Cuidarás primeiro em nada respeitar, em nada crer, em nada Ei. Guardarás
da tua atitude ante o que não respeites, a vontade de respeitar alguma coisa;
do teu desgosto ante o que não ames, o desejo doloroso de amar alguém; do
teu desprezo pela vida guardarás a ideia de que deve ser bom vivê-la e amá-la.
E assim terás construído os alicerces para o edifício dos teus sonhos.
Repara bem que a obra que te propões fazer é no mais alto de tudo. Sonhar
é encontrarmo-nos. Vais ser o Colombo da tua alma. Vais buscar as suas
paisagens. Cuida bem pois em que o teu rumo seja certo e não possam errar
os teus instrumentos.
A arte de sonhar é difícil porque é uma arte de passividade, onde o que é de
esforço é na concentração da ausência de esforço. A arte de dormir, se a
houvesse, deveria ser de qualquer forma parecida com esta.
Repara bem: a arte de sonhar não é a arte de orientar os sonhos. Orientar é
agir. O sonhador verdadeiro entrega-se a si próprio, deixa-se possuir por si
próprio.
Foge a todas as provocações materiais. Há no início a tentação de te
masturbares. Há a do álcool, a do ópio, a Ei. Tudo isso é esforço e procura.
Para seres um bom sonhador, tens de não ser senão sonhador. Ópio e
morfina compram-se nas farmácias — como, pensando nisto, queres poder
sonhar através deles? Masturbação é uma coisa física como queres tu que te
sonhes masturbando-te, vá; que em sonhar talvez fumando ópio, recebendo
morfina, te embriagues da ideia do ópio, da morfina dos sonhos — não há
senão que elogiar-te por isso: estás no teu papel áureo de sonhador perfeito.
Julga-te sempre mais triste e mais infeliz do que és. Isso não faz mal.
É mesmo, por ilusão, um pouco escadas para o sonho.
***
— Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer
também amanhã’. Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa,
amanhã ou hoje.
— Nunca penses no que vais fazer. Não o faças.
— Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. Na verdade e no erro, no gozo
e no mal-estar sê o teu próprio ser. Só poderás fazer isso sonhando, porque a
tua vida real, a tua vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros.
Assim, substituirás o sonho à vida e cuidarás apenas em que sonhes com
perfeição. Em todos os teus actos da vida real, desde o de nascer até ao de
morrer, tu não ages: és agido; tu não vives: és vivido apenas.
Torna-te, para os outros, uma esfinge absurda. Fecha-te, mas sem bater
com a porta, na tua torre de marfim. E a tua torre de marfim és tu próprio.
Esse alguém te disser que isto é falso e absurdo não o acredites. Mas não
acredites também no que eu te digo, porque se não deve acreditar em nada.
— Despreza tudo, mas de modo que o desprezar te não incomode. Não te
julgues superior ao desprezares. A arte do desprezo nobre está nisso.
***
Com este sonhar tudo, tudo na vida te fará sofreres mais,
Será a tua cruz.
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