LOS PRIMEROS SONETOS FRANCESES( En Brasileño)
. Nicolas de Herberay
Au lecteur, sonnet de Herberay (1541)
Bening lecteur, de jugement pourveu,
quand tu verras l'invention gentile
de cest autheur: contente toy du stille,
sans t'enquerir s'il est vray ce, qu'as leu.
Qui est celuy, qui peult dire: j'ay veu
blasmer Homere, ou accuser Virgile
pour n'estre vray ainsi que l'Evangile,
en escripvant tout ce qu'il leur pleu?
Quand Appelles nous a painct Jupiter
en Cigne blanc, Thoreau, ou aultre beste:
des anciens il n'a esté repris.
Doncq si tu veois en ce Livre, imiter
l'Antiquité, loue l'effort honneste:
car tout bon oeuvre est digne de bon prix.
Raro leitor, de juízo tão provido,
quando vires o engenho deste esmero,
contenta-te do estilo, pois sincero
e gentil é este autor que terás lido.
Quem é aquele cujo pretendido
fosse acusar Virgílio, ou mesmo Homero
por, tal como o Evangelho, não ser vero
depois de escrever tudo o que é querido?
Quando Apeles, a Júpiter, pintara
em Cisne branco, em Touro ou outra besta:
não teve dos antigos desapreço.
Se vires que este livro se compara
à Antiguidade, louva a força honesta:
pois toda boa obra não tem preço.
Saltam aos olhos aspectos muito interessantes acerca da relação entre a tradução e a escrita poética na escolha feita por Jacques Roubaud ao selecionar o primeiro soneto francês: Au lecteur, sonnet de Herberay. Um breve estudo sobre esta peça é capaz de levantar ingredientes que intrigam aqueles que se dirigem ao estudo de uma poética da tradução.
Nicolas de Herberay de Essarts, seigneur des essars, tal como a ele se refere em um soneto Mellin de Saint-Gelais, fora o tradutor que verteu para o francês, a pedido do rei François I, o castelhano Amadis de Gaula. Este soneto é o prefácio au lecteur do segundo livro desta gesta. A localização dialogal em que essa peça se encontra é singularíssima: o soneto-prefácio do tradutor é o mediador entre lecteur e autheur de uma narrativa cuja autoria é, por sua vez, polêmica e imprecisa.1 Esse entre-lugar em que se encontra o primeiro soneto francês segundo Roubaud, o lugar crítico por excelência, metalinguístico e, sobretudo, argumentativo em defesa do imaginário, confere-lhe características muito singulares no que tangem às categorias de origem e tradição no contexto literário.
A escolha de Roubaud se deve ao fato de este ser o primeiro soneto désigné, imprimé et original em francês. Segundo a tradição crítica, a origem do soneto francês é apontada em Clément Marot; no entanto, ainda que concorde com essa tradição ("toujours de Marot"), Roubaud considera que os sonetos de Marot ou restaram como manuscritos até a publicação do soneto de Herberay, ou não foram publicados com a designação de sonetos, ou ainda, o que é especialíssimo na tradição do soneto, sobretudo neste período germinal de sua expansão no século XVI, são traduções do italiano Petrarca. Vale-nos a leitura do parágrafo em que Roubaud apresenta seu argumento:
D'ailleurs la question du premier sonnet, dont l'intérêt n'est pas bouleversant, est en outre imprécise; et elle n'est pas seulement affaire de chronologie. Doit-on choisir le premier sonnet reconnaissable comme tel, composé et désigné comme sonnet? Il s'agit dans ce cas selon toute vraisemblance du poème de Marot que je reproduis en n°1 de ce choix. Mais ce sonnet est resté manuscrit. Si on désire un texte imprimé, on trouve, toujours de Marot, le poème composé pour "le May des Imprimeurs" de Lyon et publié em 1538 dans une édition des Oeuvres; mais ce sonnet n'est pás annoncé comme un sonnet; il apparaît au "deuxième livre des Épigrammes". L'année suivante, sans doute, Marot (toujours) publie comme étant des sonnets, six traductions de Pétrarque; mais ces sont des traductions (qu'une tradition critique ancienne, quoique peu estimable, s'obstine à exclure du champ de la poésie d'une langue). On en vient alors, si on veut, au premier sonnet français désigné, imprimé et original: le voici; il date de 1541.*1
Ao fazer alusão a certa tradition critique ancienne que exclui a tradução como operação poética de uma língua, Roubaud estima o quanto a tradução deveria ser assumida, sobretudo pelo século XVI, como um operador poético que não só atendeu à ideologia própria ao Renascimento voltado ao aprimoramento e à consolidação das línguas modernas como também serviu à expansão e à consolidação do soneto como a forma fixa mais difundida na literatura moderna. No caso da língua portuguesa, vale lembrar o petrarquismo de traduções e glosas recorrentes na obra de Sá de Miranda e Camões. A tradução, como forma especializada da imitatio renascentista, seria um operador poético de ilustração da língua nacional.
De 1549, no entanto, data a publicação de Défense et illustration de la langue française, em que Du Bellay expressa os valores da ruptura com os antigos sob a escola moderna da Pléiade, e com ela, uma das primeiras pistas de uma espécie de sequestro que sofre a tradução como um operador poético a que se refere Roubaud:
O Apollon! o Muses! profaner ainsi les sacrées reliques de l'antiquité! Mais je n'en dirai autre chose. Celui donc qui voudra faire oeuvre digne de prix en son vulgaire, laisse ce labeur de traduire, principalement les poètes, à ceux qui de chose laborieuse et peu profitable, j'ose dire encore inutile, voire pernicieuse à l'accroissement de leur langue, emportent à bon droit plus de molestie que de gloire.*2
Profanadora, perniciosa, a tradução encontra-se fadada ao fracasso diante da grandeza do original. A literatura é a expressão do intraduzível: quanto às grandes obras dos Antigos ou dos modernos, portanto, melhor imitá-las do que traduzi-las. La molestie com que é definida a tradução instaura certo desnível quanto a uma atividade poética de acroissement de la langue. A escolha de Roubaud soa como um resgate, não somente de Herberay no paradigma da poesia francesa, bem como da tradução como operador da experiência poética de uma língua.
Apollon, Muse, gloire: a tradução é um fazer sem inspiração, sem transcendência portanto. Desprovida do valor divino e eternizador, a tradução da poesia é um labor inútil, indigno de preço. Interessante perceber que tanto no texto de Herberay quanto na passagem de Du Bellay (digne de bon prix e œuvre digne de prix respectivamente) o mesmo significante se coloque como moeda aos olhos do lecteur. Em Herberay, le lecteur é bening, de jugement pourveu, que saberá avaliar que tout bon œuvre est digne de bon prix. O interlocutor é benigno pelo juízo de avaliar o bom preço de uma obra, os versos que iniciam e terminam o soneto de Herberay parecem descrever a relação autor, tradutor, leitor, em um universo de trocas humanas, despojado do valor neoplatônico da inspiração de que se investe o argumento de Du Bellay.
O argumento do soneto de Herberay é, por excelência, histórico, reporta-se à tradição e, sobretudo à linguagem: contente toy du stille. São evocados autores (Homere, Virgile) e personalidades (Apelles e, subentendido, Alexandre); é evocada uma tradição que transcende à do evangelho. O rumor do confronto entre o renascer pagão e o cristianismo encontra na tradição o valor maior do stille, l'effort honeste. O argumento do tradutor remete não só a uma consciência do valor formal da linguagem poética mas também ao seu valor polimórfico, que coloca em perspectiva histórica a produção inesgotável e incontrolável do imaginário. Afinal, não há como blasmer Homere, nem accuser Virgile, por n'estre vray. Imitar os antigos é saber avaliar a produção polimórfica do imaginário humano na linguagem literária. Essa avaliação não se encontra na autoridade do controle evangélico, tampouco em seu correlato valor de verossimilhança; ela se afirma na adesão do bening lecteur ao stille de cest autheur tão provido de juízo quanto les anciens. O leitor é invocado a ocupar um lugar relevante e emancipado das autoridades institucionais no jogo histórico com que a literatura se desdobra segundo a tradição.
Autheur, lecteur e tradutor, no soneto de Herberay, são laicos, por certo, unidos pela troca do valor humanístico em que tradução exerce um papel mediador histórico e cultural. Percebe-se o rumor contra o imaginário medieval, próprio de determinadas linhas assumidas pelo Renascimento, mas, sobretudo, confirma-se a defesa mediada pela tradução que estabelece a perspectiva histórica adequada para se avaliar este mesmo imaginário. A tradução é, por excelência, laica, junto à Corte e não junto à Igreja, encomendada, especialmente, pelo rei François I, cuja irmã, Marguerite d'Angoulème, autora do Heptaméron, narrativas ao estilo de Boccaccio, com o auxílio de seu protegido, Clément Marot, cultivava um universo letrado de relações, inclusive com o próprio Calvino.
Este contexto, a tirar pela argumentação do soneto de Herberay, parece partilhar de valores muito díspares quanto à receptividade de Amadis de Gaula. A modéstia do tradutor encontra-se na sua ausência, a obra vale por si, pelo effort honeste que ela representa. Seu soneto-prefácio é a inscrição dessa ausência. Não há nele a menor menção à tradução, mas sim ao valor que faz a obra digne de prix. Refere-se ao stille de ce qu'as leu, dirigindo-se a um contexto em que a receptividade de Amadis já não é unânime como há dois séculos quando fora publicado pela primeira vez.
Vale lembrar que, algumas décadas depois da publicação do soneto (1605), publicava-se Del Ingenioso Hidalgo Don Quijote de Mancha, no qual se encontra a cena em que se decide o destino da Amadis de Gaula na fogueira dos livros feitos pelo cúria e pelo barbeiro, amigos do fidalgo adoecido. Amadis de Gaula é salvo por um argumento, na voz do barbeiro e corroborado pelo cúria, que de certo modo tange o valor histórico e humanístico que se observa no soneto de Herberay. Vale-nos a reprodução dessa breve passagem e da enunciação desse rumor anticavalheiresco seguida de sua defesa:
- Parece cosa de mistério ésta: porque, según he oído decir, este libro fue el primero de caballerías que se imprimió en España, y todos los demás han tomado principio y origen deste; y así, me parece que, como a dogmatizador de uma secta tan mala, le debemos, sin escusa alguna, condenar al fuego.
- No, señor - dijo el barbero -, que también he oído decir que es el mejor de todos los libros que de este gênero se han compuesto; y así como a único em su arte, se debe perdonar.
- Así es verdad - dijo el cura -, y por esa razón se le otorga la vida por ahora.*3,*4
O que salva Amadis de Gaula nas páginas de Cervantes do início do século XVII não é o rumor de ele ser el primero; mas o rumor de ele ser el mejor. O que afirma Amadis de Gaula nos versos de Herberay também não é o fato de ele ser o primeiro, afinal Homero, Virgílio, o Sextus Empíricus são referências que o inserem em uma perspectiva histórica humanística; o que afirma Amadis de Gaula nos versos desse prefácio de Herberay é o stille. Uma sutil diferença entre Herberay e Cervantes é o fato de a condenação de Amadis aos olhos do cúria dever-se a sua condição de el primero, como uma espécie de livro dogmatizador de um estilo pernicioso. No soneto de Herberay não aparece o valor do primeiro.
A tirar pelo soneto de Herberay, Amadis de Gaula se encontra na classificação literária do estilo elevado, afinal, vêm em sua defesa Homere e Virgile. Mas, sobretudo, Amadis se apresenta ao leitor sob um olhar que lhe considera o valor histórico-antropológico: o olhar do tradutor, por excelência. Este argumento de ilustração histórica parece conferir ao soneto a enunciação de certa perspectiva que só é possível ao tradutor, aquele que seleciona, verte e lega ao leitor futuro. O mesmo olhar que espelha a cumplicidade do antologista Jacques Roubaud ao escolher Au lecteur, sonnet de Herberay como o primeiro soneto francês.
2. Mellin de Saint-Gelais
Au segneur des Essars, N. De Herberay
Traducteur du premier livre d'Amadis de Gaule (1540)
Au gran desir, à l'instant requeste
de tant d'amys dont tu peux disposer,
vouldrois tu bien (o amy) t'opposer
par un reffus de chose treshonneste?
Chacun te prie, et je t'en admoneste,
que l'Amadis qu'il t'a pleu exposer
veuilles permettre et au monde exposer:
car par tels faictz gloire et honneur s'acqueste.
Estimes tu que Caesar ou Camille,
doibvente le cour de leur claire memoire
au nombre, au fer, à cyseau ou enclume?
Toute statue ou medaille est fragile
au fil des ans, mais durable gloire
vient de ta main docte e bien disant plume.
Ao grande apelo, então requisitado
por amigos dos quais podes dispor,
ó amigo, é desejo teu te opor
fazendo do que é digno recusado?
Faço coro ao que a ti é encomendado:
este Amadis que a ti apraz expor,
queiras proporcionar e ao mundo expor:
pois tal feito há de ser com glória honrado.
De César ou Camilo, a que se deve
este preclaro curso da memória:
ao número, cinzel, ferro ou bigorna?
Toda estátua ou medalha, tudo é breve
com o tempo, e durável é a glória
justo do que tua douta pluma adorna.
Aponta Curtius dois modos com que a tradição literária concebe a poesia como imortalização. Em um deles, a poesia imortaliza o que a inspira; em outro, o poeta. Em um deles, ela é a consequência de um feito que em si já possui o ingrediente da imortalidade; em outro, ela é a própria causa da imortalidade. Em um, o fato em si já possui a imortalidade de que a poesia se alimenta. Em outro, a poesia é o próprio poder de imortalizar:
Já os antigos heróis de Homero sabiam que a poesia dá glória eterna aos que celebra (Ilíada, VI, 359). A poesia imortaliza. Os poetas gostam de insistir sobre o fato; assim Teógnis (237 ess.) lembra-o a seu Cirno, Teócrito (XVI) a seu Hierão, Propércio a sua Cíntia (III, 2, 17) e, sem destinatário certo, Horácio (Carm., IV, 8, 28). Ovídio também utiliza o argumento (Am., I, 10 ,62). Não devemos confundi-lo com a asseveração de que o poeta conquistará glória imortal para si com seu canto, como escreve Horácio.*5
Sabe-se bem o quanto o Humanismo do século XVI é responsável pela continuidade dessa tradição que confere ao feito o valor de eternização. E, sendo ainda mais específico, o Humanismo é responsável pela consciência do valor do feito na linguagem como eternização, justamente o que faz da escrita o instrumento que considera a eternidade sob a luz dialética de sua condição histórica. Se, para a antiguidade, a imortalização de heróis e acontecimentos é consequência do valor religioso em que está imerso o fazer poético, de tal modo que a eternidade parece se depositar mais no feito que merece ser cantado do que no próprio canto, uma sutil diferença modula a concepção humanista: a poesia há de imortalizar o objeto do canto. A sutil modulação que essa concepção desdobra corresponde ao senso não somente histórico mas também o de sua implicação na escrita como forma de produção de continuidade e paradigma.
Decerto, essa modulação corresponde a uma outra sutil diferença que germina o século XVI quanto à localização social e política do poeta ou escritor. Boriaud descreve essa modulação da poesia como imortalizadora do poeta como um traço distintivo entre as duas grandes gerações da poesia francesa deste século:
Le poète de la Pléiade est moins directement attaché à une cour que ne l'était le Grand Rhétoriqueur. Il dépend encore souvent d'un Grand, dont il est le "secrétaire", l'homme de l'intendance, comme Du Bellay auprès de son oncle cardinal, lors de leur séjour romain. Sa fonction essentielle n'est plus cependant la célébration de son protecteur. Changement de perspective: le poète ne chante pas une gloire que préexisterait à son œuvre, c'est lui qui la confère. Son rôle est alors de donner aux vertus l'éclat qu'elles méritent et selon les critères dont il se dit le seul juge. Il donne immortalité à ce qu'il touche: à la femme, que chante son livre (de manière cryptée ou non...), même si elle ne doit apprécier que plus tard l'hommage ainsi rendu.*6
Se de certo modo essa modulação constitui a consciência da atitude humanista em que já se banha o soneto Au lecteur de Nicolas de Herberay, o soneto de Mellin de Saint-Gelais dedicado ao tradutor do Amadis é uma peça cuja data apontada na edição de Roubaud parece acrescentar um dado muito interessante ao forte argumento humanista que nele se encontra. Anterior ao soneto de Herberay, o soneto de Saint-Gelais nunca fora publicado em livro. Saint-Gelais bem como Clément Marot são elencados por Roubaud como os primeiros sonetistas franceses. Um dado curioso que esclarece essa anterioridade não publicada do soneto de Saint-Gelais é apresentado na pequena biografia que encabeça a antologia que faz Roubaud a cada poeta apresentado:
Il avait fait imprimer de son vivant fort peu de ses Vers, se contentant de les faire courir des fois et d'autres par les mains des Courtisans et des dames de la Cour.*7
Este dado biográfico parece acrescentar um elemento ao poema de Saint-Gelais que o situa na transição de valores da poesia como imortalização. Afinal, no século em que o livro parece encarnar o valor próprio da escrita como eternização na história, o contentamento de Saint-Gelais em faire courir seus poemas de mão em mão parece descrever um contexto de circulação literária típica do espírito cortesão dos Grands Réthoriqueurs. No entanto, o argumento presente em seu soneto dedicado a Herberay parece tanger a concepção de que il donne imortalité à ce qu'il touche, como afirma Bouraud acerca da geração da Pléiade.
Assim como, no soneto de Herberay, encontra-se o contexto social como principal argumento em defesa do feito escrito, no de Saint Gelais, a tradução de Amadis é devida au gran désir de tant d'amys. Percebe-se nos quartetos a insinuação de um imperativo ético implicado no trabalho da escrita tradutora. A divisão entre os quartetos, repetida entre os tercetos, que faz do primeiro uma pergunta retórica e do segundo sua resposta, estrutura o argumento do soneto, fazendo do apelo do gran desir, um apelo de gloire et honneur. Mas, gloire et honneur de quê? Interessante observar a ambiguidade que se insinua ao oitavo verso na expressão anafórica tels faictz, que tanto se refere aos feitos de Amadis quanto à tarefa de traduzi-lo. Trata-se de uma ambiguidade que parece situar o argumento do poema a meio caminho entre as duas tradições descritas por Curtius: a poesia tanto imortaliza o fato histórico quanto imortaliza o poeta, no caso, o poeta tradutor.
Essa ambiguidade parece se dissipar nos tercetos. A divisão entre o primeiro terceto, que apresenta a pergunta retórica, e o segundo, que insinua sua resposta, é acentuada pela carga semântica que distribuem os termos referentes aos modos e instrumentos de trabalho. Fer, cyseau, enclume são comparados com plume, sugerindo a antítese em que o pesado, o resistente, o aparentemente durável, são superados pelo elemento da leveza e da sutileza como metonímia da escrita, ela sim provedora de durable gloire. A metonímia do estatuário ou da cunhagem associa-se à referência histórica - César, Camille -, insinuando o argumento da finitude da ostentação do poder e da efemeridade inerente a tudo que pretenda se consolidar au fil des ans. O argumento histórico parece dirigir-se ao tema da vaidade e da efemeridade humanas para apenas reconhecer o valor da main docte capaz do manuseio da bien disant plume. A escrita e, com ela, a tradução agem em um plano mais etéreo, mais sutil, no entanto mais eficaz no que diz respeito à dialética entre a condição histórica e a transcendência humana: o plano da linguagem e de sua disseminação.
A ambiguidade de tels faictz que resta em suspenso nos quartetos parece pender seu sentido para a escrita ao fim do poema. E, especificamente, para a escrita tradutora, ou ainda, para a escrita como tradução. A douta pluma, tal como traduzida nessa versão, confere à tradução seu gesto etéreo, seu entre-lugar, em que o sentido se extrai não da solidez com que aparentemente a história se conserva no tempo, mas da inteligência, da entre-leitura, em que, seja como stille segundo Herberay, seja como bien disant plume segundo Saint-Gelais, a escrita extrai seu legado mais duradouro. Um soneto dedicado a um tradutor confere à tradução esse papel histórico especial no que diz respeito à eternização do humano através da tradição. Um valor que, decerto, a literatura francesa há de cultivar como l'herbe, a um só tempo viva e nascida da morte, eterna e histórica portanto, como na metafísica proustiana da literatura:
Victor Hugo dit:
Il faut que l'herbe pousse et que les enfants meurent. Moi je dis que la loi cruelle de l'art est que les êtres meurent et que nousmêmes mourions en épuisant toutes les souffrances, pour que pousse l'herbe non de l'oubli mais de la vie éternelle, l'herbe drue des oeuvres fécondes, sur lesquelles les générations viendront faire gaîment, sans souci de ceux qui dorment en dessous, leur "déjeuner sur l'herbe".*8,*9
Recebido em 18/05/2009
Aprovado em 15/07/2009
* Poeta, letrista, doutor em Ciências da Literatura-Semiologia pela UFRJ, autor dos livros de poemas Trecho (Aeroplano e Fundação Biblioteca Nacional: 2002) e Cosmologia (7 Letras: 2004).
*1 A princípio a questão do primeiro soneto, cujo interesse não é estarrecedor, é, de qualquer forma, imprecisa; e ela não é apenas um caso de cronologia. Devese escolher o primeiro soneto reconhecível como tal, composto e designado como soneto? Trata-se, nesse caso, segundo toda verossimilhança, do poema de Marot, o poema composto para "le May des Imprimeurs" de Lyon e publicado em 1538 em uma edição das Obras; mas esse soneto não é anunciado como um soneto; ele aparece no "segundo livro de Epigramas". No ano seguinte, Marot (ainda ele) publica como sendo sonetos seis traduções de Petrarca; mas são traduções (o que uma tradição crítica antiga, embora pouco estimável, obstina-se a excluir do campo da poesia de uma língua). Chega-se então, se assim se quer, ao primeiro soneto francês designado, impresso e original: ei-lo; ele data de 1541. (ROUBAUD, Jacques (org). Soleil du soleil. Anthologie du sonnet français de Marot à Malherbe. Paris: Gallimard,1990: 16.)
*2 Oh Apolo! Oh Musas! Profanar desta maneira as sagradas relíquias da Antiguidade! Mas não falarei mais a esse respeito. Quem quiser fazer obra digna de aplausos em sua língua vernácula, que deixe o trabalho de traduzir, principalmente os poetas, para aqueles que, desta tarefa trabalhosa e pouco proveitosa, até ouso dizer inútil, e até perniciosa para o desenvolvimento de sua língua, ganham com toda justiça mais aborrecimento do que glória. (Trad. Philippe Humblé. In: FAVERI, Cláudia Borges de; TORRES, Marie Hélène Catherine. Clássicos da Teoria da Tradução. Antologia Bilíngue. Vol II. Florianópolis: UFSC, 2004: 29-31)
*3 (SAAVEDRA, Miguel de Cerbantes. Don Quijote de la Mancha. Barcelona. Editorial Juventud.1995:67)
*4 - Parece coisa de mistério isto: pois, segundo ouvi, este foi o primeiro livro de cavalaria que se imprimiu na Espanha, e todos os demais tiveram princípio e origem neste; e assim me parece que, como um dogmatizador de uma seita tão má, devemos-lhe, sem desculpa alguma, condenar ao fogo. - Não, senhor - disse o barbeiro -, pois também ouvi dizer que é o melhor de todos os livros que deste gênero se compôs; e assim, como único em sua arte, deve-se perdoá-lo. - De fato é verdade - disse o cúria - e por esta razão se lhe outorga vida por agora.
*5 (CURTIUS Ernst Robert. Literatura europeia e idade média latina. São Paulo: HUCITEC, 1996: 579.)
*6 O poeta da Plêiade está menos diretamente ligado a uma corte do que estava o Grande Retórico. Ele depende ainda com frequência de um Grande, de quem ele seja um secretário, o homem de intendência, como Du Bellay ao lado de seu tio cardeal durante sua estadia romana. Sua função essencial não é mais, no entanto, a celebração de seu protetor. Mudança de perspectiva: o poeta não canta uma glória que exista antes de sua obra, é ele que a confere. Seu papel é então de dar às virtudes o brilho que elas merecem e segundo os critérios dos quais se diz o único juiz. Ele dá imortalidade ao que ele toca: à mulher, cantada em seu livro (criptografada ou não...), mesmo que ela só aprecie mais tarde a homenagem a ela rendida. (BORIAUD, Jean Yves. La littérature française du XVIe siècle. Paris: Armand Colin,1995: 90)
*7 (Ele publicou em vida bem pouco de seus Versos, contentando-se em os fazer correr por vezes pelas mãos de Cortesãos e Damas da Corte. ROUBAUD. Ibidem: 23)
*8 (PROUST, Marcel. Le temps retrouvé. Paris: Robert Laffont, 1987, p. 834)
*9 Victor Hugo disse: É preciso que a erva nasça e que as crianças morram. Eu digo que a lei cruel da arte é que os seres morram e que nós mesmos morramos consumidos por todos os sofrimentos, para que a erva nasça não do esquecimento mas da vida eterna, a erva árida das obras fecundas, sobre as quais as gerações virão fazer, ingenuamente, sem se preocuparem com aqueles que dormem abaixo, seu "déjeuner sur l'herbe".
1 Um detalhe interessante descoberto numa simples consulta à Universalis: "Quant à la théorie d'une possible origine française, elle ne repose guère que sur la déclaration d'Herberay des Essarts qui traduisit pour François I, em 1540, les huit livres d'Amadis: Herberay des Essarts dit avoir vu lui-même un Amadis médieval en dialecte picard." (UNIVERSALIS. Vol 4: Chevalerie en Espagne (Roman de): 218) [Quanto à teoria de uma possível origem francesa, ela repousa sobretudo na declaração de Herberay des Essarts, que traduziu para François I, em 1540, os oito livros de Amadis: Herberay des Essarts diz ter visto um Amadis medieval em dialeto picardo.
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