, chapa do fogão a lenha.
Meus chapéus são as panelas pregadas na cozinha,
meu vestido é o caule do vento.
Como filha do interior,
eu sinto a chuva vindo nos ossos,
anuncio as visitas com os talheres caindo.
Eu me contento com um tanque de pedra
e os prendedores de madeira.
O pouco é muito para quem nunca
precisou de mais nada.
Fabrício Carpinejar nasceu em Caxias do Sul (RS), em 1972. É jornalista e poeta, autor de As solas do sol, Um terno de pássaros ao sul, Terceira sede e Biografia de uma árvore. O poema publicado pelo Cândido faz parte do livro inédito Não venderei a minha casa.
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