Aires de Libertad

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    Mensaje por Maria Lua Dom 18 Sep 2022, 12:13

    206.

    Floresta

    Mas ah, nem a alcova era certa — era a alcova velha da minha infância
    perdida! Como um nevoeiro, afastou-se, atravessou materialmente as paredes
    brancas do meu quarto real, e este emergiu nítido e menor da sombra, como a
    vida e o dia, como o passo do carroceiro e o som vago do chicote que põem
    músculos de se levantar no corpo deitado da besta sonolenta.




    262


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    Mensaje por Maria Lua Lun 26 Sep 2022, 09:26

    207.


    Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os
    vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão!
    Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por
    belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora?
    Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que
    somos perfeitos espelhos, ou invólucros transparentes, alheios no sangue à
    raça da sua natureza!

    Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar, mais se me
    esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundo
    me surge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e
    com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita de sombra, um
    crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma demora
    da antemanhã. Tudo se me transforma num absoluto morto de ele mesmo,
    numa estagnação de pormenores.

    E os mesmos sentidos, com que transfiro a
    meditação para esquecê-la, são uma espécie de sono, qualquer coisa de remoto
    e de sequaz, interstício, diferença, acaso das sombras e da confusão.
    Nesses momentos, em que compreenderia os ascetas e os retirados, se
    houvesse em mim poder de compreender os que se empenham em qualquer
    esforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um
    esforço, eu criaria, se pudesse, toda uma estética da desconsolação, uma
    rítmica íntima de balada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes
    afastamentos de outros lares.

    Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se tinham
    zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se
    tinham zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas
    razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via
    uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado
    diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se tinham passado,
    cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma
    coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.
    Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.



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    Mensaje por Maria Lua Lun 26 Sep 2022, 09:28

    208.



    Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim
    também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. Tenho uma
    moral muito simples — não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a
    ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo
    que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males
    naturais para mal que tenha de haver no mundo. Vivemos todos, neste
    mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um
    porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de
    viagem. Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando
    julgo que o faço. Sei eu que males produzo se dou esmola? Sei eu que males
    produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda, que
    auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia.
    A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os
    outros vítimas dos nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura.
    Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente.
    Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam. Se adoeço,
    o que mais me pesa é que obrigo alguém a tratar-me, coisa que me repugnaria
    de fazer a outrem. Nunca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu
    adoecido, me visitaram, sofri cada visita como um incómodo, um insulto, uma
    violação injustificável da minha intimidade decisiva. Não gosto que me deem
    coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também — aos mesmos ou a
    outros, seja a quem for.

    Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou a
    inofensividade encarnada. Mas não sou mais do que isso, não quero ser mais
    do que isso, não posso ser mais do que isso. Tenho para com tudo que existe
    uma ternura visual, um carinho da inteligência — nada no coração. Não tenho
    fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea e
    pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os místicos de todos os
    misticismos ou, antes e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os
    misticismos de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando esses
    misticismos são ativos, quando pretendem convencer a inteligência alheia, ou
    mover a vontade alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo.
    Considero-me feliz por não ter já parentes. Não me vejo assim na
    obrigação, que inevitavelmente me pesaria, de ter que amar alguém.

    Não
    tenho saudades senão literariamente. Lembro a minha infância com lágrimas,
    mas são lágrimas rítmicas, onde já se prepara a prosa. Lembro-a como uma
    coisa externa e através de coisas externas; lembro só as coisas externas. Não é
    sossego dos serões de província que me enternece da infância que vivi neles, é
    a disposição da mesa para o chá, são os vultos dos móveis em torno da casa,
    são as caras e os gestos físicos das pessoas. É de quadros que tenho saudades.
    Por isso, tanto me enternece a minha infância como a de outrem: são ambas,
    no passado que não sei o que é, fenómenos puramente visuais, que sinto com
    a atenção literária. Enterneço-me, sim, mas não é porque lembro, mas porque
    vejo.

    Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas —
    estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes
    que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo,
    dizerme coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) -, isto é, de me
    darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na
    padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do
    meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um
    alívio, não sei bem de quê.

    E esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu: Transeunte de tudo —
    até da minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou
    nada — centro abstrato de sensações impessoais, espelho caído sentiente
    virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz;
    nem me importa



    266


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    Mensaje por Maria Lua Mar 27 Sep 2022, 08:02

    209.




    Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente
    mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas
    relações com os outros. O facto divino de existir não deve ser entregue ao
    facto satânico de coexistir.
    Ao agir com outros perco, ao menos, uma coisa — que é agir só.
    Quando me entrego, embora pareça que me expando, limito-me. Conviver
    é morrer. Para mim, só a minha autoconsciência é real; os outros são
    fenómenos incertos nessa consciência, e a que seria mórbido emprestar uma
    realidade muito verdadeira.
    A criança, que quer por força fazer a sua vontade, data de mais perto de
    Deus, porque quer existir.
    A nossa vida de adultos reduz-se a dar esmolas aos outros. Vivemos todos
    de esmola alheia. Desperdiçamos a nossa personalidade em orgias de
    coexistência.
    Cada palavra falada nos trai. A única comunicação tolerável é a palavra
    escrita, porque não é uma pedra num a ponte entre almas, mas um raio de
    uma luz entre astros.
    Explicar é descrer. Toda a filosofia é uma diplomacia sob a espécie da
    eternidade, como a diplomacia, uma coisa substancialmente falsa, que existe
    não como coisa, mas inteira e absolutamente para um fim.
    O único destino nobre de um escritor que se publica é não ter uma
    celebridade que mereça. Mas o verdadeiro destino nobre é o do escritor que
    não se publica. Não digo que não escreva, porque esse não é escritor. Digo do
    que por natureza escreve, e por condição espiritual não oferece o que escreve.
    Escrever é objetivar sonhos, é criar um mundo exterior para prémio?
    Evidente da nossa índole de criadores. Publicar é dar esse mundo exterior aos
    outros; mas para quê, se o mundo exterior comum a nós e a eles é o "mundo
    exterior" real, o da matéria, o mundo visível e tangível? Que têm os outros
    com o universo que há em mim?


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    Mensaje por Maria Lua Mar 27 Sep 2022, 08:03

    210.


    Estética do desalento



    Publicar-se — socialização de si próprio. Que ignóbil necessidade! Mas
    ainda assim que afastada de um acto — o editor ganha, o tipógrafo produz. O
    mérito da incoerência ao menos.
    Uma das preocupações maiores do homem, atingida a idade lúcida, é talharse, agente e pensante, à imagem e semelhança do seu ideal. Posto que nenhum
    ideal encarna tanto como o da inércia toda a lógica da nossa aristocracia de
    alma ante as ruidosidades e exteriores modernas, o Inerte, o Inativo deve ser o
    nosso Ideal. Fútil? Talvez. Mas isso só preocupará como um mal aqueles para
    quem a futilidade é um atrativo.





    268


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    Mensaje por Maria Lua Lun 03 Oct 2022, 16:48

    203.


    Nem se sabe se o que acaba do dia é connosco que finda em mágoa inútil,
    ou se o que somos é falso entre penumbras, e não há mais que o grande
    silêncio sem patos bravos que cai sobre os lagos onde os juncos erguem a sua
    hirteza que desfalece. Não se sabe nada, nem a memória resta das histórias de
    infância, algas, nem a carícia tarda dos céus futuros, brisa em que a imprecisão
    se abre lentamente em estrelas. A lâmpada votiva oscila incerta no templo
    onde já ninguém anda, estagnam os tanques ao sol das quintas desertas, não se
    conhece o nome inscrito no tronco outrora, e os privilégios dos ignotos
    foram, como papel mal rasgado, pelas estradas cheias de um grande vento, aos
    acasos dos obstáculos que os pararam. Outros se debruçarão da mesma janela
    que os outros; dormem os que se esqueceram da má sombra, saudosos do sol
    que não tinham; e eu mesmo, que ouso sem gestos, acabarei sem remorsos,
    entre juncos ensopados, enlameado do rio próximo e do cansaço frouxo, sob
    grandes outonos de tarde, em confins impossíveis. E através de tudo, como
    um silvo de angústia nua, sentirei a minha alma por detrás do devaneio —
    uivo fundo e puro, inútil no escuro do mundo.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 03 Oct 2022, 16:49

    204.


    Nuvens... Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que o não olho
    mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens... São elas
    hoje a principal realidade, e preocupam-me como se o velar do céu fosse um
    dos grandes perigos do meu destino. Nuvens... Passam da barra para o
    Castelo, de ocidente para oriente, num tumulto disperso e despido, branco às
    vezes, se vão esfarrapadas na vanguarda de não sei quê; meio-negro outras, se,
    mais lentas, tardam em ser varridas pelo vento audível; negras de um branco
    sujo, se, como se quisessem ficar, enegrecem mais da vinda que da sombra o
    que as ruas abrem de falso espaço entre as linhas fechadoras da casaria.
    Nuvens...

    Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o
    intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida
    fez de mim, a média abstrata e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu
    nada também. Nuvens... Que desassossego se sinto, que desconforto se
    penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre, umas
    muito grandes, parecendo, porque as casas não deixam ver se são menos
    grandes que parecem, que vão a tomar todo o céu; outras de tamanho incerto,
    podendo ser duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no ar
    alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas, parecendo brinquedos de
    poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num
    grande isolamento, frias.

    Nuvens... Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem
    farei de justificável. Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar
    confusamente coisa nenhuma, versos em prosa às sensações intransmissíveis
    com que torno meu o universo incógnito. Estou farto de mim, objetiva e
    subjetivamente. Estou farto de tudo, e do tudo de tudo. Nuvens... São tudo,
    desmanchamentos do alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu
    que não existe; farrapos indescritíveis do tédio que lhes imponho; névoa
    condensada em ameaças de cor ausente; algodões de rama sujos de um
    hospital sem paredes. Nuvens...

    São como eu, uma passagem desfeita entre o
    céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não trovejando,
    alegrando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e do
    descaminho, longe do ruído da terra e sem ter o silêncio do céu. Nuvens...
    Continuam passando, continuam sempre passando, passarão sempre
    continuando, num enrolamento descontínuo de meadas baças, num
    alongamento difuso de falso céu desfeito.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 03 Oct 2022, 16:49

    205.


    Fluido, o abandono do dia finda entre púrpuras exaustas. Ninguém me dirá
    quem sou, nem saberá quem fui. Desci da montanha ignorada ao vale que
    ignoraria, e os meus passos foram, na tarde lenta, vestígios deixados nas
    clareiras da floresta. Todos quantos amei me esqueceram na sombra.
    Ninguém soube do último barco. No correio não havia notícia da carta que
    ninguém haveria de escrever.
    Tudo, porém, era falso. Não contaram histórias que outros houvessem
    contado, nem se sabe ao certo do que partiu outrora, na esperança do
    embarque falso, filho da bruma fritura e da indecisão por vir. Tenho nome
    entre os que tardam, e esse nome é sombra como tudo


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    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Lun 03 Oct 2022, 16:50

    206.

    Floresta

    Mas ah, nem a alcova era certa — era a alcova velha da minha infância
    perdida! Como um nevoeiro, afastou-se, atravessou materialmente as paredes
    brancas do meu quarto real, e este emergiu nítido e menor da sombra, como a
    vida e o dia, como o passo do carroceiro e o som vago do chicote que põem
    músculos de se levantar no corpo deitado da besta sonolenta.



    262


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Mar 11 Oct 2022, 08:22

    207.



    Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os
    vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão!
    Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por
    belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora?
    Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que
    somos perfeitos espelhos, ou invólucros transparentes, alheios no sangue à
    raça da sua natureza!
    Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar, mais se me
    esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundo
    me surge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e
    com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita de sombra, um
    crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma demora
    da antemanhã. Tudo se me transforma num absoluto morto de ele mesmo,
    numa estagnação de pormenores. E os mesmos sentidos, com que transfiro a
    meditação para esquecê-la, são uma espécie de sono, qualquer coisa de remoto
    e de sequaz, interstício, diferença, acaso das sombras e da confusão.
    Nesses momentos, em que compreenderia os ascetas e os retirados, se
    houvesse em mim poder de compreender os que se empenham em qualquer
    esforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um
    esforço, eu criaria, se pudesse, toda uma estética da desconsolação, uma
    rítmica íntima de balada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes
    afastamentos de outros lares.
    Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se tinham
    zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se
    tinham zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas
    razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via
    uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado
    diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se tinham passado,
    cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma
    coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.
    Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Mar 11 Oct 2022, 08:23

    208.



    Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim
    também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. Tenho uma
    moral muito simples — não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a
    ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo
    que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males
    naturais para mal que tenha de haver no mundo. Vivemos todos, neste
    mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um
    porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de
    viagem. Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando
    julgo que o faço. Sei eu que males produzo se dou esmola? Sei eu que males
    produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda, que
    auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia.
    A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os
    outros vítimas dos nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura.
    Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente.
    Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam. Se adoeço,
    o que mais me pesa é que obrigo alguém a tratar-me, coisa que me repugnaria
    de fazer a outrem. Nunca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu
    adoecido, me visitaram, sofri cada visita como um incómodo, um insulto, uma
    violação injustificável da minha intimidade decisiva. Não gosto que me deem
    coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também — aos mesmos ou a
    outros, seja a quem for.
    Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou a
    inofensividade encarnada. Mas não sou mais do que isso, não quero ser mais
    do que isso, não posso ser mais do que isso. Tenho para com tudo que existe
    uma ternura visual, um carinho da inteligência — nada no coração. Não tenho
    fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea e
    pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os místicos de todos os
    misticismos ou, antes e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os
    misticismos de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando esses
    misticismos são ativos, quando pretendem convencer a inteligência alheia, ou
    mover a vontade alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo.
    Considero-me feliz por não ter já parentes. Não me vejo assim na
    obrigação, que inevitavelmente me pesaria, de ter que amar alguém. Não
    tenho saudades senão literariamente. Lembro a minha infância com lágrimas,
    mas são lágrimas rítmicas, onde já se prepara a prosa. Lembro-a como uma
    coisa externa e através de coisas externas; lembro só as coisas externas. Não é
    sossego dos serões de província que me enternece da infância que vivi neles, é
    a disposição da mesa para o chá, são os vultos dos móveis em torno da casa,
    são as caras e os gestos físicos das pessoas. É de quadros que tenho saudades.
    Por isso, tanto me enternece a minha infância como a de outrem: são ambas,
    no passado que não sei o que é, fenómenos puramente visuais, que sinto com
    a atenção literária. Enterneço-me, sim, mas não é porque lembro, mas porque
    vejo.
    Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas —
    estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes
    que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo, dizerme coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) -, isto é, de me
    darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na
    padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do
    meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um
    alívio, não sei bem de quê.
    E esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu: Transeunte de tudo —
    até da minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou
    nada — centro abstrato de sensações impessoais, espelho caído sentiente
    virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz;
    nem me importa.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Mar 11 Oct 2022, 08:24

    209.


    Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente
    mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas
    relações com os outros. O facto divino de existir não deve ser entregue ao
    facto satânico de coexistir.
    Ao agir com outros perco, ao menos, uma coisa — que é agir só.
    Quando me entrego, embora pareça que me expando, limito-me. Conviver
    é morrer. Para mim, só a minha autoconsciência é real; os outros são
    fenómenos incertos nessa consciência, e a que seria mórbido emprestar uma
    realidade muito verdadeira.
    A criança, que quer por força fazer a sua vontade, data de mais perto de
    Deus, porque quer existir.
    A nossa vida de adultos reduz-se a dar esmolas aos outros. Vivemos todos
    de esmola alheia. Desperdiçamos a nossa personalidade em orgias de
    coexistência.
    Cada palavra falada nos trai. A única comunicação tolerável é a palavra
    escrita, porque não é uma pedra num a ponte entre almas, mas um raio de
    uma luz entre astros.
    Explicar é descrer. Toda a filosofia é uma diplomacia sob a espécie da
    eternidade, como a diplomacia, uma coisa substancialmente falsa, que existe
    não como coisa, mas inteira e absolutamente para um fim.
    O único destino nobre de um escritor que se publica é não ter uma
    celebridade que mereça. Mas o verdadeiro destino nobre é o do escritor que
    não se publica. Não digo que não escreva, porque esse não é escritor. Digo do
    que por natureza escreve, e por condição espiritual não oferece o que escreve.
    Escrever é objetivar sonhos, é criar um mundo exterior para prémio?
    Evidente da nossa índole de criadores. Publicar é dar esse mundo exterior aos
    outros; mas para quê, se o mundo exterior comum a nós e a eles é o "mundo
    exterior" real, o da matéria, o mundo visível e tangível? Que têm os outros
    com o universo que há em mim?


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Mar 11 Oct 2022, 08:25

    210.
    Estética do desalento

    Publicar-se — socialização de si próprio. Que ignóbil necessidade! Mas
    ainda assim que afastada de um acto — o editor ganha, o tipógrafo produz. O
    mérito da incoerência ao menos.
    Uma das preocupações maiores do homem, atingida a idade lúcida, é talharse, agente e pensante, à imagem e semelhança do seu ideal. Posto que nenhum
    ideal encarna tanto como o da inércia toda a lógica da nossa aristocracia de
    alma ante as ruidosidades e exteriores modernas, o Inerte, o Inativo deve ser o
    nosso Ideal. Fútil? Talvez. Mas isso só preocupará como um mal aqueles para
    quem a futilidade é um atrativo.






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    Mensaje por Maria Lua Jue 13 Oct 2022, 21:22

    211.


    O entusiasmo é uma grosseria.
    A expressão do entusiasmo é, mais do que tudo, uma violação dos direitos
    da nossa insinceridade.
    Nunca sabemos quando somos sinceros. Talvez nunca o sejamos. E
    mesmo que sejamos sinceros hoje, amanhã podemos sê-lo por coisa contrária.
    Por mim não tive convicções. Tive sempre impressões. Nunca poderia
    odiar uma terra em que eu houvesse visto um poente escandaloso.
    Exteriorizar impressões é mais persuadirmo-nos de que as temos do que
    têrmo-las.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 13 Oct 2022, 21:23

    212.



    Ter opiniões é estar vendido a si mesmo. Não ter opiniões é existir. Ter
    todas as opiniões é ser poeta.


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Jue 13 Oct 2022, 21:25

    213.



    Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha
    imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora.
    Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo
    a que assisto é um espetáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou
    eu.
    Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis
    escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos
    deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os
    escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse
    agora despertado como de um sono alheio.
    É frequente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito
    jovem — trechos dos dezassete anos, trechos dos vinte anos. E alguns têm
    um poder de expressão que me não lembro de poder ter tido nessa altura da
    vida. Há em certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos
    passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora,
    educado por anos e por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E,
    tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto
    onde está o progresso se então era o mesmo que hoje sou.
    Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime.
    Ainda há dias sofri uma impressão espantosa com um breve escrito do meu
    passado. Lembro-me perfeitamente de que o meu escrúpulo, pelo menos
    relativo, pela linguagem data de há poucos anos. Encontrei numa gaveta um
    escrito meu, muito mais antigo, em que esse mesmo escrúpulo estava
    fortemente acentuado. Não me compreendi no passado positivamente. Como
    avancei para o que já era? Como me conheci hoje o que me desconheci
    ontem? E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de
    mim.
    Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo já o
    escrevi. Recordo. E pergunto ao que em mim presume de ser se não haverá
    no platonismo das sensações outra anamnese mais inclinada, outra recordação
    de uma vida anterior que seja apenas desta vida...
    Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é
    este intervalo que há entre mim e mim?


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    Mensaje por Maria Lua Jue 13 Oct 2022, 21:26

    214.



    Outra vez encontrei um trecho meu, escrito em francês, sobre o qual
    tinham passado já quinze anos. Nunca estive em França, nunca lidei de perto
    com franceses, nunca tive exercício, portanto, daquela língua, de que me
    houvesse desabituado. Leio hoje tanto francês como sempre li. Sou mais
    velho, sou mais prático de pensamento: deverei ter progredido. E esse trecho
    do meu passado longínquo tem uma segurança no uso do francês que eu hoje
    não possuo; o estilo é fluido, como hoje o não poderei ter naquele idioma; há
    trechos inteiros, frases completas, formas e modos de expressão que
    acentuam um domínio daquela língua de que me extraviei sem que me
    lembrasse que o tinha. Como se explica isto? A quem me substituí dentro de
    mim?
    Bem sei que é fácil formar uma teoria da fluidez das coisas e das almas,
    compreender que somos um decurso interior de vida, imaginar que o que
    somos é uma quantidade grande, que passamos por nós, que fomos muitos...
    Mas aqui há outra coisa que não o mero decurso da personalidade entre as
    próprias margens: há o outro absoluto, um ser alheio que foi meu. Que
    perdesse, com o acréscimo da idade, a imaginação, a emoção, um tipo de
    inteligência, um modo de sentimento — tudo isso, — me pena, me não faria
    pasmo. Mas a que assisto quando me leio como a um estranho? A que beira
    estou se me vejo no fundo?
    Outras vezes encontro trechos que me não lembro de ter escrito — o que é
    pouco para pasmar -, mas que nem me lembro de poder ter escrito — o que
    me apavora. Certas frases são de outra mentalidade. E como se encontrasse
    um retrato antigo, sem dúvida meu, com uma estatura diferente, com umas
    feições incógnitas — mas indiscutivelmente meu, pavorosamente e
    u.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 13 Oct 2022, 21:27

    215.


    Tenho as opiniões mais desencontradas, as crenças mais diversas. É que
    nunca penso, nem falo, nem ajo... Pensa, fala, age por mim sempre um sonho
    qualquer meu, em que me encarno de momento. Vou a falar e falo eu-outro.
    De meu, só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo imenso, uma
    incompetência ante tudo quanto é a vida. Não sei os gestos a acto nenhum
    real, nunca aprendi a existir.
    Tudo que quero consigo, logo que seja dentro de mim.
    Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de tédio continuado
    em pesadelo voluptuoso.
    O que antes era moral, é estético hoje para nós... O que era social é hoje
    individual...
    Para quê olhar para os crepúsculos se tenho em mim milhares de
    crepúsculos diversos — alguns dos quais que o não são — e se, além de os
    olhar dentro de mim, eu próprio os sou, por dentro?



    278


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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Lun 17 Oct 2022, 09:10

    216.



    O poente está espalhado pelas nuvens soltas separadas que o céu todo tem.
    Reflexos de todas as cores, reflexos brandos, enchem as diversidades do ar
    alto, boiam ausentes nas grandes mágoas da altura. Pelos cimos dos telhados
    erguidos, meio-cor, meio-sombras, os últimos raios lentos do sol indo-se
    tomam formas de cor que nem são suas nem das coisas em que pousam. Há
    um grande sossego acima do nível ruidoso da cidade que vai também
    sossegando. Tudo respira para além da cor e do som, num hausto fundo e
    mudo.
    Nas casas coloridas que o sol não vê, as cores começam a ter tons de
    cinzento delas. Há frio nas diversidades dessas cores. Dorme uma pequena
    inquietação nos vales falsos das ruas. Dorme e sossega. E pouco a pouco, nas
    mais baixas das nuvens altas, começam os reflexos a ser de sombra; só naquela
    pequena nuvem, que paira águia branca acima de tudo, o sol conserva, de
    longe, o seu ouro rindo.
    Tudo quanto tenho buscado na vida, eu mesmo o deixei por buscar. Sou
    como alguém que procure distraidamente o que, no sonho entre a busca,
    esqueceu já o que era. Torna-se mais real que a coisa buscada ausente o gesto
    real das mãos visíveis que buscam, revolvendo, deslocando, assentando, e
    existem brancas e longas, com cinco dedos cada uma, exatamente.
    Tudo quanto tenho tido é como este céu alto e diversamente o mesmo,
    farrapos de nada tocados de uma luz distante, fragmentos de falsa vida que a
    morte doura de longe, com o seu sorriso triste de verdade inteira. Tudo
    quanto tenho tido, sim, tem sido o não ter sabido buscar, senhor feudal de
    pântanos à tarde, príncipe deserto de uma cidade de tumultos vazios.
    Tudo quanto sou, ou quanto fui, ou quanto penso do que sou ou fui, tudo
    isso perde de repente — nestes meus pensamentos e na perda súbita de luz da
    nuvem alta — o segredo, a verdade, a ventura talvez, que houvesse em não sei
    quê que tem por baixo a vida. Tudo isso, como um sol que falta, é que me
    resta, e sobre os telhados altos, diversamente, a luz deixa escorregar as suas
    mãos de queda, e sai à vista, na unidade dos telhados, a sombra íntima de
    tudo.
    Vago pingo trémulo, clareia pequena ao longe a primeira estrela


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    Mensaje por Maria Lua Lun 17 Oct 2022, 09:11

    217.


    Todos os movimentos da sensibilidade, por agradáveis que sejam, são
    sempre interrupções de um estado, que não sei em que consiste, que é a vida
    íntima dessa própria sensibilidade. Não só as grandes preocupações, que nos
    distraem de nós, mas até as pequenas arrelias, perturbam uma quietação a que
    todos, sem saber, aspiramos.
    Vivemos quase sempre fora de nós, e a mesma vida é uma perpétua
    dispersão. Porém, é para nós que tendemos, como para um centro em torno
    do qual fazemos, como os planetas, elipses absurdas e distantes.



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    Mensaje por Maria Lua Lun 17 Oct 2022, 09:12

    218.


    Sou mais velho que o Tempo e que o Espaço, porque sou consciente. As
    coisas derivam de mim; a Natureza inteira é a primogénita da minha sensação.
    Busco — não encontro. Quero, e não posso.
    Sem mim, o sol nasce e se apaga; sem mim a chuva cai e o vento geme.
    Não são por mim as estações, nem o curso dos meses, nem a passagem das
    horas.
    Dono do mundo em mim, como de terras que não posso trazer comigo,


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    Mensaje por Maria Lua Lun 17 Oct 2022, 09:12

    219.


    Esse lugar ativo de sensações, a minha alma, passeia às vezes comigo
    conscientemente pelas ruas noturnas da cidade, nas horas tedientas em que
    me sinto um sonho entre sonhos de outra espécie, à luz do gás, pelo ruído
    transitório dos veículos.
    Ao mesmo tempo que em corpo me embrenho por vielas e sub-ruas, tornase-me complexa a alma em labirintos de sensação. Tudo quanto de
    aflitivamente pode dar a noção de irrealidade e de existência fingida, tudo
    quanto soletra, sem ser ao raciocínio, mas concreta e mente, o quanto é mais
    do que oco o lugar do universo, desenrola-se-me então objetivamente no
    espírito apartado. Angustia-me, não sei porquê, essa extensão objetiva de ruas
    estreitas, e largas, essa consecução de candeeiros, árvores, janelas iluminadas e
    escuras, portões fechados e abertos, vultos heterogeneamente noturnos que a
    minha vista curta, no que de maior imprecisão lhes dá, ajuda a tornar
    subjetivamente monstruosos, incompreensíveis e irreais.
    Fragmentos verbais de inveja, de luxúria, de trivialidade vão de embate ao
    meu sentido de ouvir. Sussurrados murmúrios ondulam para a minha
    consciência.
    Pouco a pouco vou perdendo a consciência nítida de que existo
    coextensamente com isto tudo, de que realmente me movo, ouvindo e pouco
    vendo, entre sombras que representam entes e lugares onde entes o são.
    Torna-se-me gradualmente, escuramente, indistintamente incompreensível
    como é que isto tudo pode ser em face do tempo eterno e do espaço infinito.
    Passo aqui, por passiva associação de ideias, a pensar nos homens que desse
    espaço e desse tempo tiveram a consciência analisadora e
    compreendedoramente perdida. Sente-se-me grotesca a ideia de que entre
    homens como estes, em noites sem dúvida como esta, em cidades decerto não
    essencialmente diversas da em que penso, os Platões, os Scotus Erigenas, os
    Kants, os Hegels como que se esqueceram disto tudo, como que se tornaram
    diversos desta gente. E eram da mesma humanidade.
    Eu mesmo que passeio aqui com estes pensamentos, com que horrorosa
    nitidez, ao pensá-los, me sinto distante, alheio, confuso e acabo a minha
    solitária peregrinação. Um vasto silêncio, que sons miúdos não alteram no
    como é sentido, como que me assalta e subjuga. Um cansaço imenso das
    meras coisas, do simples estar aqui, do encontrar-me deste modo pesa-me do
    espírito ao corpo. Quase que me surpreendo a querer gritar, de afundando-me
    que me sinto num oceano de uma imensidão que nada tem com a infinidade
    do espaço nem com a eternidade do tempo, nem com qualquer coisa
    suscetível de medida e nome. Nestes momentos de terror supremamente
    silencioso não sei o que sou materialmente, o que costumo fazer, o que me é
    usual querer, sentir e pensar. Sinto-me perdido de mim mesmo, fora do meu
    alcance. A ânsia moral de lutar, o esforço intelectual para sistematizar e
    compreender, a irrequieta aspiração artista a produzir uma coisa que ora não
    compreendo, mas que me lembro de compreender, e a que chamo beleza,
    tudo isto se me some do instinto do real, tudo isto se me afigura nem digno
    de ser pensado inútil, vazio e longínquo. Sinto-me apenas um vácuo, uma
    ilusão de uma alma, um lugar de um ser, uma escuridão de consciência onde
    estranho inseto procurasse em vão sequer a cálida lembrança’ de uma luz.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 17 Oct 2022, 09:13

    220.


    Intervalo doloroso


    Sonhar, para quê?
    Que fiz de mim? Nada.
    Se espiritualizar em Noite, se estátua Interior sem contornos, Sonho
    Exterior sem ser-sonhado.
    2


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    Mensaje por Maria Lua Lun 17 Oct 2022, 09:14

    221.



    Tenho sido sempre um sonhador irónico, infiel às promessas interiores.
    Gozei sempre, como outro e estrangeiro, as derrotas dos meus devaneios,
    assistente casual ao que pensei ser. Nunca dei crença aquilo em que acreditei.
    Enchi as mãos de areia, chamei-lhe ouro, e abri as mãos dela toda, escorrente.
    A frase fora a única verdade. Com a frase dita estava tudo feito; o mais era a
    areia que sempre fora.
    Se não fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo alheamento, poderia,
    de bom grado, chamar-me um realista, isto é, um indivíduo para quem o
    mundo exterior é uma nação independente. Mas prefiro não me dar nome, ser
    o que sou com uma certa obscuridade e ter comigo a malícia de me não saber
    prever.
    Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem
    querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o
    melhor espetáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas
    supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes
    brandas e músicas — visíveis.
    Guardo, íntima, como a memória de um beijo grato, a lembrança de
    infância de um teatro em que o cenário azulado e lunar representava o terraço
    de um palácio impossível. Havia, pintado também, um parque vasto em roda,
    e gastei a alma em viver como real aquilo tudo. A música, que soava branda
    nessa ocasião mental da minha experiência da vida, trazia para real de febre
    esse cenário dado.
    O cenário era definitivamente azulado e lunar. No palco não me lembro
    quem aparecia, mas a peça que ponho na paisagem lembrada sai-me hoje dos
    versos de Verlaine e de Pessanha; não era a que deslembro, passada no palco
    vivo aquém daquela realidade de azul música. Era minha e fluida, a mascarada
    imensa e lunar, o interlúdio de prata e azul findo.
    Depois veio a vida. Nessa noite levaram-me a cear ao Leão. Tenho ainda a
    memória dos bifes no paladar da saudade — bifes, sei ou suponho, como hoje
    ninguém faz ou eu não como. E tudo se me mistura — infância, vivida a
    distância, comida saborosa de noite, cenário lunar, Verlaine futuro e eu
    presente — numa diagonal difusas, num espaço falso entre o que fui e o que
    sou.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 17 Oct 2022, 09:15

    222.



    Como nos dias em que a trovoada se prepara e os ruídos da rua falam alto
    com uma voz solitária.
    A rua franziu-se de luz intensa e pálida, e o negrume baço tremeu, de leste a
    oeste do mundo, com um estrondo feito de escangalhamentos ecoantes... A
    tristeza dura da chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio,
    morno, quente — tudo ao mesmo tempo -, o ar em toda a parte era errado. E,
    a seguir, pela ampla sala uma cunha de luz metálica abriu brecha nos repousos
    dos corpos humanos, e, com o sobressalto gelado, um pedregulho de som
    bateu em toda a parte, esfacelando-se com silêncio duro. O som da chuva
    diminui como uma voz de menos peso. O ruído das ruas diminui
    angustiantemente. Nova luz, de um amarelado rápido, tolda o negrume surdo,
    mas houve agora uma respiração possível antes que o punho do som trémulo
    ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada, a trovoada
    começava a aqui não estar com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz
    que aumentava, o tremor da trovoada acalmava nos largos longes — rodava
    em Almada...
    Uma súbita luz formidável estilhaçou-se . Tudo estacou. Os corações
    pararam um momento. Todos são pessoas muito sensíveis. O silêncio aterra
    como se houvera morte. O som da chuva que aumenta alivia como lágrimas
    de tudo. Há chumbo




    281


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    Mensaje por Maria Lua Mar 18 Oct 2022, 18:16

    223.


    O gládio de um relâmpago frouxo volteou sombriamente no quarto largo.
    E o som a vir, suspenso um hausto amplo, retumbou, emigrando profundo.
    O som da chuva chorou alto, como carpideiras no intervalo das falas. Os
    pequenos sons destacaram-se cá dentro, inquietos.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 20 Oct 2022, 15:53

    224.



    ... Esse episódio da imaginação a que chamamos realidade.
    Há dois dias que chove e que cai do céu cinzento e frio uma certa chuva, da
    cor que tem, que aflige a alma. Há dois dias... Estou triste de sentir, e reflito-o
    à janela ao som da água que pinga e da chuva que cai. Tenho o coração
    opresso e as recordações transformadas em angústias.
    Sem sono, nem razão para o ter, há em mim uma grande vontade de
    dormir. Outrora, quando eu era criança e feliz, vivia numa casa do pátio ao
    lado a voz de um papagaio verde a cores. Nunca, nos dias de chuva, se lhe
    entristecia o dizer, e clamava, sem dúvida do abrigo, um qualquer sentimento
    constante, que pairava na tristeza como um gramofone antecipado.
    Pensei neste papagaio porque estou triste e a infância longínqua o lembra?
    Não, pensei nele realmente, porque do pátio vizinho de agora, uma voz de
    papagaio grita arrevesadamente.
    Tudo se me confunde. Quando julgo que recordo, é outra coisa que penso;
    se vejo, ignoro, e quando me distraio, nitidamente vejo.
    Viro as costas à janela cinzenta, de vidros frios às mãos que lhes tocam. E
    levo comigo, por um sortilégio da penumbra, de repente, o interior da casa
    antiga, fora da qual, no pátio ao lado, o papagaio gritava; e os meus olhos
    adormecem-se-me de toda a irreparabilidade de ter efetivamente vivido.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 20 Oct 2022, 15:54

    225.


    Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, vagaroso e disperso, e,
    ao clarear-me o Terreiro do Paço, vejo, nítido, o sem sol do céu ocidental.
    Esse céu é de um azul esverdeado para cinzento branco, onde, do lado
    esquerdo, sobre os montes da outra margem, se agacha, amontoada, uma
    névoa acastanhada de cor-de-rosa morto. Há uma grande paz que não tenho
    dispersa fria- mente no ar outonal abstrato. Sofro de não ter o prazer vago de
    supor que ela existe. Mas, na realidade, não há paz nem falta de paz: céu
    apenas, céu de todas as cores que desmaiam – azul branco, verde ainda
    azulado, cinzento pálido entre verde e azul, vagos tons remotos de cores de
    nuvens que o não são, amareladamente escurecidas de encarnado findo. E
    tudo isto é uma visão que se extingue no mesmo momento em que é tida, um
    intervalo entre nada e nada, alado, posto alto, em tonalidades de céu e mágoa,
    prolixo e indefinido.
    Sinto e esqueço. Uma saudade, que é a de toda a gente por tudo, invade-me
    como um ópio do ar frio. Há em mim um êxtase de ver, íntimo e postiço.
    Para os lados da barra, onde o ter cessado o sol cada vez mais se acaba, a
    luz extingue-se em branco lívido que se azula de esverdeado frio. Há no ar um
    torpor do que se não consegue nunca. Cala alto a paisagem do céu.
    Nesta hora, em que sinto até transbordar, quisera ter a malícia inteira de
    dizer, o capricho livre de um estilo por destino. Mas não, só o céu alto é tudo,
    remoto, abolindo-se, e a emoção que tenho, e que é tantas, juntas e confusas,
    não é mais que o reflexo desse céu nulo num lago em mim — lago recluso
    entre rochedos hirtos, calado, olhar de morto, em que a altura se contempla
    esquecida.
    Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que sinto — sentir
    como angústia só por ser sentir, a inquietação de estar aqui, a saudade de outra
    coisa que se não conheceu, o poente de todas as emoções, amarelecer-me
    esbatido para tristeza cinzenta na minha consciência externa de mim.
    Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: e
    aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível
    numa cova a que se não pode descer. E todo o peso e toda a mágoa deste
    universo real e impossível, deste céu estandarte de um exército incógnito,
    destes tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de onde o crescente
    imaginário da lua emerge numa brancura elétrica parada, recortado a
    longínquo e a insensível.
    É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e
    da alma fechada. Cárcere infinito — porque és infinito, não se pode fugir de
    ti!


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    Mensaje por Maria Lua Jue 20 Oct 2022, 15:55

    226.


    Com que luxúria e transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas
    da cidade e fitando, de dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças
    das construções, as minuciosidades da sua arquitetura, a luz em algumas
    janelas, os vasos com plantas irregularidades nas sacadas — contemplando
    tudo isto, dizia, com que gozo de intuição me subia aos lábios da consciência
    este grito de redenção: mas nada disto é real!


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    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
    (Hánjel)





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    Recomendado Re: FERNANDO PESSOA (!3/ 06/1888- 30/11/1935) ( ELE MESMO, ALBERTO CAEIRO, RICARDO REIS, ÀLVARO DE CAMPOS, BERNARDO SOARES, ETC)

    Mensaje por Maria Lua Jue 20 Oct 2022, 15:56

    227.


    Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas razões, das quais a
    primeira, que é minha, é que não tenho escolha, pois sou incapaz de escrever
    em verso. A segunda, porém, é de todos, e não é — creio bem – uma sombra
    ou disfarce da primeira. Vale pois a pena que eu a esfie, porque toca no
    sentido íntimo de toda a valia da arte.
    Considero o verso como uma coisa intermédia, uma passagem da música
    para a prosa. Como a música, o verso é limitado por leis rítmicas, que, ainda
    que não sejam as leis rígidas do verso regular, existem todavia como
    resguardos, coações, dispositivos automáticos de opressão e castigo. Na prosa
    falamos livres. Podemos incluir ritmos musicais, e contudo pensar. Podemos
    incluir ritmos poéticos, e contudo estar fora deles. Um ritmo ocasional de
    verso não estorva a prosa; um ritmo ocasional de prosa faz tropeçar o verso.
    Na prosa se engloba toda a arte — em parte porque na palavra se contém
    todo o mundo, em parte porque na palavra livre se contém toda a
    possibilidade de o dizer e pensar. Na prosa damos tudo, por transposição: a
    cor e a forma, que a pintura não pode dar senão diretamente, em elas mesmas,
    sem dimensão íntima; o ritmo, que a música não pode dar senão diretamente,
    nele mesmo, sem corpo formal, nem aquele segundo corpo que é a ideia; a
    estrutura, que o arquiteto tem que formar de coisas duras, dadas, externas, e
    nós erguemos em ritmos, em indecisões, em decursos e fluidezas; a realidade,
    que o escultor tem que deixar no mundo, sem aura nem transubstanciação; a
    poesia, enfim, em que o poeta, como o iniciado num a ordem oculta, é servo,
    ainda que voluntário, de um grau e de um ritual.
    Creio bem que, num mundo civilizado perfeito, não haveria outra arte que
    não a prosa. Deixaríamos os poentes aos mesmos poentes, cuidando apenas,
    em arte, de os compreender verbalmente, assim os transmitindo em música
    inteligível de cor. Não faríamos escultura dos corpos, que guardariam
    próprios, vistos e tocados, o seu relevo móbil e o seu morno suave. Faríamos
    casas só para morar nelas, que é, enfim, o para que elas são. A poesia ficaria
    para as crianças se aproximarem da prosa futura; que a poesia é, por certo,
    qualquer coisa de infantil, de mnemónico, de auxiliar e inicial.
    Até as artes menores, ou as que assim podemos chamar, se refletem,
    múrmuras, na prosa. Há prosa que dança, que canta, que se declama a si
    mesma. Há ritmos verbais que são bailados, em que a ideia se desnuda
    sinuosamente, numa sensualidade translúcida e perfeita. E há também na
    prosa subtilezas convulsas em que um grande ator, o Verbo, transmuda
    ritmicamente na sua substância corpórea o mistério impalpável do universo.


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