Aires de Libertad

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    FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

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    Mensaje por Maria Lua Mar 22 Nov 2022, 09:03

    326.


    De resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são
    naus logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é
    não viver quando sonha; o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu
    fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por
    mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se
    possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a
    nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e
    triunfante ação, nunca desaparecem o do contacto com os outros, o tropeçar
    em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.

    Matar o sonho é matarmo-nos. E mutilar a nossa alma. O sonho é o que
    temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.
    O Universo, a Vida — seja isso real ou ilusão — é de todos, todos podem
    ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo — ou, pelo menos, pode
    conceber-se vendo-o e possuindo e isso é
    Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu
    possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o veem,
    isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do
    sonho meu se cola aos meus olhos e ouvidos.





    399


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    y en ese vuelo y en ese sueño
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    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 09:01

    327.


    Na grande claridade do dia o sossego dos sons é de ouro também. Há
    suavidade no que acontece. Se me dissessem que havia guerra, eu diria que
    não havia guerra. Num dia assim nada pode haver que pese sobre não haver
    senão suavidade


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    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 09:02

    328.


    Junta as mãos, põe-nas entre as minhas e escuta-me, ó meu amor.
    Eu quero, falando numa voz suave e embaladora, como a de um confessor
    que aconselha, dizer-te o quanto a ânsia de atingir fica aquém do que
    atingimos.
    Quero rezar contigo, a minha voz com a tua atenção, a litania da
    desesperança .
    Não há obra de artista que não pudera ter sido mais perfeita. Lido verso
    por verso, o maior poema poucos versos tem que não pudessem ser
    melhores, poucos episódios que não pudessem ser mais intensos, e nunca o
    seu conjunto é tão perfeito que o não pudesse ser muitíssimo mais.
    Ai do artista que repara para isto! Que um dia pensa nisto! Nunca mais o
    seu trabalho é alegria, nem o seu sono sossego. É moço sem mocidade e
    envelhece descontente.

    E para quê exprimir? O pouco que se diz melhor fora ficar não dito.
    Se eu bem pudesse compenetrar-me realmente de quanto a renúncia é bela,
    que dolorosamente feliz para sempre que eu seria!
    Porque tu não amas o que eu digo com os ouvidos com que eu me ouço
    dizê-lo. Eu próprio se me ouço falar alto, os ouvidos com que me ouço falar
    alto não me escutam do mesmo modo que o ouvido íntimo com que me ouço
    pensar palavras. Se eu me erro, ouvindo-me, e tenho que perguntar, tantas
    vezes, a mim próprio o que quis dizer, os outros quanto me não entenderão!
    De quão complexas ininteligências não é feita a compreensão dos outros de
    nós.

    A delícia de se ver compreendido, não a pode ter quem se quer não
    compreendido, porque só aos complexos e incompreendidos isso acontece; e
    os outros, os simples, aqueles que os outros podem compreender — esses
    nunca têm o desejo de serem compreendidos.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 09:03

    329.


    Pensaste já, ó Outra, quão invisíveis somos uns para os outros? Meditaste já
    em quanto nos desconhecemos? Vemo-nos e não nos vemos. Ouvimo-nos e
    cada um escuta apenas uma voz que está dentro de si.
    As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso
    entender. Com que confiança cremos no nosso sentido das palavras dos
    outros. Sabem-nos a morte, volúpias que outros põem em palavras. Lemos
    volúpia e vida no que outros deixam cair dos lábios sem intenção de dar
    sentido profundo.
    A voz dos regatos que interpretas, pura explicadora, a voz das árvores onde
    pomos sentido no seu murmúrio — ah, meu amor ignoto, quanto tudo isso é
    nós e fantasias tudo de cinza que se escoa pelas grades da nossa cela!


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    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 09:04

    330.

    Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu amor, nos cure do
    prazer quase-espasmo de mentir.
    Requinte último! Perversão máxima! A mentira absurda tem todo o encanto
    do perverso com o último e maior encanto de ser inocente. A perversão de
    propósito inocente — quem excederá, ó o requinte máximo disto? A
    perversão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria de nos causar
    dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor, inútil e absurda como um
    brinquedo mal feito com que um adulto quisesse divertir-se!

    Não conheces, ó Deliciosa, o prazer de comprar coisas que não são
    precisas? Sabes o sabor aos caminhos que, se os tomássemos esquecidos’, era
    por erro que os tomaríamos? Que acto humano tem uma cor tão bela como
    os actos espúrios — que mentem à sua própria natureza e desmentem o que
    lhes é a intenção?
    A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca
    executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a
    estrada certa da vitória!
    Ah, meu amor, a glória das obras que se perderam e nunca se acharão, dos
    tratados que são títulos apenas hoje, das bibliotecas que arderam, das estátuas
    que foram partidas.

    Que santificados de Absurdo os artistas que queimaram uma obra muito
    bela, daqueles que, podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram
    imperfeita, daqueles poetas máximos do Silêncio que, reconhecendo que
    poderiam fazer obra de todo perfeita, preferiram coroá-la de nunca a fazer.
    (Se fora imperfeita, vá.)
    Quão mais bela a Gioconda desde que a não pudéssemos ver! E se quem a
    roubasse a queimasse, quão artista seria, que maior artista que aquele que a
    pintou!

    Por que é bela a arte? Porque é inútil. Porque é feia a vida? Porque é toda
    fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um
    ponto para o outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde
    ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem desse a sua vida a
    construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de
    um outro; que, prolongada, seria útil, mas que ficou, sublimemente, só o meio
    de uma estrada.

    A beleza das ruínas? O não servirem já para nada.
    A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é torná-lo presente,
    e ele nem o é, nem o pode ser — o absurdo, meu amor, o absurdo.
    E eu que digo isto — porque escrevo eu este livro? Porque o reconheço
    imperfeito. Calado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o
    escrevo.

    E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo, — eu escrevo este
    livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria.
    E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que talvez isto não seja
    verdade, nem eu o creia verdadeiro.
    E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe
    mentirmos. E quando nos causar angústia, paremos, para que o sofrimento
    nos não signifique nem perversamente prazer...


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 09:05

    331.


    Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas, mais nitidamente dores
    que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas
    nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui
    nenhuma das estrelas.
    Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez
    comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas,
    consequências de uma coisa material chamada cérebro, que existe, por
    nascença dentro de outra coisa material chamada crânio. Não posso ser
    materialista, que é o que, creio, se chama àquele conceito, porque não posso
    estabelecer uma relação nítida — uma relação visual direi — entre uma massa
    visível de matéria cinzenta, ou de outra cor qualquer, e esta coisa eu que por
    detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem.

    Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa ser
    outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela,
    ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu
    trajeto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só
    espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relação de convívio em que
    podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais
    ordinária incomodar a que o é menos.

    Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma
    vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho
    por detrás de ter cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém
    impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia
    nem nobreza o espetáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí
    fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que
    tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como
    todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente,
    incluindo a que está próxima porém me não ofendeu.

    O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como
    disse, só porque me dói a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me
    com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria,
    período a período, a mágoa anónima do mundo; aos seus olhos imaginadores
    de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e
    através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica
    da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me a cabeça
    porque me dói a cabeça. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o
    universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não
    sabe que existo, mas aquele, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos
    cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem
    sofrer.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 09:06

    332.


    O pasmo que me causa a minha capacidade para a angústia. Não sendo, de
    natureza, um metafísico, tenho passado dias de angústia aguda, física mesmo,
    com a indecisão dos problemas metafísicos e religiosos... Vi depressa que o
    que eu tinha por a solução do problema religioso era resolver um problema
    emotivo em termos da razão.


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    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 09:10

    333.

    Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos
    nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o
    sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de
    pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de
    encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.
    Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão,
    nunca a podemos resolver.
    Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos
    intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.






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    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 15:06

    334.


    Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho estado num sono do
    entendimento pelo qual tenho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade
    translata tem-me sido frequente. Não tenho existido, tenho sido outro, tenho
    vivido sem pensar.
    Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me sonho. Foi um momento de
    grande cansaço, depois de um trabalho sem relevo. Pousei a cabeça contra as
    mãos, fincados os cotovelos na mesa alta inclinada. E, fechados os olhos,
    retrovei-me.
    Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora, e foi com uma
    nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de
    tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia
    vazia.

    Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir, lembrar, esquecer —
    tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio
    incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no
    escritório quedo. Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre
    o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a
    primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido
    que não era do escritório!) Poisada em cima do tinteiro. Contemplei-a do
    fundo do abismo, anónimo e desperto. Ela tinha tons verdes de azul preto e
    era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida!

    Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demónios da Verdade em
    cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que poisa um
    momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem
    pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, diretamente,
    com um horror profundo e escuro, que fiz a comparação risível. Fui mosca
    quando me comparei à mosca. Senti-me mosca quando supus que me o senti.
    E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o
    horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos
    para a direção do teto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a
    esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente, quando
    baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório
    involuntário estava outra vez sem filosofia.


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    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 15:07

    335.



    "Sentir é uma maçada." Estas palavras casuais de não sei que conviva à
    conversa de uns minutos, ficou-me sempre brilhando no chão da memória. A
    própria forma plebeia da frase lhe dá sal e pimenta’


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 15:08

    336.


    Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que merece, uma rua
    deserta com gente nela. Já este modo de dizer parece querer dizer qualquer
    outra coisa, e efetivamente a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde
    não passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam nela como se
    fosse deserta. Não há dificuldade em compreender isto desde que se o tenha
    visto: uma zebra é impossível para quem não conheça mais que um burro.
    As sensações ajustam-se, dentro de nós, a certos graus e tipos da
    compreensão delas. Há maneiras de entender que têm maneiras de ser
    entendidas.
    Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria,
    um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece
    insuportável porque de facto a suporto. E um estrangulamento da vida em
    mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve
    notícia do fim.



    409


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 20:34

    337.


    O que tenho sobretudo é cansaço, e aquele desassossego que é gémeo do
    cansaço quando este não tem outra razão de ser senão o estar sendo. Tenho
    um receio íntimo dos gestos a esboçar, uma timidez intelectual das palavras a
    dizer. Tudo me parece antecipadamente fruste. O insuportável tédio de todas
    estas caras, alvares de inteligência ou de falta dela, grotescas até à náusea de
    felizes ou infelizes, horrorosas porque existem, maré separada de coisas vivas
    que me são alheias...


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 20:35

    338.


    Sempre me tem preocupado, naquelas horas ocasionais de desprendimento
    em que tomamos consciência de nós mesmos como indivíduos que somos
    outros para os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até
    moralmente, para aqueles que me contemplam e me falam, ou todos os dias
    ou por acaso.

    Estamos todos habituados a considerar-nos como
    primordialmente realidades mentais, e aos outros como diretamente realidades
    físicas; vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos
    dos outros; vaga- mente consideramos os outros como realidades mentais,
    mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os
    outros têm sobretudo alma, como nós para nós. Perco-me, por isso, às vezes,
    numa imaginação fútil de que espécie de gente serei para os que me veem,
    como é a minha voz, que tipo de figura deixo escrita na memória involuntária
    dos outros, de que maneira os meus gestos, as minhas palavras, a minha vida
    aparente, se gravam nas retinas da interpretação alheia. Não consegui nunca
    ver-me de fora. Não há espelho que nos dê a nós como foras, porque não há
    espelho que nos tire de nós mesmos.

    Era precisa outra alma, outra colocação
    do olhar e do pensar. Se eu fosse ator prolongado de cinema, ou gravasse em
    discos audíveis a minha voz alta, estou certo que do mesmo modo ficaria
    longe de saber o que sou do lado de lá, pois, queira o que queira, grave-se o
    que de mim se grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de muros altos da
    minha consciência de mim.

    Não sei se os outros serão assim, se a ciência da vida não consistirá
    essencialmente em ser tão alheio a si mesmo que instintivamente se consegue
    um alheamento e se pode participar da vida como estranho à consciência; ou
    se os outros, mais ensimesmados do que eu, não serão de todo a bruteza de
    não serem senão eles, vivendo exteriormente por aquele milagre pelo qual as
    abelhas formam sociedades mais organizadas que qualquer nação, e as
    formigas comunicam entre si com uma fala de antenas mínimas que excede
    nos resultados a nossa complexa ausência de nos entendermos.

    A geografia da consciência da realidade é de uma grande complexidade de
    costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me parece, se medito
    de mais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de
    Gulliver, brincadeira da exatidão inscrita num livro irónico ou fantasista para
    gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são terras.
    Tudo é complexo para quem pensa, e sem dúvida o pensamento o torna
    mais complexo por volúpia própria. Mas quem pensa tem a necessidade de
    justificar a sua abdicação com um vasto programa de compreender, exposto,
    como as razões dos que mentem, com todos os pormenores excessivos que
    descobrem, com o espalhar da terra, a raiz da mentira.

    Tudo é complexo, ou sou eu que o sou. Mas, de qualquer modo, não
    importa porque, de qualquer modo, nada importa. Tudo isto, todas estas
    considerações extraviadas da rua larga, vegeta nos quintais dos deuses
    exclusos como trepadeiras longe das paredes. E sorrio, na noite em que
    concluo sem fim estas considerações sem engrenagem, da ironia vital que as
    faz surgir de uma alma humana, órfã, de antes dos astros, das grandes razões
    do Destino.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 20:36

    339.


    Paira-me à superfície do cansaço qualquer coisa de áureo que há sobre as
    águas quando o sol findo as abandona. Vejo-me como ao lago que imaginei, e
    o que vejo nesse lago sou eu. Não sei como explique esta imagem, ou este
    símbolo, ou este eu em que me figuro. Mas o que tenho por certo é que vejo,
    como se de facto visse, um sol por trás de montes, dando raios perdidos sobre
    o lago que os recebe a ouro escuro.

    Um dos malefícios de pensar é ver quando se está pensando. Os que
    pensam com o raciocínio estão distraídos, os que pensam com a emoção estão
    dormindo, os que pensam com a vontade estão mortos. Eu, porém, penso
    com a imaginação, e tudo quanto deveria ser em mim ou razão, ou mágoa, ou
    impulso, se me reduz a qualquer coisa indiferente e distante, como este lago
    porto entre rochedos onde o último do sol paira desalongadamente.
    Porque parei, estremeceram as águas. Porque refleti, o sol recolheu-se.
    Cerro os olhos lentos e cheios de sono, e não há dentro de mim senão uma
    região lacustre onde a noite começa a deixar de ser dia num reflexo castanho
    escuro de águas de onde as algas surgem.

    Porque escrevi, nada disse. A minha impressão é que o que existe é sempre
    em outra região, além de montes, e que há grandes viagens por fazer se
    tivermos alma com que ter passos.
    Cessei, como o sol na minha paisagem. Não fica, do que foi dito ou visto,
    senão uma noite já fechada, cheia de brilho morto de lagos, numa planície sem
    patos bravos, morta, fluida, húmida e sinistra


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 20:37

    340.


    Não acredito na paisagem. Sim. Não o digo porque creia no "a paisagem é
    um estado de alma" do Amiel, um dos bons momentos verbais da mais
    insuportável interiorice. Digo-o porque não creio.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 20:38

    341.


    Na minha alma ignóbil e profunda registo, dia a dia, as impressões que
    formam a substância externa da minha consciência de mim. Ponho-as em
    palavras vadias, que me desertam desde que as escrevo, e erram,
    independentes de mim, por encostas e relvados de imagens, por áleas de
    conceitos, por azinhagas de confusões. Isto de nada me serve, pois nada me
    serve de nada. Mas desapoquento-me escrevendo, como quem respira melhor
    sem que a doença haja passado.
    Há quem, estando distraído, escreva riscos e nomes absurdos no
    mataborrão de cantos entalados. Estas páginas são os rabiscos da minha

    inconsciência intelectual de mim. Traço-as numa modorra de me sentir, como
    um gato ao sol, e releio-as, por vezes, com um vago pasmo tardio, como o de
    me haver lembrado de uma coisa que sempre esquecera.
    Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho salas especiais, recordadas
    por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito analisando o que não
    sinto, e me examino como a um quadro na sombra.

    Perdi, antes de nascer, o meu castelo antigo. Foram vendidas, antes que eu
    fosse, as tapeçarias do meu palácio ancestral. O meu solar de antes da vida
    caiu em ruína, e só em certos momentos, quando o luar nasce em mim de
    sobre os juncos do rio, me esfria a saudade dos lados de onde o resto
    desdentado das paredes recorra negro contra o céu de azul escuro
    esbranquiçado a amarelo de leite.
    Distingo-me a esfinges. E do regaço da rainha que me falta cai, como um
    episódio do bordado inútil, o novelo esquecido da minha alma. Rola para
    debaixo do contador com embutidos, e há aquilo em mim que o segue como
    olhos até que se perde num grande horror de túmulo e de fim.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Miér 23 Nov 2022, 20:39

    342.

    Nunca durmo: vivo e sonho, ou antes, sonho em vida e a dormir, que
    também é vida. Não há interrupção na minha consciência: sinto o que me
    cerca se não durmo ainda, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar desde
    que deveras durmo. Assim, o que sou é um perpétuo desenrolamento de
    imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre de exteriores, umas postas
    entre os homens e a luz, se estou desperto, outras postas entre os fantasmas e
    a sem-luz que se vê, se estou dormindo. Verdadeiramente, não sei como
    distinguir uma coisa da outra, nem ouso afirmar se não durmo quando estou
    desperto, se não estou a despertar quando durmo.

    A vida é um novelo que alguém emaranhou. Há um sentido nela, se estiver
    desenrolada e posta ao comprido, ou enrolada bem. Mas, tal como está, é um
    problema sem novelo próprio, um embrulhar-se sem onde.
    Sinto isto, que depois escreverei, pois que vou já sonhando as frases a dizer,
    quando, através da noite de meio-dormir, sinto, junto com as paisagens de
    sonhos vagos, o ruído da chuva lá fora, a tornarmos mais vagos ainda. São
    adivinhas do vácuo, trémulas de abismo, e através delas se escoa, inútil, a
    plangência externa da chuva constante, minúcia abundante da paisagem do
    ouvido. Esperança? Nada. Do céu invisível desce em som a mágoa água que
    vento alça. Continuo dormindo.

    Era, sem dúvida, nas alamedas do parque que se passou a tragédia de que
    resultou a vida. Eram dois e belos e desejavam ser outra coisa; o amor
    tardava-lhes no tédio do futuro, e a saudade do que haveria de ser vinha já
    sendo filha do amor que não tinham tido. Assim, ao luar dos bosques
    próximos, pois através deles se coava a lua, passeavam, mãos dadas, sem
    desejos nem esperanças, através do deserto próprio das áleas abandonadas.
    Eram crianças inteiramente, pois que o não eram em verdade. De álea em
    álea, silhuetas entre árvore e árvore, percorriam em papel recortado aquele
    cenário de ninguém. E assim se sumiram para o lado dos tanques, cada vez
    mais juntos e separados, e o ruído da vaga chuva que cessa é o dos repuxos de
    para onde iam. Sou o amor que eles tiveram e por isso os sei ouvir na noite
    em que não durmo, e também sei viver infeliz.





    415


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    Mensaje por Maria Lua Jue 24 Nov 2022, 09:20

    343.

    Um dia (zig-zag)

    Não ter sido Madame de harém! Que pena tenho de mim por me não ter
    acontecido isso!
    Afinal deste dia fica o que de ontem ficou e ficará de amanhã: a ânsia
    insaciável e inúmera de ser sempre o mesmo e outro.
    Por degraus de sonhos e cansaços meus desce da tua irrealidade, desce e
    vem substituir o mundo.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 24 Nov 2022, 09:21

    344.


    Glorificação dos estéreis


    Se dentre as mulheres da terra eu vier um dia a colher uma esposa, que a
    tua prece por mim seja esta — que de qualquer modo ela seja estéril. Mas
    pede também, se por mim rezares, que eu não venha nunca a tirar para mim
    essa esposa suposta.
    Só a esterilidade é nobre e digna. Só o matar o que nunca foi é alto e
    perverso e absurdo.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 24 Nov 2022, 09:21

    345.



    Eu não sonho possuir-te. Para quê? Era traduzir para plebeu o meu sonho.
    Possuir um corpo é ser banal. Sonhar possuir um corpo é talvez pior, ainda
    que seja difícil sê-lo: é sonhar-se banal — horror supremo.
    E já que queremos ser estéreis, sejamos também castos, porque nada pode
    haver de mais ignóbil e baixo do que, renegando da Natureza o que nela é
    fecundado, guardar vilãmente dela o que nos praz no que renegámos. Não há
    nobrezas aos bocados.
    Sejamos castos como eremitas, puros como corpos sonhados, resignados a
    ser tudo isto, como freirinhas doidas...
    Que o nosso amor seja uma oração... Unge-me de ver-te que eu farei dos
    meus momentos de te sonhar um rosário onde os meus tédios
    serão padrenossos e as minhas angústias avé-marias...

    Fiquemos assim eternamente como uma figura de homem em vitral em
    frente de uma figura de mulher noutro vitral... Entre nós, sombras cujos
    passos soam frios, a humanidade passando... Murmúrios de rezas, segredos de
    passarão entre nós... Umas vezes enche-se bem o ar de incensos. Outras
    vezes, para este lado e para aquele uma figura de estátua rezará aspersões...
    E nós sempre os mesmos vitrais, nas cores quando o Sol nos bata, nas
    linhas quando a noite caia... Os séculos não tocarão no nosso silêncio vítreo...
    Lá fora passarão civilizações, escacharão revoltas, turbilhonarão festas,

    correrão mansos quotidianos povos... E nós, ó meu amor irreal, teremos
    sempre o mesmo gesto inútil, a mesma existência falsa, e a mesma até que um
    dia, no fim de vários séculos de impérios, a Igreja finalmente rua e tudo
    acabe... Mas nós que não sabemos dela ficaremos ainda, não sei como, não sei
    em que espaço, não sei porque tempo, vitrais eternos, horas de ingénuo
    desenho pintado por um qualquer artista que dorme há muito sob um túmulo
    godo onde dois anjos de mãos postas gelam em mármore a ideia de morte.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Jue 24 Nov 2022, 09:22

    346.



    As coisas sonhadas só têm o lado de cá... Não se lhes pode ver o outro
    lado... Não se pode andar à roda delas... O mal das coisas da vida é que as
    podemos ir olhando por todos os lados... As coisas de sonho só têm o lado
    que vemos... Têm amores só puros, como as nossas almas’


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    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
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    Mensaje por Maria Lua Jue 24 Nov 2022, 09:23

    347.

    Carta para não mandar

    Dispenso-a de comparecer na minha ideia de si.
    A sua vida Isso não é o meu amor; é apenas a sua vida.
    Amo-a como ao poente ou ao luar, com o desejo de que o momento fique,
    mas sem que seja meu nele mais que a sensação de tê-lo.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 24 Nov 2022, 09:26

    348.



    Nada pesa tanto como o afeto alheio — nem o ódio alheio, pois que o ódio
    é mais intermitente que o afeto; sendo uma emoção desagradável, tende, por
    instinto de quem a tem, a ser menos frequente. Mas tanto o ódio como o
    amor nos oprime; ambos nos buscam e procuram, nos não deixam sós.
    O meu ideal seria viver tudo em romance, repousando na vida ler as minhas
    emoções, viver o meu desprezo delas. Para quem tenha a imaginação à flor da
    pele, as aventuras de um protagonista de romance são emoção própria
    bastante, e mais, pois que são dele e nossas. Não há grande aventura como ter
    amado Lady Macbeth, com amor verdadeiro e direto; que tem que fazer que
    m assim amou senão, por descanso, não amar nesta vida ninguém?

    Não sei que sentido tem esta viagem que fui forçado a fazer, entre uma
    noite e outra noite, na companhia do universo inteiro. Sei que posso ler para
    me distrair. Considero a leitura como o modo mais simples de entreter esta,
    como outra, viagem; e, de vez em quando, ergo os olhos do livro onde estou
    sentindo verdadeiramente, e vejo, como estrangeiro, a paisagem que foge
    campos, cidades, homens e mulheres, afeições e saudades -, e tudo isso não é
    mais para mim do que um episódio do meu repouso, uma distração inerte em
    que descanso os olhos das páginas demasiado lidas.

    Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por
    estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente. Se realizasse algum
    sonho, teria ciúmes dele, pois me haveria traído com o ter-se deixado realizar.
    Realizei tudo quanto quis, diz o débil, e é mentira; a verdade é que sonhou
    profeticamente tudo quanto a vida realizou dele. Nada realizamos. A vida
    atira-nos como uma pedra, e nós vamos dizendo no ar, "Aqui me vou
    mexendo".

    Seja o que for este interlúdio mimado sob o projetor do sol e as lantejoulas
    das estrelas, não faz mal decerto saber que ele é um interlúdio; se o que está
    para além das portas do teatro é a vida, viveremos; se é a morte, morreremos,
    e a peça nada tem com isso.
    Por isso nunca me sinto tão próximo da verdade, tão sensivelmente
    iniciado, como quando nas raras vezes que vou ao teatro ou ao circo: sei então
    que enfim estou assistindo à perfeita figuração da vida. E os atores e as atrizes,
    os palhaços e os prestidigitadores são coisas importantes e fúteis, como o sol e
    a lua, o amor e a morte, a peste, a fome, a guerra na humanidade. Tudo é
    teatro. Ah, quero a verdade? Vou continuar o romance...





    421


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    Mensaje por Maria Lua Vie 25 Nov 2022, 08:02

    349.


    Amais vil de todas as necessidades — a da confidência, a da confissão. E a
    necessidade da alma de ser exterior.
    Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do
    peso dos seus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que os segredos que digas,
    nunca os tenhas tido. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade.
    Exprimir é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.


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    Mensaje por Maria Lua Vie 25 Nov 2022, 08:03

    350.


    Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se
    tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por
    fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a
    sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez
    prolongada- mente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento
    conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.

    Julgo, às vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma
    moldura para enquadrar o que lhe é estranho. Na recordação, que tenho da
    minha vida passada, os tempos estão dispostos em níveis e planos absurdos,
    sendo eu mais jovem em certo episódio dos quinze anos solenes que em outro
    da infância sentada entre brinquedos.
    Emaranha-se-me a consciência se penso nestas coisas. Pressinto um erro
    em tudo isto; não sei, porém, de que lado está. É como se assistisse a uma
    sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não
    concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do engano.

    Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não consigo todavia repelir
    como absurdos de todo. Penso se um homem que medita devagar dentro de
    um carro que segue depressa está indo depressa ou devagar. Penso se serão
    iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o suicida e o que se
    desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente sincrónicos os
    movimentos, que ocupam o mesmo tempo, em os quais fumo um cigarro,
    escrevo este trecho e penso obscuramente.

    De duas rodas no mesmo eixo podemos pensar que há sempre uma que
    estará mais adiante, ainda que seja frações de milímetro. Um microscópio
    exageraria este deslocamento até o tornar quase inacreditável, impossível se
    não fosse real. E porque não há o microscópio de ter razão contra a má vista?
    São considerações inúteis? Bem o sei. São ilusões da consideração? Concedo.
    Que coisa, porém, é esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é
    nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma
    pessoa, e tenho vontade de dormir.


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    Mensaje por Maria Lua Vie 25 Nov 2022, 08:04

    351.

    Paciências

    As tias velhas dos que as tiveram, nos serões a petróleo das casas vagas na
    província, entretinham a hora em que a criada dorme ao som crescente da
    chaleira ... A fazer paciências com cartas. Tem saudades em mim desse
    sossego inútil alguém que se coloca no meu lugar. Vem o chá e o baralho
    velho amontoa-se regular ao canto da mesa. O guarda-louça enorme escurece
    a sombra, na sala de jantar apenumbrada. A sua de sono a cara da criada
    apressada lentamente por acabar. Vejo isso tudo em mim com uma angústia e
    uma saudade independentes de ter relação com qualquer coisa. E, sem querer,
    ponho-me a considerar qual é o estado de espírito de quem faz paciências
    com cartas.




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    Mensaje por Maria Lua Vie 25 Nov 2022, 08:05

    352.


    Não é nos Largos campos ou nos jardins grandes que vejo chegar a
    primavera. É nas poucas árvores pobres de um largo pequeno da cidade. Ali a
    verdura destaca como uma dádiva e é alegre como uma boa tristeza.
    Amo esses largos solitários, intercalados entre ruas de pouco trânsito, e eles
    mesmos sem mais trânsito que as ruas. São clareiras inúteis, coisas que
    esperam, entre tumultos longínquos. São de aldeia na cidade.
    Passo por eles, subo qualquer das ruas suas afluentes, depois desço de novo
    essa rua, para a eles regressar. Visto do outro lado é diferente, mas a mesma
    paz deixa dourar de saudade súbita — sol no ocaso — o lado que não vira na
    ida.
    Tudo é inútil, e eu o sinto como tal. Quanto vivi se me esqueceu como se o
    ouvira distraído. Quanto serei me não lembra como se o tivera vivido e
    esquecido.
    Um ocaso de mágoa leve paira vago no meu torno. Tudo esfria, não porque
    esfrie, mas porque entrei numa rua estreita e o largo cessou


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    Mensaje por Maria Lua Vie 25 Nov 2022, 08:06

    353.


    A manhã, meio fria, meio morna, alava-se pelas casas raras das encostas no
    extremo da cidade. Uma névoa ligeira, cheia de despertar, esfarrapava-se, sem
    contornos, no adormecimento das encostas. (Não fazia frio, salvo em ter que
    recomeçar a vida.) E tudo aquilo – toda esta frescura lenta da manhã leve, era
    análogo a uma alegria que ele nunca pudera ter.

    O carro descia lentamente, a caminho das avenidas. À medida que se
    aproximava do maior aglomeramento das casas, uma sensação de perda
    tomava-lhe o espírito vagamente. A realidade humana começava a despontar.
    Nestas horas matinais, em que a sombra já desapareceu, mas não ainda o
    seu peso leve, a o espírito que se deixa levar pelos incitamentos da hora
    apetece a chegada e o porto antigo ao sol. Alegraria, não que o instante se
    fixasse, como nos momentos solenes da paisagem, ou no luar calmo sobre o
    rio, mas que a vida tivesse sido outra, de modo que este momento pudesse ter
    um outro sabor que se lhe reconhece mais próprio.
    Adelgaçava-se mais a névoa incerta. O sol invadia mais as coisas. Os sons
    da vida acentuavam-se no arredor.

    Seria certo, por uma hora como estas, não chegar nunca à realidade humana
    para que a nossa vida se destina. Ficar suspenso, entre a névoa e a manhã,
    imponderavelmente, não em espírito, mas em corpo espiritualizado, em vida
    real alada, aprazia, mais do que outra coisa, ao nosso desejo de buscar um
    refúgio, mesmo sem razão para o buscar.
    Sentir tudo subtilmente torna-nos indiferentes, salvo para o que se não
    pode obter — sensações por chegar a uma alma ainda em embrião para elas,
    atividades humanas congruentes com sentir profundamente, paixões e
    emoções perdidas entre conseguimentos de outras espécies.
    As árvores, no seu alinhamento pelas avenidas, eram independentes de tudo
    isto.

    A hora acabou na cidade, como a encosta do outro lado do rio quando o
    barco toca no cais. Ele trouxe consigo, enquanto não tocou na margem, a
    paisagem da outra banda pegada à amurada; ela despegou-se quando se deu o
    som da amurada a tocar nas pedras. O homem de calças arregaçadas sobre o
    joelho deitou um grampo ao cabo, e foi definitivo e concludente o seu gesto
    natural. Terminou metafisicamente na impossibilidade na nossa alma de
    continuarmos a ter a alegria de uma angústia duvidosa. Os garotos no cais
    olhavam para nós como para qualquer outra pessoa, que não tivesse aquela
    emoção imprópria para a parte útil dos embarques


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    Mensaje por Maria Lua Vie 25 Nov 2022, 08:07

    354.


    O calor, como uma roupa invisível, dá vontade de o tirar.


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    Mensaje por Maria Lua Vie 25 Nov 2022, 08:08

    355.


    Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar.


    Súbito, de aço, um dia infinito’ estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a
    mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara
    nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto,
    rasgando num grito sedas do abismo. O meu coração parou. Bateu-me a
    garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel.





    428


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