Aires de Libertad

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    Mensaje por Maria Lua 25.08.22 8:33

    176.

    A Estalagem da razão

    A meio caminho entre a fé e a crítica está a estalagem da razão. A razão é a
    fé no que se pode compreender sem fé; mas é uma fé ainda, porque
    compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível.


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    Mensaje por Maria Lua 25.08.22 8:35

    177.

    Teorias metafísicas que possam dar-nos um momento a ilusão de que
    explicámos o inexplicável; teorias morais que possam iludir-nos uma hora
    com o convencimento de que sabemos por fim qual, de todas as portas
    fechadas, é o ádito da virtude; teorias políticas que nos persuadam durante um
    dia que resolvemos qualquer problema, sendo que não há problema solúvel,
    exceto os da matemática — resumamos a nossa atitude para com a vida nesta
    ação conscientemente estéril, nesta preocupação que, se não dá prazer, evita,
    ao menos, sentirmos a presença da dor.

    Nada há que tão notavelmente determine o auge de uma civilização, como
    o conhecimento, nos que a vivem, da esterilidade de todo o esforço, porque
    nos regem leis implacáveis, que nada revoga nem obstrui. Somos, porventura,
    servos algemados ao capricho de deuses, mais fortes porém não melhores que
    nós, subordinados, nós como eles, à regência férrea de um Destino abstrato,
    superior à justiça e à bondade, alheio ao bem e ao mal.



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    Mensaje por Maria Lua 27.08.22 9:01

    178.



    Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte
    do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão
    trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos
    mortos; vamos viver quando estamos moribundos.
    Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma que há entre o que
    chamamos vida e o que chamamos morte. Estamos dormindo, e esta vida é
    um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido
    verdadeiro.

    Tudo aquilo que nas nossas atividades consideramos superior, tudo isso
    participa da morte, tudo isso é morte. Que é o ideal senão a confissão de que a
    vida não serve? Que é a arte senão a negação da vida? Uma estátua é um
    corpo morto, talhado para fixar a morte, em matéria de incorrupção. O
    mesmo prazer, que tanto parece uma imersão na vida, é antes uma imersão em
    nós mesmos, uma destruição das relações entre nós e a vida, uma sombra
    agitada da morte.

    O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida
    que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.
    Povoamos sonhos, somos sombras errando através de florestas
    impossíveis, em que as árvores são casas, costumes, ideias, ideais e filosofias.
    Nunca encontrar Deus, nunca saber, sequer, se Deus existe! Passar de
    mundo para mundo, de encarnação para encarnação, sempre na ilusão que
    acarinha, sempre no erro que afaga.
    A verdade nunca, a paragem nunca! A união com Deus nunca! Nunca
    inteiramente em paz, mas sempre um pouco dela, sempre o desejo dela!


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    Mensaje por Maria Lua 29.08.22 19:45

    179.



    O instinto infante da humanidade que faz que o mais orgulhoso de nós, se
    é homem e não louco, anseie, ..., pela mão paternal que o guie, como quer que
    seja logo que o guie, através do mistério e da confusão do mundo. Cada um
    de nós é um grão de pó que o vento da vida levanta, e depois deixa cair.
    Temos que arrimar-nos a um esteio, que pôr a mão pequena num a outra
    mão; porque a hora é sempre incerta, o céu sempre longe, e a vida sempre
    alheia.
    O mais alto de nós não é mais que um conhecedor mais próximo do oco e
    do incerto de tudo.
    Pode ser que nos guie uma ilusão; a consciência, porém, é que nos não guia.


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    Mensaje por Maria Lua 29.08.22 19:46

    180.




    Se algum dia me suceder que, com uma vida firmemente segura, possa
    livremente escrever e publicar, sei que terei saudades desta vida incerta em que
    mal escrevo e não publico. Terei saudades, não só porque essa vida fruste é
    passado e vida que não mais terei, mas porque há em cada espécie de vida
    uma qualidade própria e um prazer peculiar, e quando se passa para outra
    vida, ainda que melhor, esse prazer peculiar é menos feliz, essa qualidade
    própria é menos boa, deixam de existir, e há uma falta.
    Se algum dia me suceder que consiga levar ao bom calvário a cruz da minha
    intenção, encontrarei um calvário nesse bom calvário, e terei saudades de
    quando era fútil, fruste e imperfeito. Serei menos de qualquer maneira.
    Tenho sono. O dia foi pesado de trabalho absurdo no escritório quase
    deserto. Dois empregados estão doentes e os outros não estão aqui. Estou só,
    salvo o moço longínquo. Tenho saudades da hipótese de poder ter um dia
    saudades, e ainda assim absurdas.
    Quase peço aos deuses que haja que me guardem aqui, como num cofre,
    defendendo-me das agruras e também das felicidades da vida.


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    Mensaje por Maria Lua 03.09.22 15:06

    181.



    Nas vagas sombras de luz por findar antes que a tarde seja noite cedo, gozo
    de errar sem pensar entre o que a cidade se torna, e ando como se nada tivesse
    remédio. Agrada-me, mais à imaginação que aos sentidos, a tristeza dispersa
    que está comigo. Vago, e folheio em mim, sem o ler, um livro de texto
    intersperso de imagens rápidas, de que vou formando indolentemente uma
    ideia que nunca se completa.
    Há quem leia com a rapidez com que olha, e conclua sem ter visto tudo.
    Assim tiro do livro que se me folheia na alma uma história vaga por contar,
    memórias de um outro vagabundo, bocados de descrições de crepúsculos ou
    luares, com áleas de parques no meio, e figuras de seda várias, a passar, a
    passar.

    Indiscrimino a tédio e outro. Sigo, simultaneamente, pela rua, pela tarde e
    pela leitura sonhada, e os caminhos são verdadeiramente percorridos. Emigro
    e repouso, como se estivesse a bordo com o navio já no mar alto.
    Súbitos, os candeeiros mortos coincidem luzes pelos prolongamentos
    duplos da rua longa e curva. Como um baque a minha tristeza aumenta. E que
    o livro acabou. Há só, na viscosidade aérea da rua abstrata, um fio externo de
    sentimento, como a baba do Destino idiota, a pingar-me sobre a consciência
    da alma.

    Outra vida, a da cidade que anoitece. Outra alma, a de quem olha a noite.
    Sigo incerto e alegórico, irrealmente sentiente. Sou como uma história que
    alguém houvesse contado, e, de tão bem contada, andasse carnal mas não
    muito neste mundo romance, no princípio de um capítulo: "A essa hora um
    homem podia ser visto seguir lentamente pela rua de...
    Que tenho eu com a vida?


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    Mensaje por Maria Lua 05.09.22 8:08

    182.

    Intervalo

    Antefalhei a vida, porque nem sonhando-a ela me apareceu deleitosa.
    Chegou até mim o cansaço dos sonhos... Tive ao senti-lo uma sensação
    externa e falsa, como a de ter chegado ao término de uma estrada infinita.
    Transbordei de mim não sei para onde, e aí fiquei estagnado e inútil. Sou
    qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não
    sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me.
    Sinto-me expulso da minha alma.
    Assisto a mim. Presenceio-me. As minhas sensações passam diante de não
    sei que olhar meu como coisas externas. Aborreço-me de mim em tudo.
    Todas as coisas são, até às suas raízes de mistério, da cor do meu
    aborrecimento.
    Estavam já murchas as flores que as Horas me entregaram. A minha única
    ação possível é vê-las desfolhando lentamente. E isso é tão complexo de
    envelhecimentos!
    A mínima ação é-me dolorosas como uma heroicidade . O mais pequeno
    gesto pesa-me no ideá-lo, como se foras uma coisa que eu realmente pensasse
    em fazer.
    Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde
    penso em poder estar.
    O ideal era não ter mais ação do que a ação falsa de um repuxo – subir para
    cair no mesmo sítio, brilho ao sol sem utilidade nenhuma a fazer som no
    silêncio da noite para que quem sonhe pense em rios no seu sonho e sorria
    esquecidamente.





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    Mensaje por Maria Lua 05.09.22 8:09

    183.



    Desde o princípio baço do dia quente e falso nuvens escuras e de
    contornos mal rotos rondavam a cidade oprimida. Dos lados a que chamamos
    da barra, sucessivas e torvas, essas nuvens sobrepunham-se, e uma
    antecipação de tragédia estendia-se com elas do indefinido rancor das ruas
    contra o sol alterado.
    Era meio-dia e já, na saída para o almoço, pesava uma esperança má na
    atmosfera empalidecida. Farrapos de nuvens esfarrapadas negrejavam na
    dianteira dela. O céu, para os lados do Castelo, era limpo mas de um mau azul.
    Havia sol mas não apetecia gozá-lo.
    À uma hora e meia da tarde, quando se regressara ao escritório, parecia
    mais limpo o céu, mas só para um lado antigo. Sobre os lados da barra estava
    de facto mais descoberto. De sobre a parte norte da cidade, porém, as nuvens
    conjugavam-se lentamente numa nuvem só — negra, implacável, avançando
    lentamente com garras rombas de branco cinzento na ponta de braços negros.
    Dentro em pouco atingiria o sol, e os ruídos da cidade parece que se abafavam
    com o esperá-la.

    Era, ou parecia, um pouco mais límpido o céu para os lados de leste, mas o
    calor fazia mais desagrado. Suava-se na sombra da sala grande do escritório.
    "Vem aí uma grande trovoada", disse o Moreira, e voltou a página do Razão.
    Às três horas da tarde falhara já toda a ação do sol. Foi preciso – e era triste
    porque era verão — acender a luz elétrica — primeiro ao fundo da sala
    grande, onde estavam empacotando as remessas, depois já a meio da sala,
    onde se tornava difícil fazer sem erro as guias de remessa e notar nelas os
    números das senhas de caminho-de-ferro.

    Por fim, já eram quase quatro
    horas, até nós — os privilegiados das janelas — não víamos agradavelmente
    para trabalhar. O escritório ficou iluminado. O patrão Vasques atirou com o
    guarda-vento do gabinete e disse para fora, saindo: "Ó Moreira, eu tinha que ir
    a Benfica mas não vou; vai-se fartar de chover." "E é lá desse lado",
    respondeu o Moreira, que morava ao pé da Avenida. Os ruídos da rua
    destacaram-se de repente, alteraram-se um pouco, e era, não sei porquê, um
    pouco triste o som das campainhas dos elétricos na rua paralela e próxima.


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    Mensaje por Maria Lua 05.09.22 8:11

    184.



    Antes que o estio cesse e chegue o outono, no cálido intervalo em que o ar
    pesa e as cores abrandam, as tardes costumam usar um traje sensível de
    gloríola falsa. São comparáveis àqueles artifícios da imaginação em que as
    saudades são de nada, e se prolongam indefinidas como rastos de navios
    formando a mesma cobra sucessiva.

    Nessas tardes enche-me, como um mar em maré, um sentimento pior que
    o tédio mas a que não compete outro nome senão tédio — um sentimento de
    desolação sem lugar, de naufrágio de toda a alma. Sinto que perdi um Deus
    complacente, que a Substância de tudo morreu. E o universo sensível é para
    mim um cadáver que amei quando era vida; mas é tudo tornado nada na luz
    ainda quente das últimas nuvens coloridas.

    O meu tédio assume aspetos de horror; o meu aborrecimento é um medo.
    O meu suor não é frio, mas é fria a minha consciência do meu suor. Não há
    mal-estar físico, salvo que o mal-estar da alma é tão grande que passa pelos
    poros do corpo e o inunda a ele também.

    É tão magno o tédio, tão soberano o horror de estar vivo, que não concebo
    que coisa haja que pudesse servir de lenitivo, de antídoto, de bálsamo ou
    esquecimento para ele. Dormir horroriza-me como tudo.
    Morrer horrorizame como tudo. Ir e parar são a mesma coisa impossível.

    Esperar e descrer
    equivalem-se em frio e cinza. Sou uma prateleira de frascos vazios.
    Contudo que saudade do futuro, se deixo os olhos vulgares receber a
    saudação morta do dia iluminado que finda! Que grande enterro da esperança
    vai pela calada doirada ainda dos céus inertes, que cortejo de vácuos e nadas
    se espalha a azul rubro que vai ser pálido pelas vastas planícies do espaço
    alvar!

    Não sei o que quero ou o que não quero. Deixei de saber querer, de saber
    como se quer, de saber as emoções ou os pensamentos com que
    ordinariamente se conhece que estamos querendo, ou querendo querer. Não
    sei quem sou ou o que sou. Como alguém soterrado sob um muro que se
    desmoronasse, jazo sob a vacuidade tombada do universo inteiro. E assim
    vou, na esteira de mim mesmo, até que a noite entre e um pouco do afago de
    ser diferente ondule, como uma brisa, pelo começo da minha impaciência de
    mim.
    Ah, e a lua alta e maior destas noites plácidas, mornas de angústia e
    desassossego! A paz sinistra da beleza celeste, ironia fria do ar quente, azul
    negro enevoado de luar e tímido de estrelas.


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    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 05.09.22 8:11

    185.


    Intervalo
    Esta hora horrorosa que ou decresça para possível ou cresça para mortal.
    Que a manhã nunca raie, e que eu e esta alcova toda, e a sua atmosfera
    interior a que pertenço, tudo se espiritualize em Noite, se absolute em Treva e
    nem fique de mim uma sombra que manche da minha memória o que quer
    que seja que não morra.


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    y en ese vuelo y en ese sueño
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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 05.09.22 8:12

    186.


    Prouvera aos deuses, meu coração triste, que o Destino tivesse um sentido!
    Prouvera antes ao Destino que os deuses o tivessem!
    Sinto às vezes, acordando na noite, mãos invisíveis que tecem o meu fado.
    Jazo a vida. Nada de mim interrompe nada.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 07.09.22 22:00

    187.


    A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias, uma ironia
    do Destino. Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho
    como uma libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da
    vida real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou como um
    escravo que se embebeda à sesta — duas misérias num corpo só.

    Sim, vejo nitidamente, com a clareza com que os relâmpagos da razão
    destacam do negrume da vida os objetos próximos que no-la formam, o que
    há de vil, de lasso, de deixado e factício, nesta Rua dos Douradores que me é a
    vida inteira — este escritório sórdido até à sua medula de gente, este quarto
    mensalmente alugado onde nada acontece senão viver um morto, esta
    mercearia da esquina cujo dono conheço como gente conhece gente, estes
    moços da porta da taberna antiga, esta inutilidade trabalhosa de todos os dias
    iguais, esta repetição pegada das mesmas personagens, como um drama que
    consiste apenas no cenário, e o cenário estivesse às avessas...

    Mas vejo também que fugir a isto seria ou dominá-lo ou repudiá-lo, e eu
    nem o domino, porque o não excedo adentro do real, nem o repudio, porque,
    sonhe o que sonhe, fico sempre onde estou.
    E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a cobardia de ter como vida
    aquele lixo da alma que os outros têm só no sono, na figura da morte com que
    ressonam, na calma com que parecem vegetais progredidos!
    Não poder ter um gesto nobre que não seja de portas adentro, nem um
    desejo inútil que não seja deveras inútil!

    Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras:
    "Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma!" Eu não sou nada
    nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é
    respeitado da Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um
    quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade,
    nem inferioridade, nem comparação?

    É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente.
    E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a
    minha vida, absurda como um relógio público parado.
    Aquela sensibilidade ténue, mas firme, o sonho longo mas consciente que
    forma no seu conjunto o meu privilégio de penumbra



    p238


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    Mensaje por Maria Lua 08.09.22 7:40

    188.



    O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a
    felicidade de a não pensar. Viver a vida decorrentemente, exteriormente,
    como um gato ou um cão — assim fazem os homens gerais, e assim se deve
    viver a vida para que possa contar a satisfação do gato e do cão.
    Pensar é destruir. O próprio processo do pensamento o indica para o
    mesmo pensamento, porque pensar é decompor. Se os homens soubessem
    meditar no mistério da vida, se soubessem sentir as mil complexidades que
    espiam a alma em cada pormenor da ação, não agiriam nunca, não viveriam
    ate. Matar-se-iam de assustados, como os que se suicidam para não ser
    guilhotinados no dia seguinte.


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    Mensaje por Maria Lua 08.09.22 7:41

    189.


    Dia de chuva


    O ar é de um amarelo escondido’, como um amarelo pálido visto através de
    um branco sujo. Mal há amarelo no ar acinzentado. A palidez do cinzento,
    porém, tem um amarelo na sua tristeza.


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    Mensaje por Maria Lua 08.09.22 7:42

    190.



    Qualquer deslocamento das horas usuais traz sempre ao espírito uma
    novidade fria, um prazer levemente desconfortante. Quem tem o hábito de
    sair do escritório às seis horas, e por acaso saia às cinco, tem desde logo um
    feriado mental e uma coisa que parece pena de não saber o que fazer de si.
    Ontem, por ter de que tratar longe, saí do escritório às quatro horas, e às
    cinco tinha terminado a minha tarefa afastada. Não costumo estar nas ruas
    àquela hora, e por isso estava numa cidade diferente. O tom lento da luz nas
    frontarias usuais era de uma doçura improfícua, e os transeuntes de sempre
    passavam por mim na cidade ao lado, marinheiros desembarcados da esquadra
    de ontem à noite.
    Eram ainda horas de estar aberto o escritório. Recolhi a ele com um pasmo
    natural dos empregados de quem me havia já despedido. Então de volta? Sim,
    de volta. Estava ali livre de sentir, sozinho com os que me acompanhavam
    sem que espiritualmente ali estivessem para mim... Era em certo modo o lar,
    isto é, o lugar onde se não sente.


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    Mensaje por Maria Lua 08.09.22 7:44

    191.


    Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu
    já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim
    a gente que me "compreenda", os meus, a família verdadeira para nela nascer
    e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muito.
    Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem
    morreu a só desafeição que houve, quando vivo.

    Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu
    dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o
    compreendam, hão de escrever que na minha época fui incompreendido, que
    infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me
    acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever,
    incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo
    futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já
    morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.
    Na tarde em que escrevo, o dia de chuva parou. Uma alegria do ar é fresca
    de mais contra a pele. O dia vai acabando não em cinzento, mas em azul-
    pálido. Um azul vago reflete-se, mesmo, nas pedras das ruas. Dói viver, mas é
    de longe. Sentir não importa. Acende-se uma ou outra montra.

    Em uma outra janela alta há gente que vê acabarem o trabalho. O mendigo
    que roça por mim pasmaria, se me conhecesse.
    No azul menos pálido e menos azul, que se espelha nos prédios, entardece
    um pouco mais a hora indefinida.
    Cai leve, fim do dia certo, em que os que creem e erram se engrenam no
    trabalho do costume, e têm, na sua própria dor, a felicidade da inconsciência.
    Cai leve, onda de luz que cessa, melancolia da tarde inútil, bruma sem névoa
    que entra no meu coração. Cai leve, suave, indefinida palidez Lúcida e azul da
    tarde aquática — leve, suave, triste sobre a terra simples e fria. Cai leve, cinza
    invisível, monotonia magoada, tédio sem torpor.





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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 12.09.22 16:06

    192.



    Três dias seguidos de calor sem calma, tempestade latente no mal-estar da
    quietude de tudo, vieram trazer, porque a tempestade se escoasse para outro
    ponto, um leve fresco morno e grato à superfície lúcida das coisas. Assim às
    vezes, neste decurso da vida, a alma, que sofreu porque a vida lhe pesou, sente
    subitamente um alívio, sem que se desse nela o que o explicasse.
    Concebo que sejamos climas, sobre que pairam ameaças de tormenta,
    noutro ponto realizadas.
    A imensidade vazia das coisas, o grande esquecimento que há no céu e na
    terra...


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 12.09.22 16:08

    193.



    Tenho assistido, incógnito, ao desfalecimento gradual da minha vida, ao
    soçobro Lento de tudo quanto quis ser. Posso dizer, com aquela verdade que
    não precisa de flores para se saber que está morta, que não há coisa que eu
    tenha querido, ou em que tenha posto, um momento que fosse, o sonho só
    desse momento, que se me não tenha desfeito debaixo das janelas como pó
    parecendo pedra caído de um vaso de andar alto. Parece, até, que o Destino
    tem sempre procurado, primeiro, fazer-me amar ou querer aquilo que ele
    mesmo tinha disposto para que no dia seguinte eu visse que não tinha ou teria.

    Espectador irónico de mim mesmo, nunca, porém, desanimei de assistir à
    vida. E, desde que sei, hoje, por antecipação de cada vaga esperança que ela há
    de ser desiludida, sofro o gozo especial de gozar já a desilusão com a
    esperança, como um amargo com doce que torna o doce doce contra o
    amargo. Sou um estratégico sombrio, que, tendo perdido todas as batalhas,
    traça já, no papel dos seus planos, gozando-lhe o esquema, os pormenores da
    sua retirada fatal, na véspera de cada sua nova batalha.

    Tem-me perseguido, como um ente maligno, o destino de não poder
    desejar sem saber que terei que não ter. Se um momento vejo na rua um vulto
    núbil de rapariga, e, indiferentemente que seja, tenho um momento de supor o
    que seria se ele fosse meu, é sempre certo que, a dez passos do meu sonho,
    aquela rapariga encontra o homem que vejo que é o marido ou o amante. Um
    romântico faria disto uma tragédia; um estranho sentiria isto como uma
    comédia: eu, porém, misturo as duas coisas, pois sou romântico em mim e
    estranho a mim, e viro a página para outra ironia.

    Uns dizem que sem esperança a vida é impossível, outros que com
    esperança é vazia. Para mim, que hoje não espero nem desespero, ela é um
    simples quadro externo, que me inclui a mim, e a que assisto como um
    espetáculo sem enredo, feito só para divertir os olhos — bailado sem nexo,
    mexer de folhas ao vento, nuvens em que a luz do sol muda de cores,
    arruamentos antigos, ao acaso, em pontos desconformes da cidade.

    Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. Desenrolo-me em
    períodos e parágrafos, faço-me pontuações, e, na distribuição desencadeada
    das imagens, visto-me, como as crianças, de rei com papel de jornal, ou, no
    modo como faço ritmo de uma série de palavras, me touco, como os loucos,
    de flores secas que continuam vivas nos meus sonhos. E, acima de tudo, estou
    tranquilo, como um boneco de serradura que, tomando consciência de si
    mesmo, abanasse de vez em quando a cabeça para que o guizo no alto do
    boné em bico (parte integrante da mesma cabeça) fizesse soar qualquer coisa,
    vida tinida do morto, aviso mínimo ao Destino.

    Quantas vezes, contudo, em pleno meio desta insatisfação sossegada, me
    não sobe pouco a pouco à emoção consciente o sentimento do vácuo e do
    tédio de pensar assim! Quantas vezes não me sinto, como quem ouve falar
    através de sons que cessam e recomeçam, a amargura essencial desta vida
    estranha à vida humana — vida em que nada se passa salvo na consciência
    dela! Quantas vezes, despertando de mim, não entrevejo, do exílio que sou,
    quanto fora melhor ser o ninguém de todos, o feliz que tem ao menos a
    amargura real, o contente que tem cansaço em vez de tédio, que sofre em vez
    de supor que sofre, que se mata, sim, em vez de se morrer!

    Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que eu
    queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em
    palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são
    outra coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De tanto pensar-me,
    sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a
    pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o olhar que me
    mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me
    contempla contemplá-lo.

    Sou uma espécie de carta de jogar, de naipe antigo e incógnito, restando
    única do baralho perdido. Não tenho sentido, não sei do meu valor, não tenho
    a que me compare para que me encontre, não tenho a que sirva para que me
    conheça. E assim, em imagens sucessivas em que me descrevo – não sem
    verdade, mas com mentiras -, vou ficando mais nas imagens do que em mim,
    dizendo-me até não ser, escrevendo com a alma como tinta, útil para mais
    nada do que para se escrever com ela. Mas cessa a reação, e de novo me
    resigno. Volto em mim ao que sou, ainda que seja nada. E alguma coisa de
    lágrimas sem choro arde nos meus olhos hirtos, alguma coisa de angústia que
    não houve me empola asperamente a garganta seca. Mas aí, nem sei o que
    chorara, se houvesse chorado, nem porque foi que o não chorei. A ficção
    acompanha-me, como a minha sombra. E o que quero é dormir.


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    Mensaje por Maria Lua 12.09.22 16:09

    194.




    Há um grande cansaço na alma do meu coração. Entristece-me quem eu
    nunca fui, e não sei que espécie de saudades é a lembrança que tenho dele. Caí
    contra as esperanças e as certezas, com os poentes todos.


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    Mensaje por Maria Lua 12.09.22 16:09

    195.


    Há criaturas que sofrem realmente por não poder ter vivido na vida real
    com o Sr. Pickwick e ter apertado a mão ao Sr. Wardle. Sou um desses. Tenho
    chorado lágrimas verdadeiras sobre esse romance, por não ter vivido naquele
    tempo, com aquela gente, gente real.
    Os desastres dos romances são sempre belos porque não corre sangue
    autêntico neles, nem apodrecem os mortos nos romances, nem a podridão é
    podre nos romances.
    Quando o Sr. Pickwick é ridículo, não é ridículo, porque o é num romance.
    Quem sabe se o romance não será uma mais perfeita realidade e vida que
    Deus cria através de nós, que nós — quem sabe – existimos apenas para criar?
    As civilizações parece não existirem senão para produzir arte e literatura; é,
    palavras, o que delas fala e fica. Porque não serão essas figuras extra-humanas
    verdadeiramente reais? Dói-me mal na existência mental pensar que isto possa
    ser assim...


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    Mensaje por Maria Lua 12.09.22 16:11

    196.



    Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que
    são absurdos — a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são
    impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido,
    a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo.
    Todos estes meios tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem
    dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um
    campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos,
    negrejando claramente entre margens afastadas.

    Não sei se estes sentimentos são uma loucura lenta do desconsolo, se são
    reminiscências de qualquer outro mundo em que houvéssemos estado —
    reminiscências cruzadas e misturadas, como coisas vistas em sonhos, absurdas
    na figura que vemos mas não na origem se a soubéssemos. Não sei se houve
    outros seres que fomos, cuja maior completidão sentimos hoje, na sombra
    que deles somos, de uma maneira incompleta — perdida a solidez e nós
    figurando-no-la mal nas só duas dimensões da sombra que vivemos.
    Sei que estes pensamentos da emoção doem com raiva na alma. A
    impossibilidade de nos figurar uma coisa a que correspondam, a
    impossibilidade de encontrar qualquer coisa que substitua aquela a que se
    abraçam em visão — tudo isto pesa como uma condenação dada não se sabe
    onde, ou por quem, ou porquê.

    Mas o que fica de sentir tudo isto é com certeza um desgosto da vida e de
    todos os seus gestos, um cansaço antecipado dos desejos e de todos os seus
    modos, um desgosto anónimo de todos os sentimentos. Nestas horas de
    mágoa subtil, torna-se-nos impossível, até em sonho, ser amante, ser herói, ser
    feliz. Tudo isso está vazio, até na ideia do que é. Tudo isso está dito em outra
    linguagem, para nós incompreensível, meros sons de sílabas sem forma no
    entendimento. A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses
    morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo.
    E tudo um caos de coisas nenhumas.
    Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sede, vejo casas
    inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, ideias
    — está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem
    todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe
    mas porque não sei o que é. Perdeu-se o mundo. E no fundo da minha alma
    — como única realidade deste momento — há uma mágoa intensa e invisível,
    uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro.




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    249


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 16.09.22 8:01

    197.



    Sinto o tempo com uma dor enorme. É sempre com uma comoção
    exagerada que abandono qualquer coisa. O pobre quarto alugado onde passei
    uns meses, a mesa do hotel de província onde passei seis dias, a própria triste
    sala de espera da estação de caminho de ferro onde gastei duas horas à espera
    do comboio — sim, mas as coisas boas da vida, quando as abandono e penso,
    com toda a sensibilidade dos meus nervos, que nunca mais as verei e as terei,
    pelo menos naquele preciso e exato momento, doem-me metafisicamente.
    Abre-se-me um abismo na alma e um sopro frio da hora de Deus roça-me
    pela face lívida.
    O tempo! O passado! Aí algo, uma voz, um canto, um perfume ocasional
    levanta na minha alma o pano de boca das minhas recordações... Aquilo que
    fui e nunca mais serei! Aquilo que tive e não tornarei a ter! Os mortos! Os
    mortos que me amaram na minha infância. Quando os evoco, toda a alma me
    esfria e eu sinto-me desterrado de corações, sozinho na noite de mim próprio,
    chorando como um mendigo o silêncio fechado de todas as portas


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 16.09.22 8:02

    198.



    Prosa de férias


    A praia pequena, formando uma baía pequeníssima, excluída do mundo por
    dois promontórios em miniatura, era, naquelas férias de três dias, o meu retiro
    de mim mesmo. Descia-se para a praia por uma escada tosca, que começava,
    em cima, em escada de madeira, e a meio se tornava em recorte de degraus na
    rocha, com corrimão de ferro ferrugento. E, sempre que eu descia a escada
    velha, e sobretudo da pedra aos pés para baixo, saía da minha própria
    existência, encontrando-me.
    Dizem os ocultistas, ou alguns deles, que há momentos supremos da alma
    em que ela recorda, com a emoção ou com parte da memória, um momento,
    ou um aspeto, ou uma sombra, de uma encarnação anterior. E então, como
    regressa a um tempo que está mais próximo que o seu presente da origem e
    do começo das coisas, sente, em certo modo, uma infância e uma libertação.
    Dir-se-ia que, descendo aquela escada pouco usada agora, e entrando
    lentamente na praia pequena sempre deserta, eu empregava um processo
    mágico para me encontrar mais próximo da mónada possível que sou. Certos
    modos e feições da minha vida quotidiana — representados no meu ser
    constante por desejos, repugnâncias, preocupações — sumiam-se de mim
    como emboscados da ronda, apagavam-se nas sombras até se não perceber o
    que eram, e eu atingia um estado de distância íntima em que se me tornava
    difícil lembrar-me de ontem, ou conhecer como meu o ser que em mim está
    vivo todos os dias. As minhas emoções de constantemente, os meus hábitos
    regularmente irregulares, as minhas falas com outros, as minhas adaptações à
    constituição social do mundo — tudo isto me parecia coisas lidas algures,
    páginas inertes de uma biografia impressa, pormenores de um romance
    qualquer, naqueles capítulos intervalares que lemos pensando em outra coisa,
    e o fio da narrativa se esbambeia até cobrejar pelo chão.

    Então, na praia rumorosa só das ondas próprias, ou do vento que passava
    alto, como um grande avião inexistente, entregava-me a uma nova espécie de
    sonhos — coisas informes e suaves, maravilhas da impressão profunda, sem
    imagens, sem emoções, limpas como o céu e as águas, e soando, como as
    volutas desrendando-se do mar alçante do fundo de uma grande verdade;
    tremulamente de um azul oblíquo ao longe, esverdeando na chegada com
    transparências de outros tons verde-sujos, e, depois de quebrar, chiando, os
    mil braços desfeitos, e os desalongar em areia amorenada e espuma

    desbabada, congregando em si todas as ressacas, os regressos à liberdade da
    origem, as saudades divinas, as memórias, como esta que informemente me
    não doía, de um estado anterior, ou feliz por bom ou por outro, um corpo de
    saudade com alma de espuma, o repouso, a morte, o tudo ou nada que cerca
    como um grande mar a ilha de náufragos que é a vida.
    E eu dormia sem sono, desviado já do que via a sentir, crepúsculo de mim
    mesmo, som de água entre árvores, calma dos grandes rios, frescura das tardes
    tristes, lento arfar do peito branco do sono de infância da con
    templação.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 16.09.22 8:03

    199.



    A doçura de não ter família nem companhia, esse suave gosto como o do
    exílio, em que sentimos o orgulho do desterro esbater-nos em volúpia incerta
    a vaga inquietação de estar longe — tudo isto eu gozo ao meu modo,
    indiferentemente. Porque um dos detalhes característicos da minha atitude
    espiritual é que a atenção não deve ser cultivada exageradamente, e mesmo o
    sonho deve ser olhado alto, com uma consciência aristocrática de o estar
    existir. Dar demasiada importância ao sonho seria dar demasiada importância,
    afinal, a uma coisa que se separou de nós próprios, que se ergueu, conforme
    pôde, em realidade, e que, por isso, perdeu o direito absoluto à nossa
    delicadeza para com ela.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 16.09.22 8:04

    200.



    A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. Depois de uma incursão
    larga na grande poesia, aos montes da aspiração sublime, aos penhascos do
    transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente
    na vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles,
    parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e
    deixando o mais aos que trepam montanhas para não fazer nada lá no alto.
    Nada me comove que se diga, de um homem que tenho por louco ou
    néscio, que supera a um homem vulgar em muitos casos e conseguimentos da
    vida. Os epiléticos são, na crise, fortíssimos; os paranoicos raciocinam como
    poucos homens normais conseguem discorrer; os delirantes com mania

    religiosa agregam multidões de crentes como poucos (se alguns) demagogos as
    agregam, e com uma força íntima que estes não logram dar aos seus sequazes.
    E isto tudo não prova senão que a loucura é loucura. Prefiro a derrota com o
    conhecimento da beleza das flores que a vitória no meio dos desertos, cheia
    de cegueira da alma a sós com a sua nulidade separada.

    Que de vezes o próprio sonho fútil me deixa um horror à vida interior, uma
    náusea física dos misticismos e das contemplações. Com que pressa corro de
    casa, onde assim sonhe, ao escritório; e vejo a cara do Moreira como se
    chegasse finalmente a um porto. Considerando bem tudo, prefiro o Moreira
    ao mundo astral; prefiro a realidade à verdade; prefiro a vida, vamos, ao
    mesmo Deus que a criou. Assim ma deu, assim a viverei. Sonho porque
    sonho, mas não sofro o insulto próprio de dar aos sonhos outro valor que não
    o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia me
    não abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida.




    253


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 17.09.22 8:33

    201.


    Desde antes de manhã cedo, contra o uso solar desta cidade clara, a névoa
    envolve num manto leve que o sol foi crescentemente dourando, as casas
    múltiplas os espaços abolidos, os acidentes da terra e das construções.
    Chegada, porém, a hora alta antes do meio-dia — começou a desfiar-se a
    bruma branda, e, em hálitos de sombras de véus, a cessar imponderavelmente.
    Pelas dez horas da manhã só um ténue mau-azular do céu revelava que a
    névoa fora.
    As feições da cidade renasceram do escorregar da máscara do velamento.
    Como se uma janela se abrisse, o dia já raiado raiou. Houve uma leve
    mudança nos ruídos de tudo. Apareceram também. Um tom azul insinuou-se
    até nas pedras das ruas e nas auras impessoais dos transeuntes. O sol era
    quente, mas ainda humidamente quente. Coava-o invisivelmente a névoa que
    já não existia.

    O despertar de uma cidade, seja entre névoa ou de outro modo, é sempre
    para mim uma coisa mais enternecedora do que o raiar da aurora sobre os
    campos. Renasce muito mais, há muito mais que esperar, quando, em vez de
    só dourar, primeiro de luz obscura, depois de luz húmida, mais tarde de ouro
    luminoso, as relvas, os relevos dos arbustos, as palmas das mãos das folhas, o
    sol multiplica os seus possíveis efeitos nas janelas, nos muros, nos telhados —
    nas janelas tanto, nos muros cores diferentes, nos telhados tons vários —
    grande manhã diversa a tantas realidades diversas.

    Uma aurora no campo fazme bem; a aurora na cidade bem e mal,
    e por isso me faz mais que bem. Sim,
    porque a esperança maior que me traz tem, como todas as esperanças, aquele
    travo longínquo e saudoso de não ser realidade. A manhã do campo existe; a
    manhã da cidade promete. Uma faz viver; a outra faz pensar. E eu hei de
    sempre sentir, como os grandes malditos, que mais vale pensar que viver


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    Mensaje por Maria Lua 17.09.22 8:34

    202.


    Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vieram, nos acasos das
    tardes, certos coloridos mais brandos do céu amplo, certos retoques de brisa
    fria que anunciavam o outono. Não era ainda o desverde da folhagem, ou o
    desprenderem-se das folhas, nem aquela vaga angústia que acompanha a nossa
    sensação da morte externa, porque o há de ser também a nossa. Era como um
    cansaço do esforço existente, um vago sono sobrevindo aos últimos gestos de
    agir. Ah, são tardes de uma tão magoada indiferença, que, antes que comece
    nas coisas, começa em nós o outono.

    Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos, e o
    mesmo é verdade do verão ou do estio; mas o outono lembra, por o que é, o
    acabamento de tudo, e no verão ou no estio é fácil, de olhar, que o
    esqueçamos. Não é ainda o outono, não está ainda no ar o amarelo das folhas
    caídas ou a tristeza húmida do tempo que vai ser inverno mais tarde. Mas há
    um resquício de tristeza antecipada, uma mágoa vestida para a viagem, no
    sentimento em que somos vagamente atentos à difusão colorida das coisas, ao
    outro tom do vento, ao sossego mais velho que se alastra, se a noite cai, pela
    presença inevitável do universo.

    Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará do que usou
    sentimentos e luvas, do que falou da morte e da política local. Como é a
    mesma luz que ilumina as faces dos santos e as polainas dos transeuntes,
    assim será a mesma falta de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns
    terem sido santos e outros usadores de polainas.

    No vasto redemoinho, como o das folhas secas, em que jaz indolentemente
    o mundo inteiro, tanto faz os remos como os vestidos das costureiras, e as
    tranças das crianças louras vão no mesmo giro mortal que os cetros que
    figuraram impérios. Tudo é nada, e no átrio do Invisível, cuja porta aberta
    mostra apenas, em frente, uma porta fechada, bailam, servas desse vento que
    as remexe sem mãos, todas as coisas, pequenas e grandes, que formaram, para
    nós e em nós, o sistema sentido do universo. Tudo é sombra e pó mexido,
    nem há voz senão a do som que faz o que o vento ergue e arrasta, nem
    silêncio senão do que o vento deixa. Uns, folhas leves, menos presas de terra
    por mais leves, vão altas do rodopio do Átrio e caem mais longe que o círculo
    dos pesados. Outros, invisíveis quase, pó igual, diferente só se o víssemos de
    perto, faz cama a si mesmo no redemoinho. Outros ainda, miniaturas de
    troncos, são arrastados à roda e cessam aqui e ali. Um dia, no fim do
    conhecimento das coisas, abrir-se-á a porta do fundo e tudo o que fomos —
    lixo de estrelas e de almas — será varrido para fora da casa, para que o que há
    recomece.

    O meu coração dói-me como um corpo estranho. O meu cérebro dorme
    tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono que traz ao ar e à minha alma
    aquela luz sem sorriso que vai orlando de amarelo morto o arredondamento
    confuso das poucas nuvens do poente. Sim, é o princípio do outono, e o
    conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anónima de tudo. O
    outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver, e o cansaço antecipado
    de todos os gestos, a desilusão antecipada de todos os sonhos. Que posso eu
    esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do
    átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, som de vida nas lajes limpas
    que um sol angular doura de fim não sei onde.

    Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz —
    tudo isso irá no outono, como os fósforos gastos que juncam o chão em
    diversos sentidos, ou os papéis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes
    impérios, as religiões todas, as filosofias com que brincaram,-as, as crianças
    sonolentas do abismo. Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei
    à casa vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao patrão Vasques que
    também tive, tudo vai no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do
    outono. Tudo no outono, sim, tudo no outono...


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    Mensaje por Maria Lua 17.09.22 8:35

    203.

    Nem se sabe se o que acaba do dia é connosco que finda em mágoa inútil,
    ou se o que somos é falso entre penumbras, e não há mais que o grande
    silêncio sem patos bravos que cai sobre os lagos onde os juncos erguem a sua
    hirteza que desfalece. Não se sabe nada, nem a memória resta das histórias de
    infância, algas, nem a carícia tarda dos céus futuros, brisa em que a imprecisão
    se abre lentamente em estrelas. A lâmpada votiva oscila incerta no templo
    onde já ninguém anda, estagnam os tanques ao sol das quintas desertas, não se
    conhece o nome inscrito no tronco outrora, e os privilégios dos ignotos
    foram, como papel mal rasgado, pelas estradas cheias de um grande vento, aos
    acasos dos obstáculos que os pararam.

    Outros se debruçarão da mesma janela
    que os outros; dormem os que se esqueceram da má sombra, saudosos do sol
    que não tinham; e eu mesmo, que ouso sem gestos, acabarei sem remorsos,
    entre juncos ensopados, enlameado do rio próximo e do cansaço frouxo, sob
    grandes outonos de tarde, em confins impossíveis. E através de tudo, como
    um silvo de angústia nua, sentirei a minha alma por detrás do devaneio —
    uivo fundo e puro, inútil no escuro do mundo.




    259


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    Mensaje por Maria Lua 18.09.22 12:07

    204.



    Nuvens... Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que o não olho
    mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens... São elas
    hoje a principal realidade, e preocupam-me como se o velar do céu fosse um
    dos grandes perigos do meu destino. Nuvens... Passam da barra para o
    Castelo, de ocidente para oriente, num tumulto disperso e despido, branco às
    vezes, se vão esfarrapadas na vanguarda de não sei quê; meio-negro outras, se,
    mais lentas, tardam em ser varridas pelo vento audível; negras de um branco
    sujo, se, como se quisessem ficar, enegrecem mais da vinda que da sombra o
    que as ruas abrem de falso espaço entre as linhas fechadoras da casaria.

    Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o
    intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida
    fez de mim, a média abstrata e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu
    nada também. Nuvens... Que desassossego se sinto, que desconforto se
    penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre, umas
    muito grandes, parecendo, porque as casas não deixam ver se são menos
    grandes que parecem, que vão a tomar todo o céu; outras de tamanho incerto,
    podendo ser duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no ar
    alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas, parecendo brinquedos de
    poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num
    grande isolamento, frias.

    Nuvens... Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem
    farei de justificável. Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar
    confusamente coisa nenhuma, versos em prosa às sensações intransmissíveis
    com que torno meu o universo incógnito. Estou farto de mim, objetiva e
    subjetivamente. Estou farto de tudo, e do tudo de tudo. Nuvens... São tudo,
    desmanchamentos do alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu
    que não existe; farrapos indescritíveis do tédio que lhes imponho; névoa
    condensada em ameaças de cor ausente; algodões de rama sujos de um
    hospital sem paredes. Nuvens... São como eu, uma passagem desfeita entre o
    céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não trovejando,
    alegrando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e do
    descaminho, longe do ruído da terra e sem ter o silêncio do céu. Nuvens...
    Continuam passando, continuam sempre passando, passarão sempre
    continuando, num enrolamento descontínuo de meadas baças, num
    alongamento difuso de falso céu desfeito.


    _________________



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    "Ser como un verso volando
    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
    (Hánjel)





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    Maria Lua
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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua 18.09.22 12:11

    205.


    Fluido, o abandono do dia finda entre púrpuras exaustas. Ninguém me dirá
    quem sou, nem saberá quem fui. Desci da montanha ignorada ao vale que
    ignoraria, e os meus passos foram, na tarde lenta, vestígios deixados nas
    clareiras da floresta. Todos quantos amei me esqueceram na sombra.
    Ninguém soube do último barco. No correio não havia notícia da carta que
    ninguém haveria de escrever.
    Tudo, porém, era falso. Não contaram histórias que outros houvessem
    contado, nem se sabe ao certo do que partiu outrora, na esperança do
    embarque falso, filho da bruma fritura e da indecisão por vir. Tenho nome
    entre os que tardam, e esse nome é sombra como tudo.


    _________________



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    "Ser como un verso volando
    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
    (Hánjel)





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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

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